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A renovação da licença de Belo Monte – 4: o licenciamento do desastre

A renovação da licença de Belo Monte – 4: o licenciamento do desastre


Por Juarez C.B. Pezzuti, Jansen Zuanon, Priscila F.M. Lopes, Cristiane C. Carneiro, André Oliveira Sawakuchi, Thais R. Montovanelli, Alberto Akama, Camila C. Ribas, Diel Juruna e Philip M. Fearnside

A forma como um projeto com impactos socioecológicos tão previsíveis e que viola os direitos dos povos indígenas e de outros povos tradicionais foi concebido e executado pode parecer intrigante à primeira vista [1, 2]. De acordo com o sistema de licenciamento brasileiro, os empreendedores são responsáveis por todas as avaliações de impacto ambiental e subsequentes programas de mitigação e compensação. Nos órgãos ambientais governamentais há muito tempo os funcionários são pressionados na análise dos relatórios fornecidos pelas consultorias contratadas pelo empeendedor [3]. Além disso, ainda não foram desenvolvidos protocolos para estudos de avaliação de impacto para as mudanças severas nos rios amazônicos complexos e interconectados e nos ciclos de inundação associados, que impactam habitats e espécies específicos e podem afetar extensas áreas sazonalmente inundadas a jusante das barragens (por exemplo, [4-7]).

Os protocolos empregados pelo pessoal contratado pela Norte Energia falham sistematicamente em não encontrar quaisquer impactos significativos, apesar da perturbação ser óbvia para a população local e para pesquisadores independentes [3, 8]. A avaliação de impacto ambiental para Belo Monte [9] subestimou gravemente praticamente todos os impactos do projeto [10, 11]. Além dos impactos ambientais, foram cometidas múltiplas violações dos direitos humanos na implementação do projeto da barragem (por exemplo, [12]). Descobriu-se que a cobertura da imprensa brasileira sobre Belo Monte e outras barragens minimiza ou ignora os impactos sociais e ambientais e enfatiza as narrativas da indústria hidrelétrica que afirmam que essas barragens são necessárias para o progresso econômico [13].

Consultores especialistas contratados pela Norte Energia para conduzir o processo de licenciamento e implementar ações de monitoramento e conservação assinam contratos com cláusulas de confidencialidade, perdendo sua independência e impedindo que suas conclusões sejam plenamente conhecidas. Embora os impactos atualmente observados na Volta Grande tenham sido previstos por avaliações científicas que se basearam em seis décadas de estudos sobre a ecologia e a hidrologia da bacia amazônica, a maioria foi negligenciada, favorecendo a aprovação do projeto da barragem. Os impactos na biota e nas famílias ribeirinhas foram grosseiramente subestimados pelos consultores do empreendedor [3]. Isto ficou evidente durante a fase de construção (2011-2015) e durante a fase de operação parcial das turbinas (2016-2019), quando a duração do pulso de inundação diminuiu progressivamente de seis para três meses e a sua amplitude diminuiu severamente. O Instituto Brasileiro do e dos Recursos Naturais Renováveis (IBAMA), órgão federal responsável pelo licenciamento, dispõe de pessoal técnico altamente qualificado que ficou impotente devido à pressão política ininterrupta durante os governos anteriores de Lula [1, 2]. Essa pressão foi ainda mais acentuada durante a administração presidencial de Bolsonaro 2019-2022 [3].

Com a barragem em operação, as comunidades locais e pesquisadores independentes têm realizado monitoramento ambiental autônomo e têm documentado consistentemente os impactos do desvio de água nos ecossistemas da Volta Grande [14]. Esses efeitos negativos foram reconhecidos pelo IBAMA [15]. As vítimas de Belo Monte exigem que o governo Lula garanta que uma quantidade adequada de água seja deixada fluindo pela Volta Grande de uma forma que aproxima à reprodução da duração natural do pulso sazonal de enchente com amplitude suficiente para manter os ecossistemas aquáticos e inundados da Volta Grande. O histórico de Norte Energia no cumprimento das promessas anteriores é fraco: em junho de 2022, o IBAMA descobriu que apenas 13 das 47 condições da licença de operação da barragem foram cumpridas e oito foram parcialmente cumpridas ([15]; ver também [16, 17]). São claramente necessárias mudanças no sistema brasileiro de governança para garantir a responsabilização pelo não cumprimento de promessas como essas.

