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ToggleA reconstrução do Rio Grande do Sul após a tragédia bíblica de maio exigirá bilhões de Reais, sobretudo para repor a infraestrutura urbana e rural. Para reduzir as vulnerabilidades do estado frente ao novo cenário climático, as “soluções baseadas na natureza” poderiam ocupar lugar de destaque neste processo.
Carla Martins e o marido, ambos com 64 anos, vivem há duas décadas em Montenegro, a 60 km da capital Porto Alegre. Na pandemia de COVID-19, deixaram o centro da cidade para uma casa a duas quadras do Rio Caí. Em novembro passado, as águas subiram 20 cm dentro da residência. Em maio deste ano, alcançaram 1,6 m.
“Vimos a água subindo devagar e achamos que ia parar, como em novembro, mas começou a vir e subir cada vez mais rápido. Ficamos presos com água acima da cintura porque a porta não abria pela força da correnteza do lado de fora. Só saímos graças aos Bombeiros e Defesa Civil”, conta.
Na fuga para salvar a própria vida e de seus cachorros e gatos, pouco levaram. A baixada da enchente permitiu limpar terra, lodo, lixo e listar os prejuízos. Móveis de madeira foram perdidos, assim como vários aparelhos elétricos. A família segue na residência, mas o futuro amedronta.
“É uma sensação horrível, de que a nossa casa não nos protege mais”, desabafa Carla Martins.
Contudo, há outras dores de cabeça. A tragédia diluviana e a proximidade com o rio encolheram o valor da residência dos Martins em 40%. Isso emperrou uma esperada mudança rápida para longe do local, ameaçado por novas inundações.
“Trabalhamos a vida toda, mas a enchente acabou com tudo e agora te oferecem quase metade do que a casa valia. Não temos mais idade ou dinheiro para torrar tudo que temos”, ressalta a ex-professora.
O drama da família Martins é compartilhado com milhões de outros gaúchos cujas vidas e bens foram destroçados pela tragédia deste ano, a maior da história estadual conhecida e um marco internacional dos efeitos da crise climática.
Chuvas e ações fora da caixa
O aguaceiro que cobriu o Rio Grande do Sul foi inusitado. Em poucos dias, choveu o equivalente a meses. Só entre 24 de abril e 4 de maio, as nuvens despejaram 420 milímetros, proporcionais a 90 dias de chuvas frente à média anual. O saldo foi arrasador.
No geral, 478 (96%) dos 497 municípios gaúchos enfrentaram situações de Emergência ou de Calamidade Pública. Ao menos 100 mil casas foram destruídas ou estragadas pelas águas. A tragédia deixou 182 mortos, 806 feridos e 31 desaparecidos.
“Mesmo em bacias hidrográficas bem gerenciadas, a água sempre excede medidas pensadas, ainda mais com a crise do clima”, avisa Uwe Schulz, doutor em Biologia pela Universität Bielefeld e professor aposentado pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos).
Tamanha destruição exige esforços políticos, técnicos e financeiros imediatos para recuperar estradas e rodovias, pontes, aeroportos e casas. Mas é preciso fortalecer o estado também no longo prazo, pois a crise climática seguirá disseminando chuvaradas, secas e outros eventos extremos.
Aí pode entrar em campo o time das “soluções baseadas na natureza”. Ou seja, aproveitar e fortalecer serviços gratuitos das áreas verdes para amenizar os estragos de novas tragédias sobre as pessoas e os ambientes naturais. Há exemplos.
Multiplicar espaços vegetados, como jardins e parques, restaurar encostas e margens de rios e promover uma agricultura urbana absorverá boa parte da água da chuva que iria para ruas e rios, reduzindo deslizamentos, alagamentos e enxurradas.
Contagem (MG), Campinas (SP), Niterói (RJ), Fortaleza (CE), Curitiba (PR) e Florianópolis (SC) são cidades listadas pelo World Resources Institute (WRI) usando tais tecnologias, mesmo em pequena escala. Os gaúchos poderiam multiplicar essas ideias.
