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A palavra como flecha – Brô Mc’s

A palavra como flecha – Brô Mc’s
Por Amazônia Real

Brô Mc’s, primeiro grupo de rap indígena do Brasil, vive um ano especial. Da dobradinha com o rapper carioca Xamã, na próxima edição do Rock in Rio, à parceria com o Instituto Alok, responsável pelo projeto de um estúdio de gravação dentro da Reserva Indígena de Dourados (MS), podemos acreditar que se trata de um momento de sorte. Entretanto, as oportunidades têm mais a ver com a perseverança e a resiliência dos seus integrantes, atributos intrínsecos à luta dos Guarani Kaiowá. A segunda edição de “A Palavra como Flecha”, que apresenta as histórias de vida de personalidades indígenas, alcança essa aliança entre as reivindicações dos povos originários e o som dos beats na cultura hip hop. O grupo Brô Mc’s usa o guarani, o português e o espanhol para expressar o máximo possível um estado de prontidão pelo fortalecimento da quebrada, no limite do que se experimenta na reinvenção da própria identidade.

As imagens de Kelvin Mbaretê e Bruno Veron apareceram em dois pontos distintos da Reserva Indígena Francisco Horta Barbosa, em Dourados, no Mato Grosso do Sul. Nossa conversa começava desse jeito, adentrando num mesmo espaço virtual que reunia eles próximos à divisa com o Paraguai e eu na capital paulista. Dessa forma o encontro seguiu seu curso com a presença de dois dos quatro integrantes do Brô Mc’s, composto também por Clemerson Batista e Charles Peixoto, que juntos criaram o primeiro grupo de rap indígena do Brasil, hoje, com 13 anos de atuação.

Vez por outra, algumas imagens das câmeras dos celulares de Kelvin e Bruno congelavam e a interrupção me devolvia fotos do momento. Como se a pausa na conversa abrisse espaço para eu prestar atenção nos enquadramentos visuais de cada um deles. Kelvin à frente de uma casa de alvenaria sem reboco, com janelas de ferro muito pequenas, e Bruno destacado do fundo composto por um bambuzal que garantia uma textura capaz de ressaltar seu belo cocar bem de perto.

As imagens me fizeram notar o que adiante pude confirmar: entre o retrato dos indígenas e os cenários das duas situações havia um descolamento. Tratava-se de um território com aspectos de periferia de cidade.  A aldeia, como Kelvin a chama, é uma síntese da política indigenista da primeira metade do século 20. Situada junto aos bairros periféricos da região metropolitana de Dourados, esse território indígena foi criado como tal a partir de uma manobra política que envolveu o poder público em ação contra as etnias da região, os Guarani e os Kaiowá, há mais de cem anos.

Caldeirão étnico

Os Guarani e os Kaiowá estão na região de Dourados desde muito antes dos primeiros colonizadores europeus chegarem ao continente. Entretanto, a região ganhou evidência somente após a Guerra da Tríplice Aliança contra o Paraguai, entre 1864 e 1870 e, como consequência, com a política de nacionalização e povoamento da fronteira por não indígenas. O momento propiciou ao argentino Tomás Laranjeira fundar a Companhia Matte Laranjeira, que se tornou um império extrativista baseado na ocupação de terras públicas por meio de contratos de arrendamentos e na exploração, em condições análogas à escravidão, da mão de obra de indígenas e de trabalhadores paraguaios. Com a proclamação da República, em 1889, dá-se início à política sistemática de povoamento no antigo sul do Mato Grosso.

Como estratégia de cooptação dos povos originários, no início do período republicano criou-se o Serviço de Proteção aos Índios e Localização dos Trabalhadores Nacionais (SPILTN). A ideia era contribuir para o aldeamento dos povos indígenas e transformar essa população em, como o nome diz, trabalhadores nacionais. Nesse contexto, no final da década de 1910 nasce a Reserva Indígena de Dourados, abarcando uma pequena área de 3.600 hectares. O projeto atendia à estratégia de confinar os Kaiowá e os Guarani (Nhandeva) num determinado espaço a fim de liberar as terras originárias para a exploração dos ervais nativos, com a contribuição da própria mão de obra indígena.

São marcas históricas que estão presentes no ambiente e no olhar que os músicos lançam sobre a realidade em que vivem. Havia neles a evidência de um estado de prontidão: eles falavam de pé, segurando seus celulares com suas respectivas câmeras que devolviam as imagens da terceira geração nascida dessa confluência histórica, como rappers da Reserva.