A disputa pela água do Xingu [18] está longe de terminar, especialmente porque vários impactos importantes são cumulativos e continuarão a piorar se o atual grande desvio do fluxo do rio continuar. Várias espécies desaparecerão e outras sobreviverão com populações e biomassas extremamente reduzidas, aumentando ainda mais os seus riscos de extinção. O conflito será exacerbado à medida que a água se tornar mais escassa, especialmente durante a época de caudal baixo, devido às mudanças climáticas [19]. Secas extremas mais frequentes são esperadas com a continuação do aquecimento global [20, 21]), e a produção de energia de Belo Monte diminuiria ainda mais à medida que o desmatamento continuasse em suas cabeceiras [22].

No caso de Belo Monte e de outras barragens já existentes na Amazônia, os impactos podem ser minimizados através de um melhor monitoramento (incluindo o envolvimento de povos Indígenas e ribeirinhas), do fim do sigilo das informações obtidas durante o monitoramento e de novas regras para operação de barragens. O licenciamento de quaisquer modificações deve incluir a participação das comunidades Indígenas. A licença de operação de Belo Monte está em fase de renovação [23], e o órgão licenciador sofre forte pressão do Ministério de Minas e Energia para aprovar a licença com o atual hidrograma para vazões de água na Volta Grande, que foi proposto pela Norte Energia apesar das objeções de outras partes interessadas [24]. Apelamos ao governo Lula para que exija que uma quantidade significativamente maior de água do Xingu seja alocada para fluir através da Volta Grande. [25]


A imagem que abre este artigo mostra a hidrelétrica de Belo Monte no rio Xingu (Foto: Lilo Clareto/Amazônia Real/2018).


Notas

[1] Fearnside, P.M., 2015. Barragens na Amazônia: Belo Monte e o desenvolvimento hidrelétrico da bacia do Rio Xingu. p. 231 -243. In: P.M. Fearnside (ed.) Hidrelétricas na Amazônia: Impactos Ambientais e Sociais na Tomada de Decisões sobre Grandes Obras. Vol. 1. Editora do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (INPA), Manaus, Amazonas. 296 p.

[2] Fearnside, P.M., 2017. Belo Monte: Actors and arguments in the struggle over Brazil’s most controversial Amazonian dam. Die Erde 148(1), 14-26.

[3] Zuanon, J., Sawakuchi, A., Camargo, M., Wahnfried, I., Sousa, L., Akama, A., Cunha, J.M., Ribas, C., D’Horta, F., Pereira, T., Lopes, P., Mantovanelli, T., Lima, T.S., Garzón, B., Carneiro, C., Reis, C.P., Rocha, G., Santos, A.L.; de Paula, E.M., Pennino, M., Pezzuti, J., 2019. Condições para a manutenção da dinâmica sazonal de inundação, a conservação do ecossistema aquático e manutenção dos modos de vida dos povos da volta grande do Xingu. Papers do NAEA 28(2), 1-62.

[4] Gerlak, A.K., Saguier, M., Mills-Novoa, M., Fearnside, P.M., Albrecht, T.R., 2020. Dams, Chinese investments, and EIAs: A race to the bottom in South America? Ambio 49(1), 156-164.

[5] Latrubesse, E.M., Arima, E.Y., Dunne, T., Park, E., Baker, V.R., d’Horta, F.M., Wight, C., Wittmann, F., Zuanon, J., Baker, P.A., Ribas, C.C., Norgaard, R.B., Filizola, N., Ansar, A., Flyvbjerg, B., Stevaux, J.C., 2017. Damming the rivers of the Amazon basin. Nature 546, 363-369.

[6] RTAC/USAID (Research Technical Assistance Center/United States Agency for International Development), 2020. Damming the ecosystems of Amazonia. Policy Brief. RTAC/USAID, Washington, DC, EUA.

[7] Schöngart, J., Wittmann, F., de Resende, A.F., Assahira, C., Lobo, G.S., Neves, D., da Rocha, J.R.M., Mori, G.B., Quaresma, A.C., Demarchi, L.O., Albuquerque, B.W., Feitosa, Y.O., Costa, G.S., Feitoza, G.V., Durgante, F.M., Lopes, A., Trumbore, S.E., Silva, T.S.F., ter Steege, H., Val, A.L., Junk, W.J., Piedade, M.T.F., 2021. The shadow of the Balbina dam: A synthesis of over 35 years of downstream impacts on floodplain forests in Central . Aquatic Conservation 31(5), 1117-1135.

[8] Pezzuti, J.C.B., Carneiro, C., Mantovanelli, T., Garzón, B.R., 2018. Xingu, o Rio que Pulsa em Nós: Monitoramento Independente para Registro de Impactos da UHE Belo Monte no Território e no Modo de Vida do Povo Juruna (Yudjá) da Volta Grande do Xingu. Instituto Socioambiental, Altamira, PA.

