Todos os dias, milhões de cariocas abrem suas janelas e descortinam a paisagem. Nesta cidade, é difícil olhar o horizonte e não vislumbrar sequer uma nesga de verde. Mas, a maioria desconhece o que se passa naquelas florestas que avistam de casa. Não sabem que muitas delas são áreas protegidas. Ignoram que algumas nem estavam ali poucas décadas atrás, foram reflorestadas, após séculos sem sua cobertura original. E nem imaginam a importância dessas florestas para o bem-estar da cidade.
Amenizar o clima, evitar a erosão, proteger contra deslizamentos, reduzir enchentes e ser lugar de lazer são algumas das funções dessas florestas, além, é claro, de ser abrigo para nossa flora e nossa fauna, são apenas algumas das muitas funções – ou serviços ecossistêmicos – que as florestas cariocas oferecem a seus moradores e visitantes. A relevância das florestas cariocas pode ser representada pelo Parque Nacional da Tijuca, o mais visitado do Brasil, pelo Parque Estadual da Pedra Branca, a maior floresta urbana do planeta, ou por algum dos vários parques naturais municipais, com seus atrativos para a visitação e lazer. Para os moradores e forasteiros que escolheram a cidade para viver, é quase impensável que a poucos quilômetros deles, em meio à rotina de trabalho e deslocamentos, uma onça-parda esteja procurando por uma presa. Ou mesmo que bugios estejam perambulando novamente pelo coração da Floresta da Tijuca, o que não poderia ter ocorrido sem o esforço de pesquisadores apaixonados pela conservação. Em contraste, sentir na pele os desafios impostos pela expansão descontrolada da malha urbana é mais fácil, como a poluição, o calor intenso e as inundações e desbarrancamentos depois das fortes chuvas.
Os primeiros habitantes desta terra, pertencentes a aldeias Tupinambá como a Karióka e a Eiraîa, utilizavam a natureza para superar os desafios que a própria lhes empunha. Portanto, se havia mosquitos, passavam urucum em suas peles. Se a pescaria de peixes pequenos se tornava difícil com redes, utilizavam timbó para intoxicá-los e apanhá-los à mão. Essa sabedoria ancestral foi em parte apagada com a chegada do invasor europeu, que substituiu grandes ocas por igrejas e pelas casas dos primeiros colonos. Perdeu-se, assim, o conhecimento daqueles que utilizavam ‘soluções baseadas na natureza’, muito antes da criação desse termo. A cidade se expandiu na forma de ruas estreitas, becos, travessas e passagens.
Já no século 18, após a consolidação do projeto de ocupação europeia, considerava-se suficiente a abundância de árvores nas chácaras, fazendolas, engenhos, jardins, quintais e nas florestas. No entanto, as florestas da encosta do maciço da Tijuca foram desaparecendo, dando lugar ao cultivo de um grão muito apreciado no exterior: o café. À época, acreditava-se que o café deveria ser plantado em solo antes coberto por florestas “virgens”, para garantir produtividade. E assim os cafezais avançaram encosta acima, para estratos cada vez mais altos do maciço, deixando vertentes de morros completamente desnudadas. Em algumas décadas, já era possível sentir as consequências: diminuição da disponibilidade de água e crises sucessivas de abastecimento na capital imperial.
A missão de reestabelecer a cobertura florestal que protegeria e recuperaria as nascentes foi designada ao major Gomes Archer, que coordenou o plantio de 100 mil árvores entre 1861 e 1874, usando mão de obra de descendentes de africanos escravizados. Até hoje, esse é considerado um dos maiores esforços de reflorestamento de uma floresta tropical no mundo. Novamente, a ‘solução baseada na natureza’, na forma de ‘restauração florestal’ para recuperar um ‘serviço ecossistêmico’ – no caso, provisão de água – 120 anos antes desses três termos serem definidos pela ciência.
