Mais de 3.500 km separam a comunidade Tikuna, localizada em Tabatinga, no Amazonas, da cidade do Rio de Janeiro, na qual vive We’e’ena Tikuna. A artista coabita esses dois mundos, e circula por muitos outros, para reivindicar uma maior representatividade indígena no combate ao racismo e na defesa aos direitos das comunidades originárias. Ela acredita que é preciso estimular os parentes na ocupação dos espaços institucionais, da mídia tradicional e dos meios digitais, sem que se trate de uma exceção, como ela própria. Protagonismo não apenas em situações pontuais, para preencher a cota da diversidade nas campanhas de marketing, mas permanentemente, em todos os lugares, como estratégia de empoderamento, “atores na TV, empreendedores de novos negócios, líderes em empresas”. Seu convite carrega um sorriso radiante que faz acreditar nessa possibilidade assegurada pela Constituição cidadã, promulgada no ano de seu nascimento. A sétima edição de “A palavra como flecha” traz o poder de comunicação da influencer Tikuna que, para além das plataformas digitais, compreendeu como combater o preconceito e a invisibilidade com seu talento criativo capaz de ocupar muitos espaços de projeção.
Um nascimento, uma promulgação
We’e’ena Tikuna nasceu em 1988, em Umariaçu, área situada na periferia do município de Tabatinga, no extremo noroeste do Amazonas. Umariaçu é considerada uma das maiores comunidades indígenas Tikuna do Alto Solimões, por sua densidade populacional composta por migrantes de várias localidades. Desde os anos 1970, eles chegam da parte alta do rio, que faz divisa com Peru e Colômbia, e da parte baixa, composta por comunidades próximas.
O ano do nascimento de We’e’ena, nome que significa “a onça que nada para o outro lado do rio”, foi marcado por dois eventos que exemplificam a complexidade das disputas em torno das terras indígenas no Brasil. O primeiro, ligado diretamente à luta pela ocupação das terras Tikuna, na área de São Leopoldo, em Benjamin Constant, também na região do Alto Solimões. Episódio que ficou conhecido como o massacre do Capacete, exemplo da violência dos conflitos que, há décadas, envolviam posseiros e Tikunas. Massacre que provocou a morte de 12 indígenas, além de deixar outros 21 feridos, entre homens, mulheres e crianças.
Imagem do livro “A lagríma Ticuna é uma só” do Centro de Documentação e Pesquisa do Alto Rio Solimões de 1988 (Foto: Reprodução).
O segundo evento foi um marco na história recente do Brasil, a promulgação da Constituição Federal de 1988. Carta que trouxe duas disposições importantes em relação aos direitos indígenas: o direito originário às terras que tradicionalmente ocupam e à diversidade étnica e cultural, previsto no art. 231 e seus parágrafos; e o direito ao pleno exercício de sua capacidade processual para defesa de seus interesses, inscrito no art. 232. No mesmo ano, esses dois acontecimentos expressaram simultaneamente terror e esperança na legitimação da vida indígena, sob ameaça há cinco séculos.
Hoje, a disputa legal das demarcações, em diversas partes do país, está circunscrita ao poder do Estado brasileiro, num périplo longo e tortuoso que abarca desde a etapa de reconhecimento até a fase de regularização dos territórios. Se a Constituição em vigor passou a garantir direitos e, sobretudo, eliminou a tutela do Estado, ao romper a lógica que considerava os indígenas seres incapazes para a vida civil e para o exercício de seus direitos, a realidade mostra um fato: o poder de decisão continua nas mãos dos homens brancos. Eles atacam a própria Carta, com emendas a favor dos interesses de corporações, de políticos, de posseiros e de latifundiários do agronegócio.
As três últimas décadas após a promulgação da Constituição, que coincidem com a infância, juventude e formação de We’e’ena, expuseram esses avanços e retrocessos em relação ao direito à terra, à saúde indígena, à educação e, sobretudo, ao desafio intransponível de mover as estruturas coloniais do Brasil. Pouca coisa se alterou na luta diária contra a violência marcada pela invasão por seringueiros, madeireiros, comerciantes, pescadores, agricultores, criadores de gado ou pelas barragens que comprometem modos de vida dos povos originários e ecossistemas na Amazônia.
