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A periferia como centro: cena do rap cresce na região Norte

A periferia como centro: cena do rap cresce na região Norte
Por Amazônia Real

Apesar da expansão, preconceito, falta de reconhecimento e obstáculos para a sobrevivência ainda fazem parte da rotina dos rappers. Na imagem acima artistas de rap do Pará no MPB Festival Belém (Foto: @lilismoreira)

Por Nicoly Ambrósio e Alicia Lobato, da Amazônia Real

Manaus (AM) – De marginalizado a símbolo de empoderamento e forma de sustento, o rap tem se tornado uma opção para jovens moradores das periferias da região Norte. Eles buscam na música um espaço além do que é oferecido em suas vidas. No caminho para construir uma carreira no rap, no entanto, enfrentam obstáculos como violência, preconceito e falta de reconhecimento ao gênero musical.

Todos esses obstáculos são colocados nas letras das rimas e conseguem atrair olhares para as produções da região. O público cada vez maior nos shows e os convites para festivais são sinais de que o ritmo e a poesia ganham força. Nos estados do Norte surgem movimentos e manifestações próprias e cheias de identidade, com artistas dispostos a enfrentar as dificuldades.

“No festival em que eu cantei com o Shock, trocaram a gente de horário, acabamos ficando por último. Até falamos: quem fica são os de verdade”, conta a rapper Nic Dias, 22, de Belém (PA). Ela participou de um grande festival na capital do Pará e subiu ao palco com o rapper amapaense MC Shock e outros convidados.

No show, os artistas fizeram referência, por meio das roupas e de projeções no palco, ao Partido dos Panteras Negras, organização símbolo da luta dos negros contra o racismo e a violência polícial nos Estados Unidos na década de 1960.

Por causa da mudança de horário da apresentação, Nic teve medo das pessoas não esperarem a apresentação. No entanto, quando o show começou, ela e os outros artistas viram que o público estava lá. “Ficou uma galera. Os artistas locais estão sendo muito abraçados pelo público, a galera daqui já entendeu como é a movimentação de uma cena, a galera realmente apoia, cola lá. Acho que há essa identificação do público com o artista”, comemora a rapper.

Além da identificação nas letras, figurino e forma de expressão, os jovens são atraídos para o rap por enxergarem no gênero musical urbano uma oportunidade de entrar na música. Isso fortalece o movimento e faz com que ele vá além de espaços ocupados apenas por homens, como era mais comum no passado. Hoje é possível encontrar rimas feitas por mulheres e pessoas LGBTQIA+.

Nic afirma que, apesar do movimento hip hop no Norte vir de muito tempo, com pessoas mobilizadas para buscar visibilidade para o gênero, a internet é hoje uma das principais responsáveis pelo cenário de mais reconhecimento.

“Porque a gente consegue se conectar com as pessoas. Estamos tendo mais visibilidade, mas é muito difícil ser um artista de rap e viver disso. Acho que em qualquer lugar do Norte ainda é uma realidade bem distante, mas com certeza estão olhando mais para a Amazônia agora”, diz.

Um exemplo dessa visibilidade é a Batalha das Minas, evento que acontece uma vez por mês na Praça Desembargador Paulo Jacob, localizada no Centro de Manaus, ao lado da avenida 7 de setembro. Idealizada por produtoras e rappers do movimento hip hop amazonense, a Batalha das Minas busca por meio do rap ser um espaço de visibilidade e fortalecimento para as artistas autorais do Norte, enfrentando preconceito, discriminação, misoginia, racismo e as altas taxas de feminicídio.

O movimento do rap funciona como uma rede coletiva de artistas. Um contribui para o trabalho do outro. Os mais experientes ajudam os que estão em ascensão. A coletânea APART l, por exemplo, foi produzida para divulgar artistas de sete estados da região Norte, com Nic Dias como uma das curadoras.

O projeto independente foi pensado pelo rapper Victor Xamã junto com a gravadora 2088 LABEL, responsável pela pós-produção e divulgação do trabalho. O rapper nortista é um dos artistas que serve de inspiração para os jovens que estão começando.

Victor, que nasceu em Manaus (AM) e atualmente mora em São Paulo, traz para a sua música as lembranças da infância. Para ele, a arte sempre esteve presente. A avó cantava em coral e a família ouvia música brasileira em casa. Além disso, para o rapper a música é uma ferramenta de comunicação. O artista conta que, por sofrer de disfluência, tem dificuldade para falar e a arte contribuiu para que se expresse.