Dentre os vários sentidos, podemos compreender o significado de reserva como provisão ou fornecimento, no caso, de mão de obra barata. Ou, ainda, compreender reserva como substituição do lugar, pela negação do direito de posse de terras ocupadas tradicionalmente pelas etnias e o manejo da comunidade para outra área. Primeiramente para trocar terras com riquezas naturais por terras menos produtivas, sufocando a agricultura de subsistência; segundo, para forçar os indígenas a trabalhos mal remunerados na monocultura implantada nas áreas que antes pertenciam à própria comunidade. Estratégia exemplar como prática colonialista recorrente na história do país, mesmo na condição de Estado independente.

Em Dourados, o contato dos indígenas com os não indígenas trouxe desdobramentos importantes: a concentração das etnias no mesmo território, além dos Guarani e dos Kaiowá, os Terena foram trazidos para partilhar a habilidade na agricultura. Lá também aconteceu o inevitável processo de catequização com a fundação da Associação Evangélica de Catequese dos Índios, a Missão Evangélica Caiuá, no final da década de 1920.

Hoje, segundo a Fundação Nacional do Índio (Funai), a Reserva que presta homenagem ao funcionário do Serviço de Proteção ao Índio (SPI), Francisco Horta Barbosa, é formada pelas aldeias Bororó e Jaguapiru, com mais de 15 mil habitantes de etnias Guarani, Guarani Kaiowá, Guarani Nandeva e Terena, além de mestiços, paraguaios e não índios casados com indígenas. O rap dos Brô Mc’s é resultado da crônica social desse caldeirão étnico, cuja violência impressiona. Os dados divulgados pelo Ministério Público Federal (MPF), entre 2012 e 2014, revelam que a média nacional de homicídios em Mato Grosso do Sul foi de 26,1 por 100 mil. Na Reserva Indígena de Dourados, 101,18 homicídios por 100 mil habitantes.

Ritmo e poesia 

Ilustração: Levi Gama; Cores: Ananda Cid

Da violência dos indígenas como fornecidos, como substitutos, calados porque eram concentrados para tornarem-se mão de obra barata, a Reserva Indígena Francisco Horta Barbosa ganhou voz própria com novos apelos e significados.

Compreender reserva também como sinônimo de guarda é pensar no que é possível recuperar pela ancestralidade; como segredo, no que se revelou como espírito de luta. Talentos como os dos integrantes do Brô Mc’s, que são capazes de usar o aparato geral da cultura hip hop, o grafite, a dança e a música, para comporem letras repletas de críticas sociais.

Eles utilizam o rap para reivindicar a integridade dos reservados, cantam em guarani, português e espanhol. O objetivo é falar com a maior audiência possível, com o não indígena, para que conheça a realidade da luta, para alcançar os parentes que moram na região da Argentina e do Paraguai, “para que eles também possam se identificar e possam se levantar, falar dos problemas do dia a dia no rap ou em outro estilo musical. As três línguas são para falar com mais parentes”.

Bruno recorda que era criança quando começou a ouvir rap. “Foi em 2000, 2001, quando meu pai estava trocando de faixa no rádio à pilha, eu escutei uma música diferenciada no meio, uma batida que era muito massa de ouvir”. A chance não escapou, tratava-se do programa chamado Ritmos e Batidas que ia ao ar nos fins de semana. “Tocava raps internacionais e nacionais. Com o tempo eu comecei a prestar mais atenção no que a letra estava falando. Eu tinha 7 ou 8 anos quando me deparei com o que os caras estavam dizendo das suas quebradas, como viviam a realidade”.  Nesse ponto da conversa, Bruno parece muito próximo daquele instante em que, menino, compreendeu como poderia se valer do rap para expressar sua visão crítica. “Eu ficava ouvindo e não tinha ninguém que falasse isso por nós. Ninguém para dizer: o povo Guarani Kaiowá está aqui! Saca?”

Os acontecimentos não encontravam eco diante da versão que a mídia propagava sobre os conflitos no território. “A televisão e o rádio distorciam tudo o que acontecia, toda a nossa realidade.Isso me deixava mais assim, nervoso. Só que eu era moleque, ninguém ia acreditar em mim, me ouvir. O único caminho que encontrei para me expressar foi a música, fazer rap indígena e desde aí a luta começou”.

A formação com Kelvin, Clemerson e Charles ampliou o ritmo da batida. A identificação com outros grupos nacionais encorajou a criação de letras que expõem as tensões e mazelas da quebrada Guarani Kaiowá. “Eu queria ser ouvido pela música e pela rima. Eu estou com 28 anos de idade, se não me engajasse nesse movimento que criei, acredito que não estaria mais vivo. Quem me manteve vivo até hoje foi a música”. O ano de 2009 marcou a realização do sonho de gravar e ser ouvido pelos amigos, foi o lançamento do primeiro e único CD demo do grupo.