A Floresta da Tijuca foi se recuperando aos poucos, mas, em paralelo, já se observava a mancha de ocupação urbana que seguia pelo caminho dos trens, ao norte, e dos bondes, ao sul. A partir do século 20, a ocupação urbana nestas regiões se intensifica, e se expande a oeste. Com isso, aprofundam-se os problemas de desigualdade social, ocupação desordenada do território e pessoas vivendo em áreas de risco. A segunda metade do século passado foi marcada por tragédias climáticas que ceifaram vidas e fizeram realidade as previsões e alertas dos especialistas. Não havia – ou não deveria haver – dúvidas sobre a vulnerabilidade da ‘Cidade Maravilhosa’ aos eventos climáticos extremos. Se no Brasil Império tivemos um imperador (D. Pedro II) inspirado por seu tutor na infância (José Bonifácio) ordenando a recuperação da cobertura florestal das encostas, em 1986 tivemos um prefeito (Roberto Saturnino Braga), dando ouvidos a um dos seus secretários (Mauricio Azêdo), iniciando um programa que se tornaria tão icônico quanto a recuperação do Maciço da Tijuca.
E foi ao longo das últimas quase quatro décadas, durante a transição do milênio, que este programa, o Mutirão Reflorestamento, foi responsável por recuperar mais de 3.500 hectares de encostas, em áreas de risco distribuídas por todas as regiões da capital do estado do Rio de Janeiro. A mão de obra continua sendo predominantemente negra e parda, porém não mais de escravizados e sim de moradoras e moradores das próprias comunidades onde os projetos estão inseridos, arregimentados em sistema de mutirão remunerado. Desde 1986, mais de 15 mil pessoas participaram do programa, tendo suas vidas e a paisagem das favelas onde residem transformadas.
Mas, o século 21 trouxe novos desafios. Ao mesmo tempo em que é preciso lidar com os efeitos das mudanças climáticas em curso, que tornam os já conhecidos eventos extremos mais intensos e mais frequentes, temos uma conjuntura de segurança pública que acirra o racismo ambiental, ao mesmo tempo em que potencializa riscos ambientais e climáticos. A ocupação pelas milícias de áreas críticas e vulneráveis avança nas franjas dos três maciços florestais da cidade e até mesmo no interior de áreas naturais protegidas, resultando em desmatamento e erosão, com gravíssimos impactos sobre a resiliência climática de comunidades de baixa renda. Ao mesmo tempo, a intensificação do parcelamento do solo, do aterramento e da impermeabilização da Baixada de Jacarepaguá – fruto da combinação entre especulação imobiliária gananciosa com a ação de milícias urbanas, temperada pela omissão e anuência do Poder Público – ameaçam uma das mais importantes infraestruturas naturais da cidade, essencial para o escoamento e infiltração das águas torrenciais, lar de dezenas de espécies nativas que têm nesta região seu último hábitat na capital.
A conjuntura atual se torna ainda mais preocupante com a constatação de que as estruturas de gestão e governança ambiental encontram-se desaparelhadas de técnicos e condições de trabalho, desprestigiadas politicamente, desassistidas pelo orçamento e tolhidas das suas principais funções e prerrogativas. Como justificar que o licenciamento ambiental esteja dentre as atribuições do órgão responsável por promover os planos e ações que precisam ser licenciados? No caso das unidades de conservação cariocas, estas nunca estiveram tão esvaziadas de propósito e atenção. O que falar da Fundação Parques e Jardins, outrora referência nas Américas, hoje reduzida a uma autarquia com poucas funções, raros técnicos e minguado orçamento? A cidade conta com um excelente Plano Diretor de Arborização Urbana, que permanece engavetado desde sua publicação, enquanto vemos as empresas de coleta de lixo e de distribuição de energia mutilarem o arboreto carioca. E por falar em resíduos sólidos, o que dizer do percentual risível da coleta seletiva no município, estagnado há anos e sem qualquer perspectiva de expansão? E quanto à ausência de um modelo de gestão eficiente, para que as áreas protegidas possam enfrentar os desafios da conservação da diversidade biológica carioca?