“Eu queria que as pessoas prestassem atenção no que eu tinha a dizer. Às vezes, em uma conversa no bairro ou com a própria família, eu sentia que com a música, com a escrita e com o desenho, eu conseguia me comunicar mais fácil”, relata.

Com uma carreira consolidada, o rapper vive de música  e cria inúmeras possibilidades para se manter  no meio, compondo e produzindo áudio. “Não é algo simples conseguir se organizar e se inserir na cena sendo da região Norte, precisa ter um trabalho dobrado, precisa ter bastante organização, persistência e constância”, diz.

Para além da falta de recursos e investimentos nos trabalhos dos artistas, Victor Xamã afirma que o rap é alvo de desinformação. No Norte essa realidade é ainda mais forte porque o estilo musical não é o predominante na região.

Mas Vitor vê o cenário atual com bons olhos. “Pelo rap ser o estilo de música mais escutado no mundo hoje, a cena ficou mais efervescente no nosso país e na região Norte. Acho que não tem mais como ignorar, não só o rap, mas  a arte que vem sendo feita na região, que é de total guerrilha. Tem muita gente fazendo um trabalho de qualidade e sem recursos”.

O rapper acredita que sua influência para jovens artistas é uma responsabilidade e uma forma de movimentar a cena a partir do incentivo. “Me sinto muito feliz de viver da minha música e dos meus discos ou de alguma música minha influenciar as pessoas. Eu vejo uma responsabilidade imensa nisso e acredito que quanto mais pessoas abrirem caminhos para esses jovens artistas, melhor para a gente conseguir movimentar a cena”.

Mulheres e LGBTQ+ se encontram e resistem no rap

Lua Negra em frente ao Teatro Amazonas (Foto: Divulgação)

Apesar de contar com versos que sensibilizam quem escuta e atrair seguidores, o rap, assim como outros gêneros musicais, ainda é apontado como uma espaço machista e com pouca abertura para mulheres e rappers LGBTQIA+.

Artistas incluídos nesse contexto encontram mais dificuldades para alcançar o público. O fato positivo é que essas temáticas começam a ser discutidas no meio, tornando possível para mais artistas pensar em ter uma carreira na música.

O rapper Lua Negra, 30, de Manaus, conta que quando começou o espaço era limitado e, apesar disso, desde o início ele se assumiu como um artista queer (termo guarda-chuva da língua inglesa para minorias sexuais e de gênero).

“Como rapper gay trazendo linguagem e visuais queer, atingia ciclos sociais, nichos fechados. Foi mais ou menos de cinco anos para cá que as coisas começaram a se misturar mais”, diz. Lua comenta que houve um entendimento por parte da classe artística de que “somos apenas nós para consumir o nosso material” e, portanto, um precisa dar força para o outro.

De acordo com Lua, a “mistura” que ocorre é marcada pela presença de manifestações de rappers mulheres e LGBTQIA+. “Ando em todos os lugares, festas, tanto com o público queer como com o público hétero. Hoje em dia as pessoas começaram a perceber que é preciso abrir espaço para outros, até mesmo para que o seu próprio conteúdo seja mais consumido”.

Para o MC de batalha Senna Fuzinatto, um dos organizadores da Batalha das Minas, estar nas disputas de rima sendo gay não é fácil. Senna diz que em muitas dessas batalhas os MCs usam discursos lgbtfóbicos para ganhar a disputa. “Toda vez que eu chego em uma batalha, a primeira coisa que penso é sobre representar o meu movimento. Então sempre que possível eu falo sobre como é ser gay na cena do rap e que tipo de opressão jogam em mim por conta disso. Faço isso para que os manos entendam que precisam mudar a mente”, explica.

Mesmo com o crescimento da diversidade, ainda não é possível afirmar que o rap já fez de fato a integração. Para Nic Dias, todas as discussões não significam que a cena já esteja totalmente aberta para mulheres e pessoas LGBTQIA+, principalmente pela presença de um público massivamente masculino.

Ela afirma ainda que isso abrange a raça também. “Muito se fala em espaço para os pretos, mas ainda acho que as pessoas não respeitam a gente, até em espaços que estamos como artistas. Ainda não somos respeitados como deveríamos”.

Na opinião de Nic, a maior vitória atual é poder falar sobre isso. “Fomos excluídos de vários espaços há muito tempo”, ressalta.

Em Manaus, as irmãs Lary Go, 26, e Strela, 24, dividem o palco desde 2015. Elas contam que ao começarem a frequentar eventos de rap na capital perceberam a ausência de mulheres.