Mas a jovem, cujo nome ´We’e’ena traz a imagem da onça que se move pelas águas do rio, soube desde sempre dar conta de uma jornada singular para chegar na outra margem desse sistema opressor. A travessia dessa correnteza foi promovida num primeiro momento pela própria família, que buscou como alternativa a mudança para Manaus.
Uma comunidade Tikuna em plena capital
Quarta filha de Totchimaüna, nome que significa “três araras voando”, com o Tikuna Nutchametü rü Metchitücü, cujo nome quer dizer “onça com rosto redondo e bonito”, We’e’ena chegou à capital do Amazonas aos doze anos de idade, junto aos pais e aos cinco irmãos, com o objetivo de estudar o português. “Meus pais sempre tiveram a consciência da importância de termos educação e aprendermos a ler e escrever, a dominar a língua dos brancos para conhecer os nossos direitos”.
Se a primeira infância foi aldeada, vivendo na comunidade de Umariaçu, falando apenas a língua Tikuna, a adolescência ficou marcada pela mudança para a capital. Para lidar com a ameaça da perda de vínculo com a ancestralidade na cidade grande, os pais de We’e’ena adotaram uma estratégia que garantiu a mobilização de outras famílias Tikuna e a criação da primeira comunidade indígena urbana, localizada na zona leste de Manaus, no bairro Cidade de Deus. Hoje o grupo conta com 14 famílias residentes e com os estudantes Tikunas que vivem temporariamente na capital para completar os estudos e defender a própria comunidade, na região do Alto Solimões. “Meu pai e minha mãe sempre nos conscientizaram sobre as minhas origens. Sempre tive orgulho da minha raiz e identidade. Eu tenho todas as caraterísticas Tikuna, não tenho como me esconder”.
Associação Comunidade Wotchimaücü no bairro Cidade de Deus em Manaus ( Foto: Arquidiocese de Manaus / 2019).
O choque da mudança para a capital foi inevitável e a pequena Tikuna sentiu na pele as dificuldades de aprendizagem da língua portuguesa e, consequentemente, de matemática, geografia e história. “Repeti duas ou três vezes o ano escolar. Naquela época, os professores não eram capacitados para lidar com a minha situação, não tinham paciência comigo. Eu chorava com meu pai, que foi o meu verdadeiro professor, mesmo com o pouco conhecimento que ele tinha da cidade. Ele foi meu professor analfabeto”. O esforço da família garantiu, também, a conexão com a natureza e Umariaçu. Nas férias, todos voltavam para comunidade e, assim, viviam entre aldeia e cidade.
Conhecer para se defender
We’e’ena conta que existem três tipos de indígena Tikuna: o aldeado sem contato com os centros urbanos e sem conhecimento da língua portuguesa; o que está se capacitando na cidade, na fase de assimilação da vida na metrópole; e o indígena urbano, com o qual ela se identifica, aquele que já entende os próprios direitos, conhece as leis, já viveu as violências da cidade e está a par do mundo da política, da mídia e das redes sociais.
“Não deixamos de ser indígenas porque nos conectamos com a tecnologia. Até nisso sofremos preconceito”, diz. Ao lembrar o Massacre do Capacete, fica evidente que o ocorrido determinou a necessidade de dominar o idioma do branco. Os indígenas participavam de uma assembleia, organizada pelo próprio grupo, quando foram abordados. Não sabiam falar o português, não sabiam argumentar para se defender das pressões e das investidas no território. Sua mãe, ciente dessa situação, sem nunca aprender a língua dos brancos, capacitou os filhos para não repetirem a história.
We’e’ena Tikuna e sua mãe Totchimaümã, que na língua Tikuna significa “Três Araras voando” ( Foto: reprodução redes sociais).
Totchimaüna Tikuna viveu a tradição do casamento arranjado entre as famílias Tikuna e, ao contrário da filha, não se casou por amor. “Ela foi obrigada a se casar. As famílias escolheram o relacionamento deles. Meu pai era conhecido como bom pescador, um bom caçador”, relata. O casamento se deu dentro das condições favoráveis para a criação de uma célula familiar estável. We‘e’ena pondera que não foi por falta de alimento ou terra que a família mudou para Manaus. O objetivo era o de ter a primeira geração Tikuna de estudantes formados na universidade. “Hoje meu irmão mais velho é professor de português nas aldeias, outro é formado em administração e gerencia a distribuição de energia para as comunidades Tikuna e eu sou formada em nutrição. A formação que tivemos foi muito importante”, avalia.