[9] ELETROBRÁS (Centrais Elétricas Brasileiras), 2009. Aproveitamento Hidrelétrico Belo Monte: Estudo de Impacto Ambiental. Fevereiro de 2009. ELETROBRÁS, Rio de Janeiro, RJ. 36 vols.

[10] Magalhães, S.B., Hernandez, F.D.M. (Eds), 2009. Painel de Especialistas: Análise Crítica do Estudo de Impacto Ambiental do Aproveitamento Hidrelétrico de Belo Monte. Painel de Especialistas sobre a Hidrelétrica de Belo Monte, Belém, PA.

[11] Ritter, C.D., McCrate, G., Nilsson, R.K., Fearnside, P.M., Palme, U., Antonelli, A., 2017. Environmental impact assessment in Brazilian Amazonia: Challenges and prospects to assess biodiversity. Biological Conservation 206, 161-168.

[12] AIDA (Asociación Interamericana para la Defensa Ambiental), 2018. Brazil must respond to human rights violations caused by the Belo Monte Dam. AIDA, 02 de maio de 2018.

[13] Mourão, R.R., Neuls, G.S., Ninni, K., 2022. Hydropower in the news: How journalists do (not) cover the environmental and socioeconomic costs of dams in Brazil. Environmental Communication 16(6), 822-835.

[14] IBAMA (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis), 2019. Análise parcial do Plano de Gerenciamento Integrado da Volta Grande do Xingu; Parecer Técnico nº 133/2019-COHID/CGTEF/DILIC. IBAMA, Brasília, DF.

[15] ISA (Instituto Socioambiental), 2022. Quadro-síntese do estado de cumprimento das condicionantes da Licença de Operação 1317/2015 da Usina Hidrelétrica de Belo Monte. ISA, Brasília, DF.

[16] ISA (Instituto Socioambiental), 2019. 26o Relatório de Monitoramento Socioambiental Independente do Projeto UHE Belo Monte Volume 1 – Capítulo 1.0 ao Anexo 8. ISA, Brasília, DF.

[17] Palmquist, H., 2023. A hora é agora: Lula terá que decidir sobre Belo Monte. Sumauma, 06 de março de 2023.

[18] Sabaj-Perez, S.M., 2015. Where the Xingu bends and will soon break. American Scientist 103(6), 395-403.

[19] Sorribas, M.V., Paiva, R.C.D., Melack, J.M., Bravo, J.M., Jones, C., Carvalho, L., Beighley, E., Forsberg, B., Costa, M.H., 2016. Projections of climate change effects on discharge and inundation in the Amazon basin. Climatic Change 136, 555-570.

[20] Fearnside, P.M., Silva, R.A., 2023. Amazon region hit by trio of droughts in grim snapshot of the century to come. The Conversation, 22 de novembro de 2023.

[21] Latif, M., Semenov, V.A., Park, W., 2015. Super El Niños in response to global warming in a climate model. Climatic Change 132(4), 489-500.

[22] Stickler, C.M., Coe, M.T., Costa, M.H., Nepstad, D.C., McGrath, D.G., Dias, L.C.P., Rodrigues, H.O., Soares-Filho, B.S., 2013. Dependence of hydropower energy generation on forests in the Amazon Basin at local and regional scales. Proceedings of the National Academy of Science USA 110, 9601-9606.

[23] Selibas, D., 2023. Second chance for Lula as controversial Amazon dam goes up for renewal. Mongabay, 18 de maio de 2023.

[24] Gabriel, J., 2023. Minas e Energia pressiona Ibama contra revisão da licença de Belo Monte. Folha de São Paulo, 21 de novembro de 2023.

[25] Esta sére é uma tradução de: Pezzuti, J.C.B., J. Zuanon, P.F.M. Lopes, C.C. Carneiro, A.O. Sawakuch, T.R. Montovanelli, A. Akama, C.C. Ribas, D. Juruna & P.M. Fearnside. 2024. Brazil’s Belo Monte license renewal and the need to recognize the immense impacts of dams in Amazonia. Perspectives in Ecology and Conservation 22(2), 112-117.


Sobre os autores

Juarez Carlos Brito Pezzuti é biólogo pela Universidade Estadual de campinas UNICAMP, mestre pelo Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (INPA, Ecologia) e doutor pela UNICAMP (Ecologia). Fez pós-doutorado na Universidade de Amsterdam. É professor titular da Universidade Federal do Pará, no Núcleo de Altos Estudos Amazônicos (NAEA-UFPA). Suas linhas de atuação induem ecologia, etnoecologia e manejo comunitário de fauna, com ênfase em répteis aquáticos.