“Continua sendo um espaço dominado pelos homens, onde ainda há muito machismo,  mulheres sendo invisibilizadas e há a tentativa  de nos silenciar, mas é claro que as mulheres têm se se organizado mais, se unido, mostrado ferozmente muito suor e trabalho para estarem inclusas e ocupando esse lugar”, afirma Lary.

Ser uma dupla de mulheres no rap é difícil, mas para Lary a recepção no início foi interessante. “Muita gente abraçou a ideia, botou muita fé. Viramos referência e resistência no rap, mas ainda tentam inviabilizar nosso corre, não reconhecem. Estamos aí seguindo e resistindo”.

Batalha do BK: a mais importante ocupação do rap no Centro de Manaus

Organizadores da Batalha das Mina (Foto: Gaby Melo)

Nas noites de sexta-feira, a Praça Desembargador Paulo Jacob, localizada no Centro de Manaus, vira o palco de mestres de cerimônia da cena do rap de Manaus. A área do parque público abriga uma das maiores e principais batalhas de rima de Manaus, a Batalha do BK, que nasceu no final de 2017, idealizada por Fabrício PKN, mas que hoje tem como organizadores Mark Aguiar, Maria Medusa, Jenkins Hilário, Yan Saffa, DJ Fox e Cida Aripória, todos artistas do movimento hip hop. Eles fazem o evento acontecer de forma independente.

A batalha contava no início com um pequeno público de MCs e uma caixa de som. O fluxo de pessoas fez a organização evoluir e a popularidade e a relevância aumentaram. Hoje reúne entre 300 e 400 pessoas nas sextas-feiras. Virou uma atração para jovens que estão iniciando a carreira e desejam mostrar suas rimas para o público.

Responsável por reunir os principais MCs emergentes na cena underground da cidade, como Mineiro MC, representante do Amazonas no Duelo de MCs Nacional por três anos consecutivos (desde 2020), o evento é atualmente um marco cultural na cidade. Para o fundador, é uma vitrine artística em praça pública. “A Batalha do BK é formadora de opiniões, um lugar onde diversos artistas apresentam seu trabalho”, diz Fabrício PKN.

O Mineiro MC esteve em contato com a batalha desde o começo, chegando a ganhar oito edições. Se consagrou como um dos grandes nomes do evento. Ele acredita que a batalha rendeu um novo nicho de público e repertório, sendo importante em sua trajetória artística.

“A Batalha do BK me deu um novo nicho e um novo tipo de rima de linguagem popular, para ser entendível para quem não conhece as referências do rap. A importância da batalha é muito grande porque ela é uma influenciadora das batalhas que vieram depois e para o público que participa ativamente”, diz.

O entendimento da importância da batalha como ponto de encontro cultural se estende aos organizadores, que garantem que ela é importante para o cenário do hip hop manauara, pois é um lugar onde são criados contatos.

“É muito fácil você chegar em uma sexta-feira e se deparar com vários artistas. Lá foram criadas várias parcerias musicais”, diz Mark Aguiar, rapper e produtor. No evento, os artistas têm a oportunidade de melhorar suas performances e alguns deles pretendem se lançar no cenário da música nacional, como o MC Senna Fuzinatto e o rapper Gaxpar.

Mark afirma que as maiores dificuldades da organização são as questões externas, como a energia elétrica que falta frequentemente e a limpeza pós-evento. Além disso, os artistas já tiveram problemas com a polícia no passado. Os organizadores explicaram a motivação dos encontros públicos e hoje os policiais sabem que toda sexta-feira acontece o movimento cultural na praça.

A Batalha das Minas é uma das ramificações da Batalha do BK.  Segundo Cida Aripóia, artista indígena, rapper, produtora cultural e uma das organizadoras da disputa das rappers, o evento está crescendo na cidade e se tornando um reduto para as mulheres que querem mostrar seus trabalhos e construir suas narrativas a partir do hip hop. “É a única batalha de mulheres da região Norte e que está construindo um trabalho de produção cultural, movimentando a cadeia criativa e produtiva cultural e incentivando novas artistas para o cenário”.

O machismo da cena e os problemas estruturais em relação a som e microfone são as maiores dificuldades. Porém, essas questões não impedem o trabalho das produtoras, que acreditam ser muito importante a ocupação do Centro da cidade por mulheres do movimento hip hop.

