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A palavra como flecha - Ibã Huni Kuin

A palavra como flecha – Ibã Huni Kuin

O cacique Ibã Huni Kuin, sucessor em uma linhagem de pajés guardiões da cultura do povo Huni Kuin, faz da própria autoridade xamânica uma reinvenção da tradição. De 1983, quando cursou a formação de professores indígenas, até hoje, como pesquisador da Universidade Federal do Acre, todo aprendizado para o desenvolvimento da escrita da própria língua Huni Kuin permitiu ir muito além do seu registro. Como um xamã, esses recursos possibilitaram a compreensão de outras dimensões do saber e, sobretudo, a difusão da cultura do seu povo. Segundo ele, um trabalho no qual reinventa a tradição e o saber Huni Kuin, por via do nixi pae, a Ayahuasca. A sexta edição de A palavra como flecha, que apresenta as histórias de vida de personalidades indígenas da Amazônia Legal, traz o poder da floresta através da visão de um artista que aposta em outros modos de acessar o conhecimento, capaz de enxergar nos vestígios da cultura imaterial o ato transformador que sustenta seu legado.


“Eu escuto o português igual ao francês. Ouço, mas não entendo”. Com essa observação, o cacique Ibã Huni Kuin, também com o nome de Isaias Sales, 59 anos, me preparou para um diálogo no qual a nossa aproximação não seria guiada pela língua do colonizador. A advertência chegou com um sorriso amistoso que me causou inquietação para saber como se daria nossa conversa. A inteligência na abordagem proposta por Ibã tem a ver com reivindicar para si uma outra possibilidade de transmissão de conhecimento. Um convite para conduzir, de acordo com suas habilidades, meu entendimento sobre a cosmogonia indígena no processo de recuperação da cultura Huni Kuin. Mais do que uma visão de mundo, cosmogonia significa um corpo de princípios religiosos, míticos e científicos que faz de todos nós, do Brasil ocidental, estrangeiros no território e distantes da força ancestral da floresta. 

Defender o legado dos Huni Kuin exige do cacique uma habilidade a mais que é a da recuperação de um sistema completo da narrativa mítica fundadora, que tampouco escapou da violência dos invasores. A tentativa de apagamento desses saberes originários foi e é constante. Frente a esse panorama, seguimos com a prosa trilhando um caminho menos óbvio para conhecer os desafios, tais quais o uso da tecnologia, as condições gerais de manejo da terra, e, principalmente, a recuperação e difusão dos conhecimentos ancestrais como estratégia de fortalecimento intergeracional.

Ibã Huni Kuin se apresentou: “Eu sou professor, cacique da aldeia, tenho 59 anos. Eu sou povo da floresta, falo hãtxa ku, sou linguístico pano, tenho quatorze filhos, trinta e dois netos e quatro bisnetos. Estou rodeado de gente. Entre os da minha casa e os da minha família são umas oitocentas pessoas. Eu sou artista, canto os mitos do surgimento, de onde vinham os povos, canto a diversidade cultural. É sobre o espírito da floresta que vamos falar, da cultura, do conhecimento que eu tenho e como se deu esse conhecimento de geração para geração”. 

Uma evocação do elo entre o bisavô, o avô, o pai e, também, o filho e o neto, numa compreensão da importância da transmissão desse conhecimento. Saber comprometido com a própria envergadura da tradição e do seu alcance. “É a pedagogia do povo Huni Kuin, música do nixi pae. Nixi é igual a fio, cipó, pae é igual a encanto. Eu aprendi com meu pai a música da Ayahuasca nixi pae, conhecimento com as ervas, arbusto de cura. Soprar rapé, passar no corpo nossa cura que serve para nos proteger. Eu vou falar de três coisas: céu, pássaro e jiboia.”