Lançado em meados de Maio, poucos dias após o auge da tragédia, um plano do Governo Gaúcho elenca ações para reerguer o estado. As soluções naturais sugeridas incluem plantar vegetação em vias e parques públicos para segurar a terra, absorver chuvas e diminuir o calor.
Conforme o planejado, isso trará “mais conforto, segurança e sustentabilidade no espaço urbano das cidades”. Municípios interessados nessas medidas podem receber apoio técnico e dinheiro assinando termos de cooperação ou apresentando projetos.
“Recuperação, planejamento e desenvolvimento urbanos devem respeitar e integrar os ambientes naturais”, defende Luiz Malabarba, professor na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e pós-doutor pelo Museu Nacional de História Natural do Instituto Smithsonian.
Contudo, um artigo dele e de outros pesquisadores do Instituto de Biociências da UFRGS na revista Nature aponta que o drama gaúcho pode se repetir, porque faltam no Plano Rio Grande – programa de Reconstrução, Adaptação e Resiliência Climática do Estado do Rio Grande do Sul apresentado pelo governador Eduardo Leite (PSDB) em maio passado – propostas de grande escala para manter e recuperar ambientes e serviços naturais.
Agregar isso seria uma “dupla solução” para a crise climática, diz Malabarba (UFRGS). “As medidas reduzirão as emissões de gases de efeito estufa, contribuindo para um menor aquecimento global, e os impactos das mudanças climáticas sobre pessoas, cidades e economias”, ressalta.
Todavia, ao longo do tempo prevaleceu outra cartilha. Apenas desde 1985, o estado trocou 3,6 milhões de hectares de florestas, campos e áreas úmidas por lavouras e urbanização. Isso equivale a 22% da vegetação nativa gaúcha, mostrou ((o))eco. Um freio às cheias, a vegetação ao longo dos rios foi também duramente eliminada, dentro e fora das cidades.
“Se essa vegetação tivesse sido minimamente respeitada, bem menos pessoas teriam sido atingidas. A maioria do público não entende que as matas ciliares protegem também as pessoas, não só bichinhos e plantinhas”, lembra Uwe Schulz (Universität Bielefeld).
Essas perdas foram proporcionalmente maiores na Bacia do Guaíba, que concentra água de grandes rios e foi a mais atingida pelas enchentes. Na região, foram eliminados 26% da vegetação nativa, ou 1,3 milhão de hectares no mesmo período.
Várzeas e outras áreas úmidas acumulam recursos hídricos como caixas d’água, mas são destruídas sobretudo desde os anos 1950, quando o plantio de arroz ganhou força no Rio Grande do Sul. O estado lidera a produção do grão no país.
“Banhados são eficientes em absorver cheias, captar carbono e manter recursos pesqueiros, mas historicamente os ecossistemas que nos ajudam não são preservados”, constata Malabarba (UFRGS).
Dependendo do trecho, a Bacia do Rio dos Sinos, que deságua igualmente no entorno de Porto Alegre, perdeu de 30% até 75% de seus banhados nas últimas quatro décadas. A tragédia de maio atingiu 24 de seus 30 municípios, onde vivem 1,3 milhão de pessoas.
Buscando amenizar desastres futuros, as áreas úmidas na bacia serão detalhadas e divulgadas ao público e governos graças a um projeto aprovado em fevereiro pelo Comitê de Gerenciamento da Bacia Hidrográfica do Rio do Sinos (Comitesinos) junto à Petrobras.
“Isso trará visibilidade e oportunidades de preservação dessas áreas. Sem isso, podem ocorrer mais construções, reduzindo a drenagem nas enchentes”, detalha Kelly Boscato, secretária-executiva do Comitesinos. O trabalho deve ser concluído este ano.
No passado, áreas preservadas regionais eram barreiras naturais às cheias e secas. “Sem matas ciliares e áreas de drenagem, a água segue um fluxo reto, escoa rapidamente e causa cheias. Reverter isso depende de olhar e agir na bacia como um todo”, defende Kelly Boscato.