Jansen Alfredo Sampaio Zuanon possui graduação em Licenciatura em Ciências Biológicas pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (1985), mestrado em Biologia de Água Doce e Pesca Interior pelo Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (1990) e doutorado em Ecologia pela Universidade Estadual de Campinas (1999). Atualmente é Pesquisador Titular III aposentado do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia. Atua principalmente nos seguintes temas: Amazônia, peixes, ecologia, ictiofauna e comunidades.

Priscila Fabiana Macedo Lopes possui graduação em Biologia pela Universidade Estadual de Campinas (2001), onde também obteve mestrado (2004) e doutorado (2008) em Ecologia. Parte do seu doutorado foi realizado na Universidade da Califórnia (Davis), no departamento de Antropologia (Evolutionary Wing). Ela também é cofundadora do Instituto de Pesca e Alimentação, sem fins lucrativos. As suas principais linhas de investigação são a pesca de pequena escala, o comportamento e estratégias dos pescadores e a co-gestão da pesca.

Cristiane Costa Carneiro possui graduação em Ciências Biológicas pela Universidade Federal do Pará. Atualmente é aluna de doutorado do Curso de Ecologia Aquática e Pesca, Universidade Federal do Pará. Tem experiência na área de Ecologia, atuando principalmente nos seguintes temas: manejo e conservação de quelônios, etnoecologia, pesca e caça de subsistência.

André Oliveira Sawakuchi (2000), mestrado (2003), doutorado (2006) e livre-docência.(2011) em Geologia pelo Instituto de Geociências – USP, IGC – USP. Fez Pós-Doutorado.Oklahoma State University (2007). Atualmente é Professor Associado do Instituto de Geociências da USP. Principais temas de pesquisa incluem: geocronologia por luminescência, mudanças climáticas na Amazônia e sua relação com a e impactos de hidrelétricas em rios da Amazônia. Atua, também, como orientador de mestrado no Programa de Pós-Graduação em Biodiversidade e Conservação da Universidade Federal do Pará (campus Altamira, PA).

Thais R. Montovanelli possui graduação (2006) em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Londrina e mestrado (2011) e doutorado (2016) em Antropologia Social pela Universidade Federal de São Carlos. É pesquisadora vinculada ao Hybrys.·Estuda os impactos da usina Hidrelêtrico de Belo Monte sobre os povos Indígenas junto ao Instituto Socioambiental.

Alberto Akama possui graduação (1993) mestrado (1999) e doutorado (2004) em Ciências Biológicas pela Universidade de São Paulo. Atualmente é pesquisador titular do Museu Paraense Emílio Goeldi, onde atua no estudo da diversidade da fauna de peixes amazônicos.

Camila C. Ribas possui graduação em Ciências Biológicas (1996) pela UNESP-Rio Claro, mestrado (2000) e doutorado (2004) em Genética e Biologia Evolutiva pela Universidade de São Paulo. Foi “Chapman Postdoctoral Fellow” junto ao Depto de Ornitologia do American Museum of Natural History (2005-2007) e é pesquisadora associada à mesma instituição desde 2008. Foi pesquisadora (Recém-Doutor, PRODOC) junto ao Depto de Zoologia da Universidade de São Paulo e pesquisadora (Jovem Pesquisador, FAPESP) do Museu de Zoologia da Universidade de São Paulo. Trabalha atualmente na Coordenacão de Biodiversidade e no Programa de Coleções Científicas Biológicas do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia, onde é Curadora da Coleção de Recursos Genéticos e ViceCuradora da Coleção de Aves. Tem experiência nas áreas de Genética, Evolução e Zoologia (Ornitologia), com ênfase em Biogeografia, Sistemática Molecular, Filogenia, Filogeografia e Conservação. A pesquisa atual é voltada para o estudo de padrões e processos de diversificação na região Neotropical com ênfase na biogeográfica da região amazónica.

Diel Juruna é Coordinador de Monitoramento Ambiental Territorial Independente (MATI), Aldeia Miratu, Altamira, Pará.

Philip Martin Fearnside é doutor pelo Departamento de Ecologia e Biologia Evolucionária da Universidade de Michigan (EUA) e pesquisador titular do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa), em Manaus (AM), onde vive desde 1978. É pesquisador 1A de CNPq e membro da Academia Brasileira de Ciências. Recebeu o Prêmio Nobel da Paz pelo Painel Intergovernamental para Mudanças Climáticas (IPCC), em 2007. Tem mais de 750 publicações científicas e mais de 700 textos de divulgação de sua autoria que estão disponíveis aqui: http://philip.inpa.gov.br.

As informações apresentadas neste post foram reproduzidas do Site Amazônia Real e são de total responsabilidade do autor.
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