Ibã entoa seu canto e quando termina a canção me olha e diz: “Você me ouve, mas você não entende”. Ele faz questão de marcar a dimensão do que nos distancia. Sua pedagogia enfatiza o cuidado para que a partilha não seja interpretada de forma aleatória. Nesse caso, o que é comunicado em português serve apenas de tática para sustentar o que se diz na língua Huni Kuin. Ele conduz e eu, por não saber, não compreender, não ver o que ele vê, me deixo levar pela vibração do canto com as variações de sons guturais. Depois, o cacique me explica que aquela música chegou a ter uma letra que ele escreveu em português, mas que essa escrita não faz parte da cultura Huni Kuin. A ajuda da linguística para registrar o som da fala resultou num excesso de consoantes do nosso alfabeto latino, ficou muito difícil. Ele completa: “Não tem tradução quando se sente com o corpo, com a alma, essa é a língua verdadeira, a língua do pai superior, do espírito forte. Esse é o som da floresta, que vem da floresta.”

A falta de tradução não impediu Ibã de escrever um livro na própria língua com a música que ganhou corpo quando ele começou a desenhar. Segundo o cacique, essas músicas não servem apenas aos povos indígenas, servem para o planeta, para o povo, para o espírito da gente.  “Eu não tenho como falar tudo, eu não sei falar, eu não sei interpretar como se fala, é muito diferente. Minha pintura é a letra da minha música, eu pintando falo do que a música diz. Música imaterial que eu fiz material. Eu pinto música.”

Na escola não indígena é melhor desenhar 

Os desenhos são miração, que é o êxtase da revelação como força do conhecimento. Ibã reforça que a música também é miração. É a fala da Ayahuasca, que revela mitos e imagens, como efeito do chá preparado com a combinação de um cipó e das folhas de um arbusto da Amazônia que, também, é a medicina tradicional dos povos da floresta e do nixi pae. “Tem a música para abrir chamada, chamar a luz, os caminhos, abrir os trabalhos.”

O cacique volta a cantar e explica que a segunda canção tem a ver com mirar a própria miração: “Quando eu pinto os detalhes, vou falando pela pintura, cantando e aprontando o desenho. Você entende muito bem o significado¨. Ele faz um gesto e simula desenhar com o dedo no ar, diante da câmera do computador. ¨Animais: a jiboia vem, a jiboia te abraça, você vai voando, você vai se encontrando, você vai vendo material antigo. A música explica isso: tem chapéu grande, tem chapéu colorido, tem cadeira, tem flecha, tem borduna. Você vai mirando.”

Se essa conversa tivesse acontecido há tempos atrás, ficaria mais difícil acompanhar a narrativa de Ibã. Mas algo mudou substancialmente nos últimos tempos com a difusão da arte indígena nos museus e centro culturais das capitais brasileiras. Fato que contribuiu para que os elementos descritos pelo cacique encontrassem eco num conjunto de cores, desenhos e linhas presentes na minha memória. Uma plasticidade rica de elementos gráficos que promoveram a inserção da cosmovisão indígena no mais disputado circuito brasileiro das artes plásticas. Momento que culminou com a 34ª edição da Bienal de São Paulo, que ficou conhecida como a “Bienal dos Indígenas“. O que Ibã desenha com os dedos enquanto fala comigo pelo vídeo, num conjunto etéreo de linhas, dialoga diretamente com os elementos presentes nos trabalhos de Daiara Tukano, Sueli Maxakali, Jaider Esbell, Uýra, Denilson Baniwa, Gustavo Caboco – entre outros artistas presentes na edição da mostra.

Segundo Ibã, o uso da tecnologia e da mídia digital favorecem, também, a conexão ancestral dos Huni Kuin que não tomam Ayahuasca. “Tem muito parente com medo de nixi pae, que não gosta de ver lagarta, que não gosta de ver jiboia”. Portanto, para o cacique é possível a partilha desses saberes, através de desenhos e vídeos, com o objetivo de alcançar aqueles que têm receio da miração. “Com a bebida sagrada você vê muita luz, então a minha pintura é vermelha, verde, branca, preta, amarela, rosa. A miração que me faz ver isto. Por isso, coloquei no DVD, daí mesmo quem não comunga, assiste a miração pelo DVD. Eu fiz isso para não perder a visão, a cultura e o conhecimento que eu tenho.”