We’e’ena Tikuna no dia da sua formatura no curso de Nutrição ( Foto: Reprodução redes sociais).
A comunidade urbana criada pelos pais de We’e’ena se mantém ativa. O grupo preserva a prática dos rituais, as assembleias gerais e a língua Tikuna como idioma corrente, em plena Manaus. A experiência da cidade também tem o lado positivo e conta com uma rede de solidariedade que se formou com a participação de professores e voluntários. Uma série de iniciativas foram feitas para ajudar na adaptação dos jovens estudantes Tikuna. Em 2013, foram doados computadores para a comunidade, facilitando as aulas de informática. “Aprendemos a criar e usar nossos e-mails e perfis nas redes sociais”, afirma.
Esse processo adaptativo expõe desafios que vão muito além do domínio do português e que tem a ver com a distância que se impõem entre a cosmogonia indígena – como produtora de um conjunto de ideias, sistema de valores e percepção de mundo – e a educação no Brasil ocidental. A pedagogia da escola brasileira se dá numa lógica muito distinta da experiência de conhecimento indígena e tudo se agrava com o racismo. Sem um acompanhamento adequado, pode-se produzir um choque cultural capaz de gerar um rechaço do aluno recém-chegado da comunidade originária. “Dentro da escola a gente descobre o preconceito. As pessoas me chamavam de índia. Até a adolescência, eu não conhecia essa palavra. Na reserva, a gente não sabe o que é preconceito, a gente só vive isso quando pisa na cidade e percebe as pessoas olhando diferente”.
Justificar os fatos, criar teses, lidar com o conhecimento abstrato, oposto da forma empírica como garantia de aprimoramento, foi muito difícil de assimilar. “No mundo da academia é o título de doutor que valida a veracidade, que valida o saber. Eu não sabia falar português, mas sabia desenhar, sabia pintar os grafismos Tikuna. O indígena nasce artista. A matéria que me salvou na escola foi artes. O jeito foi me capacitar e aprender a falar da mesma forma que se fala na universidade”, reflete.
Proteger o legado, a comunidade e, ao mesmo tempo, ocupar o espaço institucional brasileiro demanda uma movimentação surpreendente. A estratégia é oposta a dos que creem que a legitimidade do protagonismo indígena deva se restringir aos territórios originários, como uma medida de autenticidade e representação. “Por que temos as nossas características e falamos o português como segunda língua, sempre ouvi críticas de como falo errado. Até hoje eu estou aprendendo o português, mesmo vivendo na cidade. Até hoje não tivemos um resultado para mostrar no Ministério dos Povos Indígenas, porque a nossa luta é árdua, com muita coisa para fazer dentro e fora do nosso território. São parentes morrendo de fome, muita violência de todo o tipo. Estamos no século XXI e são apenas três mulheres nos representando: Joenia Wapichana, presidente da Funai; Celia Xakriabá, deputada federal indígena; e Sonia Guajajara, ministra dos Povos Indígenas. Elas também sofrem racismo e preconceito dentro do próprio trabalho. Não conseguem abraçar todas as comunidades”.
Fama, o território mais desafiador
We’e’ena Tikuna com indígenas e modelos durante desfile na Brasil Eco Fashion (Foto: Agência Fotosite).
Podemos tomar emprestada a imagem de um rio amazônico para compreender a dimensão do desafio que as mulheres indígenas enfrentam quando se inserem na cena nacional. Com We’e’ena não foi diferente. As duas décadas que distanciam a vida de aldeada no Alto Solimões da experiência nas cidades de Manaus, São Paulo e Rio de Janeiro carregam altas doses de resiliência e superação. Da aluna com muitas dificuldades e reprovações em série até o papel de criadora de uma coleção para a Brasil Eco Fashion Week, em 2021, o que legitimou seu espaço foi a própria capacidade e talento, em qualquer das atuações. E são várias: artista plástica, cantora, palestrante, nutricionista, design de moda e ativista dos direitos indígenas.