“Eu vejo como uma questão de ser parte da cidade, por ser uma mulher do Norte e artista indígena. Quando se fala em arte, e principalmente da cultura hip hop, ocupar o Centro da cidade e estar há três anos atuando na batalha é sinônimo de resistência”, diz Cida Aripóia.

Migração, preconceito e dificuldades

Nic Dias (Foto: @lilismoreira)

A cena rap na região Norte ainda enfrenta dificuldades tanto para quem tenta conseguir se estabilizar financeiramente como para ter público nos estados onde vivem, apesar do crescimento do movimento cultural. Os obstáculos fazem com que vários rappers migrem para cidades como São Paulo, conhecida por seu amplo mercado musical.

No entanto, além de estarem saindo do seu lugar de origem e tendo que começar uma nova vida em outra região, esses artistas passam pelo preconceito que envolve  o estereótipo de pessoas que nascem na região Norte. Com o aumento da visibilidade do rap produzido na região, a esperança é que a migração deixe de ser quase obrigatória.

“É muito injusto que outros artistas precisem sair da sua cidade natal para irem para cidades xenofóbicas como São Paulo. É muito difícil, mas eu acredito que as coisas tendem a melhorar, talvez daqui a uns anos isso aconteça”, diz Nic Dias. “Eu espero muito que melhore essa perspectiva, porque é muito cruel, lá existe muita competição, a galera ainda é muito preconceituosa com a galera do Norte.”

A artista Bruna BG, 32, de Belém,  cita as dificuldades enfrentadas durante a pandemia da Covid-19, quando os convites para shows e eventos diminuíram. Apesar de contar com vários artistas talentosos, a cena musical da região não abrange todos. Bruna conta também que precisou buscar outras formas de renda, pois não conseguia se sustentar apenas com o rap e chegou a pensar em mudar para tentar se manter na área artística.

“Eu sinto que ainda é necessário migrar para outro estado, que realmente tenha esse consumo forte de hip hop, porque aqui em Belém eu me vejo sem trabalho, sem show para fazer. Infelizmente, temos que sair para tentar algo em outro estado, tentar ter mais visibilidade e ter uma carreira mais sólida”, relata. Para ela, a visibilidade ocorre apenas nas periferias. “Parece que a gente precisa dessa aprovação lá fora para poder ser reconhecido aqui”.

Essa realidade é vivida por muitos rappers da região Norte que mudaram para outros estados e precisaram se adaptar. O rapper Victor Xamã conta que quando foi para São Paulo, em 2015, sofreu com os ataques xenofóbicos:

“Eu estava com alguns artistas e produtores e um cara começou meio que tirar sarro porque sou de Manaus, fez perguntas sobre como a gente se comunicava”. Para ele, um dos pontos principais de agora é conseguir se manter com o seu trabalho. “Eu creio que a gente vive uma revolução”, completa, citando a qualidade dos artistas da região Norte e a dedicação dos que tentam movimentar a cena.

Para Lua Negra, a realidade se torna mais limitada quando se é um artista afroamazônida e LGBTQIA+. Ele também sente que o reconhecimento do público de fora parece necessário para que  o reconhecimento chegue para os artistas.

“Estou passando agora na minha carreira o fato de que eu também estou visando ir pra outros estados para tentar expandir na música. Porque chega um certo momento aqui que, para determinados artistas, os nichos sociais ficam limitados. Esses nichos não são suficientes para sustentar uma carreira artística”.

O rapper Jhonatan Leal, do Aposse92, grupo de rap manauara, também descreve as dificuldades. Para ele, os artistas da região fazem seu trabalho acreditando que vai dar certo, mesmo sem recursos ou investimentos. “Eu não acho que consiga viver de música e nem que o rap me traz essa possibilidade hoje em dia. A maioria dos artistas da nossa cidade, ainda mais do nosso gênero, faz porque gosta e espera que dê certo”.

Jhonatan acredita que, apesar de o cenário ter melhorado em muitas questões, precisa muito para que artistas como ele tenham perspectiva de sobreviver da música e investir no próprio trabalho.

“Esse ano as coisas estão melhorando um pouco, não é o que a gente precisa ainda, ainda precisa melhorar muito para conseguir fazer o que tem vontade de fazer. Talento a gente tem, ideia a gente tem, mas ainda não tem apoio. Está melhorando, a galera que está chegando agora está tendo um espaço melhor para trabalhar, mas muita coisa precisa evoluir”, finaliza.

Lary Go e Stela (Foto: Divulgaçao)

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