Meandros da reconstrução
O Governo Gaúcho orçou em R$ 19 bilhões a reconstrução do estado. A administração federal prometeu mais de R$ 50 bilhões, oriundos da antecipação de benefícios fiscais, de projetos de infraestrutura e logística e do alargamento de linhas de crédito.
Prefeituras também querem um aumento nos repasses federais do Fundo de Participação dos Municípios (FPM) e mudanças na composição de impostos como ICMS e ISS. Isso reforçaria seu caixa para recuperar estradas, escoar a produção primária e transportar estudantes.
“Os municípios estão à beira de um colapso financeiro. Prefeituras precisam responder à população, que aguarda a restauração de estradas vicinais, das ruas, dos bairros, das empresas”, diz Marcelo Arruda, prefeito de Barra do Rio Azul e presidente da Federação das Associações de Municípios do Rio Grande do Sul (Famurs).
Há estudos para o possível deslocamento de cidades ou bairros. “É possível que ocorram realocações, porém, informações mais detalhadas são necessárias, assim como negociações com comunidades locais”, diz o governo gaúcho. Mudar planos diretores precisa de aval das câmaras municipais.
Um fundo estadual para reconstruir e aumentar a resiliência estadual frente a eventos climáticos receberá recursos orçamentários, financeiros e contábeis. A população carente será priorizada, diz a Coordenação de Comunicação da Secretaria de Reconstrução gaúcha.
“Um dos recursos que integrarão o fundo advém da suspensão da dívida do Estado com a União, de cerca de R$ 13 bilhões. O Funrigs também poderá receber doações, emendas parlamentares ou de bancada, e outras verbas da União”, afirma.
Ao mesmo tempo, a condução técnica e política e a aplicação dos recursos tal como têm sido feitas por estados e municípios para a reconstrução gaúcha, somadas à dilapidação contínua da legislação ambiental, provocam dúvidas e críticas de fontes ouvidas pela reportagem, inclusive relacionadas às eleições municipais de outubro.
Especialistas apontam que empresariado e governos têm muito mais peso no Conselho do Plano Rio Grande do que setores mais afeitos às agendas ambiental e climática. Seus 179 representantes participarão de câmaras temáticas e irão propor, avaliar e monitorar problemas e propostas recebidas.
“Há uma lacuna significativa de representantes da área ambiental em todos os níveis, incluindo ONGs, cientistas e até mesmo o Conselho Profissional que regulamenta a atividade dos Biólogos, profissionais que justamente analisam questões ambientais”, destaca nota do Instituto de Biociência da UFRGS.
A Secretaria de Reconstrução gaúcha lembra que o Conselho e o Comitê Científico do Plano Rio Grande tem “diversos integrantes de universidades” e do Meio Ambiente. “O conselho é um espaço aberto a participações e sugestões de toda e qualquer entidade”, diz. Além disso, as ações previstas foram baseadas em estudos, disponíveis aqui. Tais estudos, no entanto, não cobrem todo o estado.
“Os projetos que já foram licenciados estão adaptados [às realidades regionais do estado e de suas bacias hidrográficas]. Contudo, estão em discussão possíveis adaptações à nova realidade climática”, destaca o órgão estadual.
Além disso, os 25 comitês de bacias estaduais responsáveis por levar aspectos regionais à reconstrução, estariam menosprezados no Comitê do Plano Rio Grande e não seriam reconhecidos pelo governo estadual como espaços democráticos que apoiam o desenho de políticas territoriais. Representantes sociais e de usuários de águas participam dos coletivos.
Além do drible político, tais comitês não recebem parte dos R$ 7,3 milhões repassados pela Agência Nacional de Águas (ANA) ao estado, de 2014 a 2023, e dos cerca de R$ 12 milhões anuais de compensações ambientais no Fundo Estadual de Recursos Hídricos. Os montantes devem fortalecer a gestão de águas.
