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A renovação da licença de Belo Monte – 2: a Volta Grande sufocada

A renovação da licença de Belo Monte – 2: a Volta Grande sufocada


Por Juarez C.B. Pezzuti, Jansen Zuanon, Priscila F.M. Lopes, Cristiane C. Carneiro, André Oliveira Sawakuchi, Thais R. Montovanelli, Alberto Akama, Camila C. Ribas, Diel Juruna e Philip M. Fearnside

Antes dos impactos de Belo Monte, os peixes e quelônios na Volta Grande eram a principal fonte de alimento de três grupos Indígenas, dois dos quais vivem ao lado do Xingu e o terceiro em um afluente (o rio Bacajá). Também dependentes desses recursos estavam os ribeirinhos não indígenas que viverampor gerações ao longo da Volta Grande [1]. A presença de populações Indígenas ainda isoladas ao redor do rio Ituna (outro afluente do Xingu que deságua na Volta Grande) aumenta o risco de perdas irreversíveis. A perda de pescado impactou severamente homens e mulheres em famíliasribeirinhas e as tem afetado de diferentes maneiras tanto a montante quanto a jusante do reservatório [2, 3].

A operação da usina hidrelétrica de Belo Monte ameaça a extraordinária variedade de espécies endêmicas e ecossistemas únicos da Volta Grande. As interações tróficas entre a vida selvagem aquática e a floresta sazonalmente inundada (igapó) não ocorrem mais, assim como a desova de inúmeras espécies de peixes. Em 08 de fevereiro de 2023, monitores Indígenas que coordenam a iniciativa Monitoramento Ambiental e Territorial Independente (MATI) documentaram a mortalidade em massa dos ovos de uma das espécies de peixes mais importantes para a subsistência local e para a pesca comercial: o curimatá (Prochilodus nigricans). Perto da aldeia de Mïratu, numa área de floresta sazonalmente inundada onde estes peixes normalmente desovavam sob o regime natural de cheias, milhões de ovos postos durante uma cheia temporária causada por fortes chuvas foram destruídos depois de a água ter baixado para um nível muito baixo porque a profundiade da água no rio foi menos de 30% daquela que seria esperada para este período do ano [4].

O sistema de monções sul-americano impulsiona as chuvas em toda a Bacia Amazônica e governa o pulso anual de inundação do rio Xingu, quando a água corrente lava o leito rochoso do rio na Volta Grande e invade suas extensas áreas de igapóde novembro a julho. A evolução a longo prazo da biota está associada ao ciclo sazonal de inundações, que sustenta a vida selvagem de água doce, incluindo as maiores assembleias mundiais de peixes reofílicos (espécies que vivem em águas de fluxo rápido), a maioria dos quais são endémicos [5-7. Esses peixes constituíram uma importante fonte de renda para os povos Indígenas e ribeirinhosatravés da venda de peixes ornamentais para o comércio de aquários [8]. Particularmente emblemática é a acarí zebra (Hypancistrus zebra), uma conhecida espécie de aquário que deverá se tornar extinta na natureza devido à perda de habitat provocada pela usina hidrelétrica de Belo Monte [9].

Os habitats sazonalmente inundados evoluíram como ecossistemas interdependentes de alta produtividade, onde se alimentam peixes, quelônios, lontras, peixes-boi e jacarés . Peixes herbívoros e quelônios convertem matéria vegetal em biomassa animal como parte de uma complexa rede de vida nas zonas úmidas. A maioria das espécies de peixes que habitam sistemas fluviais de igapó e várzea também têm seus eventos reprodutivos anuais sincronizados com o pulso de inundação, desovando em um mosaico diversificado de microhabitats [10, 11]. Os frutos das árvores nas florestas sazonalmente inundadas amadurecem e caem durante o pulso de inundação, e estes frutos alimentam as populações de peixes e quelônios na fáse de reprodução. Os povos nativos também desenvolveram suas culturas com uma conexão íntima com esse sistema dinâmico natural, que lhes fornece alimentos e outros recursos vitais [12].

