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A Guerrilha do Araguaia, Lula e uma memória que não pode se esvair

A Guerrilha do Araguaia, Lula e uma memória que não pode se esvair

As imagens acima mostram a movimentação da chegada do Exército Brasileiro ao Araguaia e a 1ª Caravana de Familiares de Mortos e Desaparecidos no Araguaia, em 1980 (Fotos WikiMedia e Armazém Memória).


Belém (PA)- É óbvio que praticamente todas as discussões atuais que estão sendo debatidas no eixo amazônico envolvem a COP 30. Mas nesses últimos dias, uma informação importante, embora tenha sido até manchete em alguns portais de notícias, não repercutiu da forma devida. Dando nome aos bois, o UOL informou que a reinstalação da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) não foi fruto de uma iniciativa espontânea do Executivo, mas resultado de uma determinação da Justiça Federal. A decisão obrigou o governo a retomar as buscas por restos mortais de militantes desaparecidos durante a Guerrilha do Araguaia (1972–1974), um dos episódios mais violentos e emblemáticos da repressão militar.

Documentos até então sigilosos revelam que, em meio à crise com setores das Forças Armadas após os atos golpistas de 8 de janeiro de 2023, o Planalto demorou a adotar medidas concretas para reativar o colegiado — criado originalmente pela Lei nº 9.140, de 1995, com a missão de apurar as circunstâncias de mortes e desaparecimentos políticos ocorridos entre 1964 e 1988, além de indicar locais de sepultamento clandestino.

Segundo esses registros, o governo federal só agiu diante da iminência de sofrer sanções judiciais. A Justiça estabeleceu multa diária à União pela demora em cumprir a obrigação, e reforçou que a omissão não seria tolerada. A determinação judicial também sublinhou a necessidade de responsabilizar culpados e dar continuidade à política de memória e reparação interrompida no governo anterior, que havia paralisado as buscas no Araguaia e esvaziado a atuação da Comissão.

O histórico das buscas na região remonta ao início da década de 1980, quando foi realizada a 1ª Caravana de Familiares de Mortos e Desaparecidos no Araguaia. Já no final dos anos 1990, sob pressão de familiares, jornalistas e organizações de direitos humanos, equipes formadas por peritos, militares e civis iniciaram expedições para localizar e identificar ossadas de combatentes mortos nas operações militares contra a guerrilha. Essas ações enfrentaram obstáculos políticos, dificuldades técnicas e resistências institucionais, resultando em avanços pontuais, mas nunca na conclusão integral do trabalho.

A Guerrilha do Araguaia foi organizada pelo Partido Comunista do Brasil (PCdoB) e contou com cerca de 70 combatentes do partido, a maioria jovens militantes urbanos deslocados para a região amazônica e também com famílias camponesas da região. A repressão, comandada pelo Exército, mobilizou milhares de soldados e aplicou táticas de contrainsurgência, resultando na morte e desaparecimento de dezenas de guerrilheiros. Até hoje, a localização de muitas dessas vítimas permanece desconhecida, configurando uma ferida aberta na história brasileira.

O episódio recente revela não apenas o peso das disputas políticas internas — especialmente a relação sensível com os militares —, mas também a persistência de uma dívida histórica com as famílias dos desaparecidos. Passadas mais de cinco décadas, a localização e identificação das ossadas continuam sendo não apenas uma questão humanitária, mas também um dever de Estado diante das graves violações cometidas no período ditatorial.

Entre a promessa e a ação, houve um longo hiato. O Ministério da Justiça e Segurança Pública deu parecer favorável à recriação em abril de 2023, mas o processo ficou engavetado na Casa Civil por cerca de um ano e sete meses. Nesse período, familiares de mortos e desaparecidos e o Ministério Público Federal multiplicaram pedidos formais para que a comissão fosse reativada. O ponto de maior pressão veio com a mobilização das famílias de vítimas da Guerrilha do Araguaia, que exigiam a retomada das buscas por restos mortais no sul do Pará.

A reinstalação do colegiado, portanto, não foi fruto apenas de compromisso político, mas resultado direto de um litígio judicial e de uma articulação persistente da sociedade civil.

Mesmo após a reativação, a comissão enfrenta entraves. A falta de recursos orçamentários compromete o avanço de investigações e ações de reparação. Em março deste ano, diante do cenário de escassez, o grupo buscava soluções alternativas, tentando inclusive usar a repercussão do filme Ainda Estou Aqui para reabrir o debate público sobre memória, verdade e justiça. A demora em cumprir a promessa, somada à necessidade de intervenção judicial, expõe a fragilidade da agenda de direitos humanos no país e o quanto a pauta da memória ainda depende mais da pressão popular e da via judicial do que da vontade política efetiva.

E tudo isso me leva a outra notícia que aparentemente não possui relação com os trabalhos da Comissão da Verdade, mas que possui sim. Primeiro, a notícia: A 28ª Feira Pan-Amazônica do Livro e das Multivozes ocorrerá de 16 a 22 de agosto de 2025, no Hangar – Centro de Convenções e Feiras da Amazônia, em Belém. Os homenageados desta edição serão a escritora e poeta Wanda Monteiro (filha do histórico político e escritor paraense Benedito Monteiro) e o compositor e criador do búfalo bumbá, Mestre Damasceno. 

Pois bem. Nesse mesmo evento devo estar lançando o livro ‘Filhos dessa raça”. A obra conta a trajetória de Paulinho Fonteles e Hecilda Veiga. Mãe e filho. Hecilda pariu Paulinho em cárcere da ditadura, tendo passado a maior parte da gravidez presa e torturada por conta de sua militância no PCdoB.  E Paulinho Fonteles, também militante do PCdoB (morto em 2017), era um dos maiores responsáveis pelo não apagamento da memória da Guerrilha do Araguaia. Era uma de suas grandes ‘obsessões’ de vida. Foi o responsável por encontrar quatro fotos da época da guerrilha na casa de uma família camponesa na Serra das Andorinhas, palco do confronto desigual entre combatentes guerrilheiros e as Forças Armadas.

As fotos encontradas por Paulinho foram uma prova inconteste de que o Exército executava prisioneiros, ao contrário da versão oficial de que todos os militantes haviam sido mortos em combate. Paulinho distribuiu gratuitamente essas fotos ao jornal O Globo (foram usadas também por Élio Gaspari em seu livro sobre a ditadura). Paulinho não foi reconhecido por esses veículos quando da divulgação das fotos históricas.

A Guerrilha do Araguaia é, talvez, um dos episódios mais emblemáticos do período ditatorial brasileiro. Ocorreu em território nortista. É mais um episódio da história recente da Amazônia. Precisa voltar à pauta nacional. Capítulos não concluídos dessa história são responsáveis por volta e meia a sombra de um golpe estar em nosso cardápio de péssima digestão. É por isso que não podemos simplesmente varrer para debaixo do tapete, os nossos esqueletos, nossos fantasmas. Que a comissão volte a funcionar a pleno vapor. Seria um desejo póstumo de Paulinho Fonteles, com certeza.


As informações apresentadas neste post foram reproduzidas do Site Amazônia Real e são de total responsabilidade do autor.
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