O que a borracha tentou apagar e o que sobreviveu no arquivo-pessoa

Todo o processo de recuperação e transmissão de conhecimento do saber Huni Kuin lida com as marcas de apagamento de usos e costumes, promovido ao longo de anos de violência praticada contra os povos originários, da região do seringal Fortaleza, colocação chamada Buraco, dentro do rio Maxi Tupiya, conhecido como rio Jordão. Local onde está a aldeia que leva o nome do avô de Ibã, aldeia Chico Curumim. A comunidade foi marcada pelo ciclo da borracha no Acre, na divisa entre o Brasil e o Peru. “Antes quando nós éramos seringueiros nós escutávamos forró, perdíamos conhecimento. Na hora que falávamos a nossa língua, eles brigavam com a gente: não fala isso não, eu não entendo a sua língua, tem que falar igual a gente! O som da cidade muito forte tirava o nosso conhecimento.”

Ibã aponta como esse silenciamento comprometeu um aprendizado que se dá na oralidade, “o arquivo está na pessoa e não tem nada escrito. Quando morre, acaba. O arquivo já era”. O arquivo-pessoa dá a dimensão da importância do que o cacique disse no primeiro momento do encontro: “Eu tenho umas oitocentas pessoas em volta de mim”. Cada uma delas é responsável pela resistência da cultura Huni Kuin, em seus diferentes estágios de vida, e essa rede reflete a possibilidade de preservação cultural do próprio povo a partir do legado ancestral. 

O cacique reverencia a memória preciosa da figura paterna, Romão Sales Tui, com uma vida longeva de 97 anos. Ele herdou os conhecimentos do avô de Ibã, Chico Curumim Tene. “Tem muito dessas falas antigas dentro do meu pai. Falas com a família dele, desenvolvimento de linguagem, aprendizados sobre o tipo de preparo e os motivos para comungar a bebida. Aprendi três músicas: tem a raiz para chamar a força e trazer a miração (pae txanima), tem a raiz do mistério que é a música de miração (dau tibuya) e a música para diminuir a força (kayatibu) que pede força de cura e limpeza. São três raízes, mas o resto é música infinita. Assim, estamos desenvolvendo o nosso conhecimento para a nova geração, o novo tempo. Não é mais o meu avô, é o neto dele que está falando contigo.”

Sentir a força da floresta como nixi pae, possibilita ao cacique o contato com a ancestralidade que herdou do pai e do avô e um contato com a língua mais antiga. Ela reverbera o tempo todo, mesmo que, hoje, tudo seja diferente da realidade em que viviam antes – entre passarinhos, animais de todos os tipos, num colorido presente no corpo e na vida da comunidade. Parte do repertório que o cacique utiliza para expressar as cores da miração é composto por miçangas, tecelagem de algodão, materiais que tornaram os Huni Kuin conhecidos como kambriá, que quer dizer pintura.

Ibã também aponta a importância da tecnologia para zelar pelo saber proporcionado pela Ayahuasca, para compartilhar luz, para difundir a experiência Huni Kuin que é conhecimento sobre o planeta, sobre o povo em geral. “Primeiro, eu fui proibido de mexer em tecnologia pelo meu cacique, mas quando eu estava na escola não indígena tinha que mexer. Oralmente era difícil de aprender, demorava muito. Pedi pra me liberarem, precisava gravar meu pai. Registrei e, com o tempo, pude escutar tudo muito presente e forte. Com a tecnologia, eu desenvolvi a língua e a música. Até agora, eu estou escrevendo o que eu gravei.”

Nós estamos falando, aqui, sobre o conhecimento do povo Huni Kuin para defender o idioma, a música, ele me alerta. “Vamos cuidar bem do tema da floresta, onde você pode sentir a experiência, a geografia. Nosso povo foi muito massacrado junto com o Kaxinawá.” Etnia que também pertence à família Pano que habita a floresta do leste peruano, do pé dos Andes até a fronteira com o Brasil, no Acre, e no sul do Amazonas, que abarca respectivamente a área do Alto Juruá e Purus e Vale do Javari. Ibã complementa: “Nós perdemos esse conhecimento, essa linguagem. A pandemia matou muito conhecimento dos meus antigos, mas tem muita coisa boa ainda para o povo Huni Kuin.”