A criatividade ganhou reconhecimento em múltiplos espaços, nas artes plásticas com obras no acervo do Museu Histórico de Manaus, o prêmio de “melhor artista plástica indígena do Brasil” pela Sociedade Brasileira de Educação e Integração e o prêmio Quality Internacional do Mercosul. Na música, como compositora e cantora, levou seu primeiro trabalho discográfico “We’e’ena-encanto indígena” para a Festa Nacional da Música, em 2017, para a edição da FLIP 2019 e para a abertura da Rio+20, entre vários outros eventos. Como ativista, palestrante e profissional da saúde, se destacou como presidenta das mulheres brasileiras indígenas na Liga das Mulheres Eleitoras do Brasil. Atualmente, realiza shows e faz palestras sobre a cultura indígena e o meio ambiente pelo Instituto Brasileiro de Defesa da Natureza (IBDN). Como nutricionista, trabalha a reeducação alimentar com base da cultura Tikuna, com participação na coautoria do livro “Isto não é um (apenas) um livro de receitas – é um jeito de mudar o mundo”, publicado pelo Instituto Comida do Amanhã.
A moda ganhou um lugar de destaque no seu trabalho com a primeira grife contemporânea totalmente idealizada por uma indígena, no Brasil. A marca We’e’ena Tikuna Arte Indígena trabalha exclusivamente com algodão e fibras de tururi, madeira típica da Amazônia. Com tingimentos naturais de jenipapo, urucum e babaçu, os tecidos ganham grafismos Tikuna presentes nos desenhos corporais que expressam a cultura e tradição do seu povo. “A gente trabalha em grupo. O tururi demanda uma técnica de coleta muito difícil. Quando vejo uma peça minha na passarela, ali também está a mão da pessoa da comunidade que trabalhou na chuva e no sol. O meu povo Tikuna ficou com o nome grande. Criamos um tecido que nunca tinha sido utilizado num evento de moda. Foram 20 looks do primeiro desfile indígena numa passarela. Depois de 2019, começaram a nascer várias marcas indígenas. Agora, somos muitos os artistas empreendedores”.
Participação de We’e’ena Tikuna na 7ª edição da semana de moda BEFW, sob o tema ‘Conectando Brasilidades’ ( Foto: BEFW/2023).
Como figura pública, teve que lidar com a superexposição em outra vereda muito mais perigosa que a floresta, a internet. Distante das dinâmicas tradicionais dos casamentos arranjados, que fazem com que uma Tikuna aldeada case muito cedo e chegue a ser avó por volta dos 30 anos, We’e’ena vive um matrimônio interracial com o músico espanhol Antón Carballo, violinista da Orquesta Sinfônica Brasileira, com sede no Rio de Janeiro, cidade na qual o casal vive.
Em 2023, quando a filha do casal completou dois anos, ela reduziu a agenda como influencer para dedicar mais tempo a I´étüna Tikuna, cujo nome significa “os olhos pequenos da arara”. Quando a criança nasceu, o período de trabalho era tão intenso que We’e’ena chegou a produzir conteúdos em vídeo até a primeira semana depois do parto. A maternidade também serviu de inspiração para outra mudança de padrão: a criação das bonecas We’e’ena Tikuna, uma oportunidade de representação indígena também no universo infantil. Se, num primeiro momento, a resistência da família ao casamento interracial foi manejada com diálogo e tranquilidade, a arena da internet fez barulho com a notícia da sua união com um homem branco europeu. “Eu sempre ouvi em casa para não ter vergonha de ser quem eu sou. E quem poderia imaginar que daria palestras na Europa? A nossa história mudou”, diz com um sorriso que expressa a alegria de uma mulher Tikuna que se movimenta, sem medo do preconceito e do desconhecido.
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Ibã Huni Kuin
Puyr Tembé
Davi Kopenawa Yanomami
Tiago Hakiy
Brô Mc’s
Márcia Mura
We’e’ena Tikuna com indígenas e modelos durante desfile na Brasil Eco Fashion (Foto: Agência Fotosite).
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