Sufocar o fluxo do rio desencadeou uma catástrofe biológica, social e de direitos humanos [13-19]. A decisão de desviar a maior parte da água da Volta Grande para priorizar a plena capacidade de geração da casa de força principal de Belo Monte faz parte do plano de engenharia original elaborado durante os governos anteriores de Lula (2006-2010) e agora representa um teste para a sua prometida agenda socioambiental. A legalidade do processo de licenciamento de Belo Monte é contestada em 22 ações movidas pelo Ministério Público Federal. Em 1º de setembro de 2022, o presidente do Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu que Belo Monte havia violado a lei brasileira ao não realizar consultas com os povos Indígenas e outros povos tradicionais da Volta Grande, conforme exigido pela Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) [20]; no entanto, a decisão precisará ser ratificada pelo plenário do STF antes de entrar em vigor [21]. [22]


A imagem que abre este artigo é de autoria do fotógrafo Lilo Clareto (in memoriam), para a Amazônia Real, datada de 27/11/2018. A foto retrata a hidrelétrica de Belo Monte no rio Xingu na cidade de Altamira (PA).


Notas

[1] Magalhães, S.B., da Cunha, M.C. (Eds), 2017. A Expulsão de Ribeirinhos em Belo Monte: Relatório da SBPC. Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), São Paulo, SP.

[2] Castro-Diaz, L., Lopez, M.C., Moran, E.F., 2018. Gender-differentiated impacts of the Belo Monte hydroelectric dam on downstream fishers in the Brazilian Amazon. Human Ecology 46, 411-422.

[3] Gonçalves, A.F.G., Pezzuti, J.C.B., 2023. Effect of geographic isolation and temporal patterns on use of wildmeat and fishery resources in Eastern Amazonia, Brazil. Acta Scientiarum 45(2), art. e69010.

[4] Juruna, D., 2023. A catastrophe in progress in the Big Bend of the Xingu. Aldeia Mïratu, Altamira, Pará, Brazil: Monitoramento Ambiental Territorial Independente (MATI).

[5] Fitzgerald, D.B., Sabaj, P., M.H., Sousa, L.M., Gonçalves, A.P., Rapp Py-Daniel, L., Lujan, N.K., Zuanon, J., Winemiller, K.O., Lundberg, J.G., 2018. Diversity and community structure of rapids-dwelling fishes of the Xingu River: Implications for conservation amid large-scale hydroelectric development. Biological Conservation 222, 104-112. h[6] Winemiller, K.O., Mcintyre, P.B., Castello, L., Fluet-Chouinard, E., Giarrizzo, T., Nam, S., Baird, I.G., Darwall, W., Lujan, N.K., Harrison, I., Stiassny, M.L.J., Silvano, R.A.M., Fitzgerald, D.B., Pelicice, F.M., Agostinho, A.A., Gomes, L.C., Albert, J.S., Baran, E., Petrere Jr, M., Zarfl, C., Mulligan, M., Sullivan, J.P., Arantes, C.C., Sousa, L.M., Koning, A.A., Hoeinghaus, D.J., Sabaj Pérez, M.H., Lundberg, J.G., Armbruster, J., Thieme, M.L., Petry, P., Zuanon, J., Torrente-Vilara, G., Snoeks, J., Ou, C., Rainboth, W., Pavanelli, C.S., Akama, A., Van Soesbergen, A., Sáenz, L., 2016. Balancing hydropower and biodiversity in the Amazon, Congo, and Mekong. Science 351, 128–129.

[7] Zuanon, J.A.S., 1999. História natural da ictiofauna de corredeiras do rio Xingu, na região de Altamira, Pará. Tese de doutorado em ecologia, Instituto de Biologia, Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), Campinas, SP.

[8] Sabaj-Perez, S.M., 2015. Where the Xingu bends and will soon break. American Scientist 103(6), 395-403. https://bityl.co/6dpl 

[9] Gonçalves, A.P., 2011. Ecologia e Etnoecologia de Hypancistrus zebra (Siluriformes: Loricariidae) no Rio Xingu, Amazônia Br

[10] Castello, L., Bayley, P.B., Fabré, N.N., Batista V.S., 2019. Flooding effects on abundance of an exploited, long-lived fish population in river-floodplains of the Amazon. Reviews in Fish Biology and Fisheries 29, 487-500.

[11] Isaac, V.J., Castello, L., Santos, P.R.B, Ruffino, M.L., 2016. Seasonal and interannual dynamics of river-floodplain multispecies fisheries in relation to flood pulses in the Lower Amazon. Fisheries Research 183, 352–359.