Atualmente, uma das preocupações de Ibã é preservar a autonomia produtiva do seu povo.  O plantio da banana, da macaxera, do cará, do milho massa, da cana, do inhame, da batata doce, demanda um monitoramento da própria comunidade. “Ganhamos um pedacinho de terra, mas ela não cresce. O que aumenta é a população.” A nova realidade impôs um tipo de controle produtivo por conta do manejo ambiental. “Antigamente nós não tínhamos isso. Hoje, se derrubar mogno não nasce mais mogno, nasce embaúba, nasce paco-paco. Assim, a semente vai migrando e também as ervas medicinais. Tudo muito frágil nesse tempo do fim do mundo. Eu entendo assim, sinto tudo diferente. O rio mudou o curso das águas, a terra exige manejo. Tudo tem que combinar. Hoje, o que a gente mais se preocupa é saber como plantar, saber como que é fabricado o frango de granja. Eu prefiro criar o caipira. Deixar a semente diferente e não mexer muito nisso. Cuidar do alimento dessa terra. Por exemplo, não trazer semente de eucalipto que mata a floresta.  Nossa região tem uma terra boa para plantar e comer. Podemos deixar de comer enlatado ou arroz de longe, sem proteção porque passamos mal. Se você não sabe ler, eles se aproveitam e te envenenam.  Essa é uma preocupação. Por isso, tem que compreender e falar a língua, tem que estudar o português. Isso me chateia.”

A língua antiga fica escondida, é preciso ouvi-la

O cacique criou o projeto chamado Mahku – Movimento dos artistas Huni Kuin com o objetivo de sustentar o desenvolvimento da língua ancestral, a partir da pesquisa e recriação artística dos cantos visionários do nixi pae, a Ayahuasca. Com Amilton Pelegrino de Mattos, pesquisador e professor de Licenciatura Indígena da Universidade Federal do Acre (Ufac), conhecida como Universidade da Floresta e seu filho, o artista visual Bane Huni Kuin, articularam o coletivo que surgiu para cuidar da própria cultura, conhecimento e modo de vida. “É a universidade do povo Huni Kuin”. Mahku pode ser entendido como a força do espírito, da Ayahuasca, das pinturas, das músicas, da miração. Os jovens estão aprendendo a linguagem com os antigos. A língua eles não perdem mais, estão desenvolvendo muito bem, avalia Ibã. Estão praticando na escola, tanto os indígenas Huni Kuin como os não indígenas, os nawa, povo branco da escola, da universidade, os jornalistas, acrescenta.  O grupo atua em multimídia e produz telas, murais, filmes, copos, bolsas e desenhos. 

O cacique se orgulha ao falar que seus alunos viajam para o exterior com a música da Ayahuasca, como os únicos falantes da língua Huni Kuin. Ele é enfático: ¨As coisas sérias você tem que conhecer com o mestre. Sobre a Ayahuasca, a experiência tem que trazer felicidade, segurança. O que você recebe, nunca esquece. Você entende tudo. A chance de ver o preparo do nixi pae, ver macerar, cozinhar a folha, sem mistura. Na hora certa, oito da noite, em cinco minutos começa a esfriar o corpo, começa a alegria, começa a luz. Você ri e entende. Imagina ainda que não sentiu isso? Quem quer estudar só a ideia? O melhor é sentir. Você comunga, entende essas músicas e essas pinturas lindas.¨ 

Na condução da conversa, Ibã sinaliza com um gesto de aproximação: “Tem txai (não indígena) que quer experimentar a cultura, a aliança com a gente. Vamos conectar, trocar experiência. Precisamos de mais aulas sobre como plantar verdura, fazer horta, aprender como vocês comem a verdura.” A proposta feita pelo cacique é a de que a partilha do conhecimento promova uma contribuição com o espírito da família Chico Curumim e toda a comunidade. Dessa maneira, a língua que se manifesta se dá pelo encontro que permite revelar os ensinamentos na base da cooperação.

As informações apresentadas neste post foram reproduzidas do Site Amazônia Real e são de total responsabilidade do autor.
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