Não há uma política pública consistente, não há investimentos na formação de gestores. Se por um lado a cidade conta com bons planos para sua resiliência, faltam vontade política, estratégia e recursos para que sejam implementados. Em tempos de emergência climática, legisladores e governantes fingem ignorar que florestas reduzem em 20% o risco de enchentes. Diante de sucessivas ondas de calor, tomam decisões como se não soubessem que a perda das florestas poderá aumentar em até 4 graus a temperatura média na cidade. Aprovam a remoção de árvores e vegetação nativa para mais construções, reduzem os investimentos em recuperação florestal, deixam as áreas protegidas à mingua.
De nada adianta atualizar o nome da Secretaria Municipal para ‘Ambiente e Clima’ se não houver políticas públicas consistentes, baseadas em evidências científicas e sociais robustas, implementadas a partir de estratégias planejadas, com resultados e impactos mensuráveis, monitoráveis e transparentes. Discursos de campanha, declarações em eventos internacionais e postagens em redes sociais podem gerar visibilidade e uma certa sensação de engajamento. Mas, não são suficientes para enfrentar a dura realidade que temos em nossos parques, reservas, encostas, mangues, baías e sistemas lagunares.
A cidade do Rio de Janeiro foi uma das primeiras capitais do país a ter uma secretaria especialmente dedicada à gestão ambiental. A SMAC, criada pelo saudoso Alfredo Sirkis, foi durante anos reconhecida como a melhor e mais estruturada secretaria de meio ambiente do país, com corpo técnico de altíssima qualidade e atuação mais efetiva do que muitas secretarias estaduais. No entanto, após sucessivas reestruturações, a última delas à revelia das normas legais, a SMAC se tornou moeda de troca no jogo político das alianças eleitoreiras, um trampolim de conveniência, suscetível a toda sorte de pressões políticas e econômicas.
Esse histórico e os desafios da atualidade na gestão ambiental carioca constituem o conteúdo de ‘A Floresta da Janela: soluções baseadas na natureza para a cidade do Rio de Janeiro‘, lançado pela Lumen Juris. Com mais de 400 páginas, divididas entre prefácio, introdução e 17 capítulos, elaborados por 48 autoras e autores, a publicação reúne reflexões e diretrizes assertivas para fortalecer a gestão da natureza e a resiliência climática da cidade do Rio de Janeiro. É um livro que diz para que servem as florestas cariocas e como elas têm sido tratadas, tanto pelo Poder Público quanto pela cidadania, quais são suas principais ameaças e, principalmente, que propostas têm sido pensadas e adotadas para que sejam mais bem cuidadas.
Como o título deixa claro, trata-se de um livro que apresenta soluções! Foi organizado pensando nos governantes, nos legisladores, nos gestores públicos, nas pessoas que trabalham ou estudam o assunto e em todas as cidadãs e cidadãos engajados por uma cidade saudável, sustentável, resiliente, inclusiva e justa. É um livro técnico, escrito por pesquisadores, gestores, profissionais de meio ambiente e por pessoas que se dedicam, voluntariamente, a cuidar dos nossos parques, das nossas trilhas, do nosso verde, enfim, do patrimônio natural carioca. Como organizadores, somos suspeitíssimos para recomendar. Mas, acreditem, vale a leitura.
*Editado às 00h15 do dia 25 de outubro de 2024.
As opiniões e informações publicadas nas seções de colunas e análises são de responsabilidade de seus autores e não necessariamente representam a opinião do site ((o))eco. Buscamos nestes espaços garantir um debate diverso e frutífero sobre conservação ambiental.
As informações apresentadas neste post foram reproduzidas do Site O Eco e são de total responsabilidade do autor.
Ver post do Autor