Segundo o rapper, o chamado da tradição também exigiu que se mostrasse que o povo indígena “não é só maracá, não é só flechinha, não é só reza, não é só ficar dentro da oquinha sendo ultrapassado”. O que fica claro para Bruno é a vontade de chegar onde quiser ir e acolher qualquer pessoa que se identifique com as histórias que são contadas. Inspirar a geração que está crescendo agora. Levar a mensagem ao não indígena e ao parente de outro estado. Fazer circular o que a experiência de um ambiente opressor também foi capaz de guardar de positivo através das letras e das batidas do Brô Mc’s.

O beat da resistência

Kelvin enfatiza que a presença dos Guarani Kaiowá e dos Terena são a fonte de inspiração para as criações do grupo. “Toda a letra que a gente faz é inspirada na luta do nosso povo. O mais importante é a língua. A gente utiliza a língua materna para cantar as nossas músicas. É uma forma de fortalecer essas lideranças que estão na retomada, colocar toda essa musicalidade tradicional em forma de poesia, de rap que é o nosso estilo”.

Um ponto delicado que o rapper faz questão de explicar é o cuidado com os cantos de reza. Eles não podem ser cantados de qualquer forma, fora do contexto. Necessário toda uma preparação. “Nas nossas músicas a gente coloca algumas partes dessas rezas, também utilizamos as danças tradicionais das festas tradicionais. O guarro e o borarei, que são cantos tradicionais destinados aos nossos deuses”.

A proximidade com a cidade de Dourados aparece no jeito como as pessoas se referem à região: periferia de Dourados e aldeias. Segundo Kelvin, não há muita diferenciação nessa geografia, mas sim na maneira de viver. Mesmo toda essa proximidade só garantiu a chegada da internet em casa há um ano. Se antes tudo se concentrava no celular, agora a possibilidade de receber o sinal no computador descortinou o mundo da produção instrumental. Kelvin pesquisa no YouTube uma gama variada de possibilidades: mixagem, melodia, criação. “Agora, com a torre da internet via rádio, estou aprendendo a fazer meus próprios beats”.

Essa gama de possibilidades que aproxima e distancia a aldeia e os bairros da periferia proporciona várias tensões e choques culturais. Brancos casados com indígenas, a proliferação de igrejas, a circulação intensa de automóveis e a diminuição da presença das tradicionais casas de reza indígena são alguns exemplos. Tudo isso passa pelos olhos e brota como verso para o Brô Mc’s. Bruno relembra o pensamento do avô, “o pedaço de terra é a gente, pedaço da natureza. Se a gente não mostrar essa questão para o não indígena ou para os parentes que vivem longe, a gente não vai se fortalecer. Nossos avós, nossos tios, foram jogados nessa reserva para destruírem a nossa cultura”.

O tom de indignação sobe uma oitava e a conversa ganha a amplificação de quem exige ser ouvido: “Aqui, não tem mata, nem rio, nem córrego. Aqui é um lugar deserto. Nossos avós e tios tentaram voltar para o tekoha (aldeia em guarani) e se depararam com criação de gado, fazenda, arame farpado, plantação de cana de açúcar e soja, por isso há o conflito. O indígena tem seu lugar sagrado e sabe de onde saiu”.

Escutar a voz da tradição num ambiente que experimenta o apagamento do modo de vida indígena demanda um esforço. Os dois rappers lembram a cada momento que não se pode esquecer as origens.  A língua aparece como o elo, a possibilidade de tocar na memória oral e na ancestralidade. Para Kelvin, quem fala a língua deve ensinar para os filhos, quem fala somente o português deve correr atrás para entender o básico. “Acho imoral deixar de ensinar a língua tradicional. A pessoa tem que saber que é uma referência. As próprias universidades de Dourados cobram isso dos indígenas e a sociedade que está em prol do nosso povo cobra também”.

Nos shows do Brô Mc’s a estratégia inclui o uso das vestimentas, adereços, pinturas e danças próprias da festa Guarani Kaiowá. Tudo ao som do guarani.

