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A rodovia BR-319 e a banalidade do mal – 1: uma falha do sistema burocrático

A rodovia BR-319 e a banalidade do mal – 1: uma falha do sistema burocrático


O fracasso contínuo em sustar o projeto da BR-319 é um exemplo do problema sistêmico identificado por Hannah Arendt (1906-1975) em seu estudo sobre o ministro dos transportes da Alemanha nazista, que administrou o movimento de trens por toda a Alemanha e seus territórios ocupados, incluindo os trens que levaram milhões de pessoas para campos de extermínio. Em vez de um monstro moral, o julgamento de Adolf Eichmann [fugitivo nazista capturado na Argentina] em Jerusalém revelou que ele era um burocrata típico que desempenhava as funções de seu cargo e acreditava não ter responsabilidade pelo que isso implicava além do escopo de seu ministério. Arendt codificou isso como a “banalidade do mal” [1] (Figura 1). Embora o caso estudado por Arendt seja um exemplo extremo, o princípio envolvido se aplica fortemente às burocracias em todo o mundo, incluindo aquelas que lidam com grandes projetos de infraestrutura na Amazônia, como a BR-319.

Figura 1. Livro de Hannah Arendt de 1964, “Eichmann em Jerusalém: Um Relatório sobre a Banalidade do Mal” [1].

Os impactos do projeto da BR-319 como um todo são muitas vezes maiores do que o que é considerado no processo de licenciamento, incluindo as adições ao processo por meio do recente “acordo” entre o MMA e o Ministério dos Transportes que implementaria um “plano BR-319 Sustentável” em uma faixa de 50 km de largura em cada lado da rodovia [2]. Estradas planejadas para se conectar à BR-319, como a rodovia AM-366 de 574 km, abririam a vasta região Trans-Purus a oeste da rodovia para a entrada de desmatadores.

Esta área é a mais crítica para a função de reciclagem de água da floresta amazônica que, por meio dos ventos conhecidos como “rios voadores”, fornece chuva para a cidade de São Paulo e para grande parte das terras agrícolas do Brasil [3, 4]. Também contém um enorme estoque de carbono que, se liberado, levaria o clima global além de um ponto de não retorno, devastando o Brasil e muitas outras partes do mundo [5]. Se o aquecimento global escapar do controle, a região nordeste do Brasil se tornaria um deserto, expulsando dezenas de milhões de pessoas que dependem da agricultura lá [6, 7]. A maior parte do agronegócio e da agricultura familiar do Brasil sofreria perdas severas [8-10]. As densas populações ao longo da costa atlântica do Brasil estariam expostas a tempestades severas e à elevação do nível do mar [11, 12], e grande parte do Brasil estaria exposta à mortalidade em massa durante ondas de calor que excedem os limites de tolerância humana [13-18].

Quase toda a região da Trans-Purus é alvo do projeto planejado de petróleo e gás Área Sedimentar do Solimões”, de 740.000 km² [19, 20]. Este projeto colocaria em prática um processo econômico que garante a extração contínua muito além do tempo em que o mundo inteiro deve parar de usar combustíveis fósseis para evitar uma catástrofe global, e implica impactos ambientais locais de derramamentos de petróleo, construção de estradas e o desmatamento que resulta da invasão e grilagem de terras onde quer que as estradas abram novas áreas da floresta amazônica. A rodovia AM-366 seria de grande benefício para a Rosneft, a empresa petrolífera russa que comprou os direitos dos primeiros blocos de perfuração [21] e que o governador do Amazonas endossou como um “empreendimento prioritário para o estado” [22].

Todas as áreas conectadas à BR-319 por rodovia, incluindo Roraima [23] e outras áreas ligadas por rodovia a Manaus e as áreas a serem abertas pela AM-366, receberiam os impactos de atores e processos migrando da região AMACRO – a área de fronteira Amazonas-Acre-Rondônia que atualmente é um grande foco de desmatamento e queimadas (Figuras 2 e 3). Os empreendedores do agronegócio na região AMACRO estão planejando avançar para a região Trans-Purus, de acordo com estudos sociológicos na Universidade Federal de Rondônia em Porto Velho [24]. A vasta área envolvida significa que nenhum plano de governança crível poderia conter esses impactos. Nada disso é considerado no processo de licenciamento para a reconstrução da BR-319.

Figura 2. Queimadas na região AMACRO, que seria interligada à região Trans-Purus pela BR-319 e AM-366. Foto: Nilmar Lage/Greenpeace. 30/08/2022. Fonte: [25].
Figura 3. Fumaça, proveniente principalmente da região AMACRO, cobriu grande parte do Brasil em 2024. Os empresários do agronegócio da região AMACRO planejam se mudar para a região Trans-Purus, com acesso pela BR-319 e AM-366. Fonte da imagem: Observatório do Clima, 24/08/24.

A foto que abre este artigo mostra queimadas em uma região de floresta nas proximidades da rodovia BR-319, no Amazonas (foto cedida por Marcos Amend).


Notas

[1] Arendt, H. 2013. Eichmann em Jerusalém: Um Relato sobre a Banalidade do Mal. Companhia das Letras, São Paulo, SP. 336 p.

[2] Fearnside, P.M. 2025. Rodovia BR-319: O novo “acordo” de licenciamento como porta de entrada para a destruição. Amazônia Real, 21 de julho de 2025.