[12] Begossi, A., Salivonchyk, S.V., Hallwass, G., Hanazaki, N., Lopes, P.F.M., Silvano, R.A.M., Dumaresq, D., Pittock, J., 2019. Fish consumption on the Amazon: a review of biodiversity, hydropower and food security issues. Brazilian Journal of Biology 79, 345-368.

[13] Fearnside, P.M. 2021. Belo Monte: A luta pela Volta Grande entra em uma nova fase. Amazônia Real, 22 de junho de 2021.

[14] Palmquist, H., 2023. A hora é agora: Lula terá que decidir sobre Belo Monte. Sumauma, 06 de março de 2023.

[15] Pertille, T.S., Albuquerque, L., 2020. Direitos humanos das deslocadas ambientais e os impactos da usina de Belo Monte: da exploração amazônica à subjugação feminina. Revista de Direito Internacional 17(1), 273-291.

[16] Pezzuti, J.C.B., Zuanon, J., Ribas, C., Wittmann, F., d’Horta, F., Sawakuchi, A.O., Lopes, P.F.M., Carneiro, C.C., Akama, A., Garzón, B.R., Mantovanelli, T., Fearnside, P.M., Stringer, L.C. 2022. Belo Monte through the food-water-energy nexus: The disruption of a unique socioecological system on the Xingu River. pp. 22-40 in: Moreira, F.A. et al. (Eds.) The Water-Energy-Food Nexus: What the Brazilian Research Has to Say. School of Public Health, University of São Paulo, São Paulo, SP. 291 p.

[17] Sarmento, J.C.S., Rocha, C.G.S., 2021. Modificações na paisagem e mudanças sociais ocasionados pela hidrelétrica de Belo Monte: o fim da comunidade Santo Antônio. Brazilian Journal of Development 7(3), 27.308-27.319.

[18] Zuanon, J.A.S., 1999. História natural da ictiofauna de corredeiras do rio Xingu, na região de Altamira, Pará. Tese de doutorado e

[19] Zuanon, J., Sawakuchi, A., Camargo, M., Wahnfried, I., Sousa, L., Akama, A., Cunha, J.M., Ribas, C., D’Horta, F., Pereira, T., Lopes, P., Mantovanelli, T., Lima, T.S., Garzón, B., Carneiro, C., Reis, C.P., Rocha, G., Santos, A.L.; de Paula, E.M., Pennino, M., Pezzuti, J., 2019. Condições para a manutenção da dinâmica sazonal de inundação, a conservação do ecossistema aquático e manutenção dos modos de vida dos povos da volta grande do Xingu. Papers do NAEA 28(2), 1-62.

[20] de Moraes, A., 2022. Recurso extraordinário 1.379.751 Pará. Brazil, Brasília, DF, Supremo Tribunal Federal.

[21] MPF-PA (Ministério Público Federal no Pará), 2022. STF reconhece que o direito de consulta prévia dos povos indígenas afetados por Belo Monte foi violado.

[22] Esta sére é uma tradução de: Pezzuti, J.C.B., J. Zuanon, P.F.M. Lopes, C.C. Carneiro, A.O. Sawakuch, T.R. Montovanelli, A. Akama, C.C. Ribas, D. Juruna & P.M. Fearnside. 2024. Brazil’s Belo Monte license renewal and the need to recognize the immense impacts of dams in . Perspectives in Ecology and Conservation 22(2), 112-117.


Sobre os autores

Juarez Carlos Brito Pezzuti é biólogo pela Universidade Estadual de campinas UNICAMP, mestre pelo Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (INPA, Ecologia) e doutor pela UNICAMP (Ecologia). Fez pós-doutorado na Universidade de Amsterdam. É professor titular da Universidade Federal do Pará, no Núcleo de Altos Estudos Amazônicos (NAEA-UFPA). Suas linhas de atuação induem ecologia, etnoecologia e manejo comunitário de fauna, com ênfase em répteis aquáticos.

Jansen Alfredo Sampaio Zuanon possui graduação em Licenciatura em Ciências Biológicas pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (1985), mestrado em Biologia de Água Doce e Pesca Interior pelo Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (1990) e doutorado em Ecologia pela Universidade Estadual de Campinas (1999). Atualmente é Pesquisador Titular III aposentado do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia. Atua principalmente nos seguintes temas: Amazônia, peixes, ecologia, ictiofauna e comunidades.