O som ancestral

A realidade da Reserva impôs o trabalho braçal para a maioria. São garis, pedreiros, serventes em empresas da região, ou ainda, catadores de uva ou maçã em fazendas no eixo que chega ao Rio Grande do Sul.  Bruno, ali de pé, fala: “Cara, hoje, aqui para você viver tem que ter dinheiro. Se você não tem rio, não tem caça, se não tem como plantar e se vive como numa vila, tem que buscar as coisas na cidade. Eu via meu pai indo trabalhar nas fazendas fora do estado, via minha mãe chorando pelos cantos com a nenenzinha no colo e a gente sem ter o que comer. Eu tinha quatro ou cinco anos e ficava me perguntando para quê isso? Pensava, eu tenho que fazer alguma coisa”.

Como professor na escola Araporã, Bruno sempre lembrava aos alunos que estudava o guarani pelos livros, porque a escola garantia o ensino da escrita e ele teve ainda a sorte de contar com uma família que falava a língua em casa. Hoje, o ensino formal do guarani nas escolas locais diminuiu, mas existem ferramentas digitais para pesquisar. Bruno celebra a internet e comenta a diferença de ter um celular na mão com tecnologia avançada para também “conhecer o outro mundo”.

Segundo o músico, a espiritualidade supera a adversidade e a imposição de condições para se aprofundar na cosmogonia indígena. “Todos somos parentes, espiritualmente falando, para nós não existe diferença. Foram os não indígenas que colocaram uma corrente na gente. Alguns se identificam como indígenas, outros renegam suas origens, mas se algo espiritual toca a gente é isso que determina que se faz parte. O Alok foi chamado, não acredito que ele seja indígena, mas o ancestral dele pode ser. Eu creio que o Brasil inteiro tem uma gotinha de sangue indígena”.

A conexão com as plataformas, com lives, com streams, com playlists permitiu ao Brô Mc’s alcançar Alok, o DJ brasileiro mais celebrado na arena global, que os acolheu em parceria. Através do Instituto Alok nasceu o AYVÚ Records, primeiro estúdio dentro de uma aldeia indígena no Brasil. AYVÚ significa som ancestral. A ideia é possibilitar condições para o Brô Mc’s criar e produzir as próprias músicas. O projeto tem como objetivo fomentar oficinas de rap guarani para os jovens das aldeias Jaguapiru e Bororó, contribuir para a geração de autonomia e renda dos integrantes do grupo, além de apoiar o desenvolvimento de ações socioeducativas voltadas para os locais da Reserva Indígena de Dourados.

Em setembro, a agenda de shows e participações em programas de TV do Brô Mc’s ganhará outro impulso marcante: a apresentação com o rapper carioca Xamã, no Rock in Rio. Dessa forma, a cultura dos povos originários sai da Reserva e se une com outras manifestações artísticas para celebrar o mundo do Hip Hop como palco Guarani Kaiowá.

Koangagua  – Bro Mc’s

Hai amoite ndoikua’ai mbaeve
Korap oguarê amoite tenonde
Apuka penderehe, nde ave reikotevê
Che ñe’e avamba’e oi chendive
Añe’e haetegua ndaikosei ndechagua
Aporahei opaichagua ajuahechuka
Ava mombeuha ava koangagua
Rap ochechuka upea ha’e tegua
Koa mombeuha ape orereta
Orejavegua ndo aleike repuka
Nandejara ochecha upea tuicha
Uperupi aha mombyryma aguata
Jaha ke ndeava ara ohasa
Ndo aleike nderea upeicha javya
Jaikoporã ñande rekoporã
Koanga jahecha ñande hente ovyapa
Ara ohasa upeicha che aha
Ymã ovyapa
Ara ohasa upeicha che aha
Ymã ovyapa
Ymã ovyapa
Ara ipoti heta hente petei
Guyirá kwera oveve
Ovy’a onondive
Mesmo upeicha ave umi hente oikwa’a sevê
Hikwai oikwa’a sevê soke operde
Jornalpe oje’ê opaicha ole’ê
Tevêpe oje’ê opaicha oñe’ê
Oikuakwê hina oi hikwai ko oñomi
Soke hente ave oi Iñe’ê hantãva oi
Ndo alei reñe’ê reñe’ê mbarei
Upeicha ivaí nderehechai nde reikwa’ai
Umi hente do ikwaai
Bom dia boa tarde ndo je’ei ko ape avape
Soke agwatá
Ahahape ahechuká
Che mboraheipe ajovahei
Ndajaoi há nem da ei
Nde reikwa che aikwaava
Será pa remombeuta
Reñe’ê ko mbarei
Ara ohasa upeicha che aha
Ymã ovyapa
Ara ohasa upeicha che aha
Ymã ovyapa
Ymã ovyapa

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