[3] Fearnside, P.M. 2015. Rios voadores e a água de São Paulo. Amazônia Real.

[4] Fearnside, P.M. 2021. As lições dos eventos climáticos extremos de 2021 no Brasil: 2 – A seca no Sudeste. Amazônia Real, 20 de julho de 2021.

[5] Fearnside, P.M. & R.A. Silva. 2023. A seca na Amazônia em 2023 indica um futuro desastroso para a floresta tropical e seu povo. The Conversation, 06 de novembro de 2023.

[6] Barbosa, H.A. 2024. Understanding the rapid increase in drought stress and its connections with climate desertification since the early 1990s over the Brazilian semi-arid region. Journal of Arid Environments 222: art. 105142.

[7] ClimaInfo. 2024. Clima árido atinge no Brasil área maior que a do estado de São Paulo. ClimaInfo, 18 de abril de 2024.

[8] Assad, E.D., R.R.R. Ribeiro & A.M. Nakai. 2019. Assessments and how an increase in temperature may have an impact on agriculture in Brazil and mapping of the current and future situation. In: C. Nobre, J. Marengo & W. Soares, (eds.) Climate Change Risks in Brazil. Springer, Cham, Suiça. p. 31–65.

[9] Costa, M.H., L.C. Fleck, A.S. Cohn, G.M. Abrahão, P.M. Brando et al. 2019. Climate risks to Amazon agriculture suggest a rationale to conserve local ecosystemsFrontiers in Ecology and Environment 17: 584-590.

[10] Fearnside, P.M. 2020. Changing climate in Brazil’s “breadbasket”. Frontiers in Ecology and the Environment 18: 486-488.

[11] Montanari, F., M. Polette, S.M.P. Queiroz & M.B. Kolicheski. 2020. Estimating economic impacts of sea level rise in Florianópolis (Brazil) for the year2100. International Journal of Environment and Climate Change 10(1): 37-48.

[12] Gramcianinov, C.B. 2018. Changes in South Atlantic cyclones due climate change. Tese de doutorado em ciências atmosféricas, Universidade de São Paulo, São Paulo, SP. 222 p.

[13] Morais, J.H.A., D.M. de Oliveira e Cruz, V. Saraceni, C.D. Ferreira, G.M.O. Aguilar & O.G. Cruz. 2025. Quantifying heat exposure and its related mortality in Rio de Janeiro City: evidence to support Rio’s recent heat protocol. MedRxiv.

[14] Souza, B. 2025. Pesquisa relaciona calor extremo à mortalidade no Rio de Janeiro. Agência Fiocruz de Notícias, 14 de fevereiro de 2025.

[15] Raymond, C., T. Matthews & R.M. Horton. 2020. The emergence of heat and humidity too severe for human tolerance. Science Advances 6: eaaw1838.

[16] León, L.P. 2024. Entenda estudo da Nasa sobre ‘Brasil inabitável’ em 50 anos. Agência Brasil, 24 de julho de 2024.

[17] Sherwood, S.C. & E.E. Ramsay 2023. Closer limits to human tolerance of global heat. Proceedings of the National Academy of Science USA 120(43): art. e2316003120.

[18] Matthews, T., E.E. Ramsay, F. Saeed, S. Sherwood, O. Jay, C. Raymond, N. Abram, J.K.W. Lee, S. Barley, S. Perkins-Kirkpatrick, M.S. Khan, K.J. Meissner, C. Roberts, D. Mavalankar, K.G.C. Smith, A. Ullah, A. Sadad, V. Turner & A. Forrest 2025. Humid heat exceeds human tolerance limits and causes mass mortalityNature Climate Change 15: 4–6.

[19] Fearnside, P.M. 2020. Os riscos do projeto de gás e petróleo “Área Sedimentar do Solimões”. Amazônia Real, 12 de março de 2020.

[20] Consórcio PIATAM/COPPETEC & EPE. 2020. Estudo Ambiental de Área Sedimentar na Bacia Terrestre do Solimões: EAAS. Consórcio PIATAM/COPPETEC, Manaus, AM & Empresa de Pesquisa Energética (EPE), Rio de Janeiro, RJ. 552 p.

[21] Fearnside, P.M. 2022. O interesse financeiro de Putin nas rodovias da Amazônia brasileira. Amazônia Real, 03 de maio de 2022.

[22] Egues, A.L. 2019. Governo do Amazonas fecha acordo com a Rosneft. Brasil Energia, 18 de junho de 2019. h

[23] Barni, P.E.; P.M. Fearnside & P.M.L.A. Graça. 2018. Simulando desmatamento e perda de carbono na Amazônia: Impactos no Estado de Roraima devido à reconstrução da BR-319 (Manaus-Porto Velho). In: Oliveira, S.K.S. & Falcão, M.T. (Eds.). Roraima: Biodiversidade e Diversidades. Editora da Universidade Estadual de Roraima (UERR), Boa Vista, Roraima. p. 154-173.

[24] Pontes, F. 2024. Após Amacro, agronegócio mira expansão de suas fronteiras para regiões intocadas da Amazônia. Varadouro, 16 de janeiro de 2024.

[25] Lima, W. 2022. Queimadas batem recorde em agosto na Amazônia. Amazônia Real,01 de setembro de 2022.

As informações apresentadas neste post foram reproduzidas do Site Amazônia Real e são de total responsabilidade do autor.
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