Priscila Fabiana Macedo Lopes possui graduação em Biologia pela Universidade Estadual de Campinas (2001), onde também obteve mestrado (2004) e doutorado (2008) em Ecologia. Parte do seu doutorado foi realizado na Universidade da Califórnia (Davis), no departamento de Antropologia (Evolutionary Wing). Ela também é cofundadora do Instituto de Pesca e Alimentação, sem fins lucrativos. As suas principais linhas de investigação são a pesca de pequena escala, o comportamento e estratégias dos pescadores e a co-gestão da pesca.

Cristiane Costa Carneiro possui graduação em Ciências Biológicas pela Universidade Federal do Pará. Atualmente é aluna de doutorado do Curso de Ecologia Aquática e Pesca, Universidade Federal do Pará. Tem experiência na área de Ecologia, atuando principalmente nos seguintes temas: manejo e conservação de quelônios, etnoecologia, pesca e caça de subsistência.

André Oliveira Sawakuchi (2000), mestrado (2003), doutorado (2006) e livre-docência.(2011) em Geologia pelo Instituto de Geociências – USP, IGC – USP. Fez Pós-Doutorado.Oklahoma State University (2007). Atualmente é Professor Associado do Instituto de Geociências da USP. Principais temas de pesquisa incluem: geocronologia por luminescência, mudanças climáticas na Amazônia e sua relação com a e impactos de hidrelétricas em rios da Amazônia. Atua, também, como orientador de mestrado no Programa de Pós-Graduação em Biodiversidade e Conservação da Universidade Federal do Pará (campus Altamira, PA).

Thais R. Montovanelli possui graduação (2006) em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Londrina e mestrado (2011) e doutorado (2016) em Antropologia Social pela Universidade Federal de São Carlos. É pesquisadora vinculada ao Hybrys.·Estuda os impactos da usina Hidrelêtrico de Belo Monte sobre os povos Indígenas junto ao Instituto Socioambiental.

Alberto Akama possui graduação (1993) mestrado (1999) e doutorado (2004) em Ciências Biológicas pela Universidade de São Paulo. Atualmente é pesquisador titular do Museu Paraense Emílio Goeldi, onde atua no estudo da diversidade da fauna de peixes amazônicos.

Camila C. Ribas possui graduação em Ciências Biológicas (1996) pela UNESP-Rio Claro, mestrado (2000) e doutorado (2004) em Genética e Biologia Evolutiva pela Universidade de São Paulo. Foi “Chapman Postdoctoral Fellow” junto ao Depto de Ornitologia do American Museum of Natural History (2005-2007) e é pesquisadora associada à mesma instituição desde 2008. Foi pesquisadora (Recém-Doutor, PRODOC) junto ao Depto de Zoologia da Universidade de São Paulo e pesquisadora (Jovem Pesquisador, FAPESP) do Museu de Zoologia da Universidade de São Paulo. Trabalha atualmente na Coordenacão de Biodiversidade e no Programa de Coleções Científicas Biológicas do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia, onde é Curadora da Coleção de Recursos Genéticos e ViceCuradora da Coleção de Aves. Tem experiência nas áreas de Genética, Evolução e Zoologia (Ornitologia), com ênfase em Biogeografia, Sistemática Molecular, Filogenia, Filogeografia e Conservação. A pesquisa atual é voltada para o estudo de padrões e processos de diversificação na região Neotropical com ênfase na biogeográfica da região Amazónica.

Diel Juruna é Coordinador de Monitoramento Ambiental Territorial Independente (MATI), Aldeia Miratu, Altamira, Pará.

Philip Martin Fearnside é doutor pelo Departamento de Ecologia e Biologia Evolucionária da Universidade de Michigan (EUA) e pesquisador titular do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa), em Manaus (AM), onde vive desde 1978. É pesquisador 1A de CNPq e membro da Academia Brasileira de Ciências. Recebeu o Prêmio Nobel da Paz pelo Painel Intergovernamental para Mudanças Climáticas (IPCC), em 2007. Tem mais de 750 publicações científicas e mais de 700 textos de divulgação de sua autoria que estão disponíveis aqui.

As informações apresentadas neste post foram reproduzidas do Site Amazônia Real e são de total responsabilidade do autor.
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