“Há uma decisão política de não investir nos Comitês. Fomos delegados ao abandono”, acusa o presidente do Comitê da Bacia do Rio Gravataí, Sérgio Cardoso, também atingida pela tragédia de maio.
Já o governo gaúcho afirma que os Comitês são ressarcidos pelos gastos para participar de eventos, que está revisando “os procedimentos de repasses” para custear a administração dos colegiados e elaborando “um instrumento que irá propor modelos de serviços públicos que qualificarão as atividades de representação institucional”.
A falta de detalhamento regional das ações de reconstrução também pode dar margem a obras mirabolantes e desperdício de dinheiro público.
“Sem controle e sem conexão com os planos de Bacias, podemos ter uma corrida de empresas para executar recursos e de pessoas buscando benefícios políticos”, alerta Rafael Altenhofen, mestre em Biologia pela Unisinos e presidente do Comitê da Bacia do Rio Caí.
Debates e planos regionais querem elevar diques e desassorear trechos do manancial tentando acelerar o escoamento das cheias, por exemplo, mas isso não teria base técnica e poderia levar mais água e sedimentos a municípios rio abaixo, avalia Altenhofen. “Não há estudos sobre efeitos em cascata”, diz.
Não bastando, as medidas não atacam a má gestão do solo na Bacia do Caí, que fortalece cheias e enxurradas. Afinal, o desmate e más práticas agrícolas nas partes altas da região lotam o rio de sedimentos, que se depositam nas porções mais baixas, freando as águas e vitaminando as enchentes.
“É urgente gerir de forma integrada todo o sistema das Bacias que chegam ao Guaíba”, declara o presidente do Comitê da Bacia do Rio Caí. A região do Guaíba tem 2.919 km² e quase 1,4 milhão de habitantes urbanos e rurais. Nela desaguam os rios Gravataí, Sinos, Caí e Jacuí.
A má gestão das Bacias gaúchas estaria igualmente conectada ao desmonte de ações e legislação ambientais. Em 2003 o governo gaúcho deu cabo do Pró Guaíba, barrando políticas para saneamento, proteção e recuperação de áreas naturais, recuperação de solos e capacitação de órgãos públicos.
“O objetivo era recuperar a qualidade ambiental de todos os rios formadores do Lago Guaíba. Um projeto que surgiu como resposta oficial à pressão dos ecologistas gaúchos”, lembra em seu blog o Agrônomo, Ambientalista e Escritor Arno Kayser.
Uma nota de pesquisadores do Instituto de Biociências da UFRGS lembra que mudanças impostas ao Código Estadual do Meio Ambiente (Cema) desde 2019 enfraqueceram a proteção da vegetação nativa, o licenciamento e a vigilância sobre impactos ambientais.
“O novo CEMA representa um desmonte da legislação ambiental, cujas implicações para a sociedade em geral são aumento dos problemas socioambientais, a deterioração ambiental e a diminuição de qualidade de vida”, diz o documento.
Daí o temor de que a destruição de maio seja rapidamente esquecida ou usada politicamente. “Que a situação não sirva como ‘cabo eleitoral’ nas eleições de outubro, com políticos mostrando serviço no curto prazo para ganhar votos e, depois, deixando tudo cair no esquecimento”, ressalta Carla Martins, professora aposentada em Montenegro.
Um antídoto é enfrentar os estragos de maio e novas tragédias de maneira séria e de olho no longo prazo, pede Uwe Schulz (Universität Bielefeld). “As soluções devem vir de um mosaico de medidas diferenciadas que reduzam as vulnerabilidades que geram as tragédias”, diz.
“Devemos revisar todo o nosso planejamento e ocupação dos territórios urbanos e rurais, contendo interesses econômicos imediatos que transformam os sistemas naturais e nos fragilizam diante da crise climática, que não terá reversão no curto prazo”, finaliza.
As informações apresentadas neste post foram reproduzidas do Site O Eco e são de total responsabilidade do autor.
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