Sábado, 21 de julho. No imponente Teatro da Paz, em Belém, o elenco do espetáculo teatral Ver de Ver o Peso do veterano grupo Experiência começa a ser ovacionado pelo público presente, algo já tão comum à trupe após décadas de bons serviços prestados ao teatro paraense. Atores, atrizes e direção aguardam os aplausos arrefecerem por alguns segundos. Então uma das integrantes do elenco dispara – ainda que suavemente – que a peça ainda não fora incorporada à programação cultural da COP-30. O secular teatro quase vem abaixo. O recado, claro, foi dado e expõe, mais uma vez, algumas das contradições embutidas no grandioso evento que, desde quando anunciado em Belém, tem sido colocado sob uma lupa de escrutínio cada vez maior. Muitas vezes de forma honesta e certeira. Outras vezes de forma enviesada por um olhar carregado de preconceitos, como já abordado anteriormente por essa coluna.
No caso do ‘puxão de orelha’ dado pelo Grupo Experiência, o que se abre é a possibilidade de discussão a respeito do valor a ser dado à pauta cultural, não só no estado do Pará, mas em toda região amazônica. Norte não é com M, já cantava uma popular banda de rock em Belém nos anos 80. E cultura? Como se escreve e se lê nos gabinetes refrigerados de nossos governantes amazônicos?
Um breve parêntesis para os não iniciados na referida peça que abre esse texto. A Feira do Ver o Peso em Belém é um símbolo da cidade e foi dela que o Grupo Experiência há 40 anos, após uma pesquisa de 6 meses, criou o espetáculo “Ver de Ver o Peso”, que se mantém em cartaz de forma intermitente durante todos esses anos. O espetáculo tem em seu formato uma mistura de comédia de costumes, teatro de revista e sátira onde se pretende através do riso valorizar os costumes de um dia na feira, apresentando um retrato cultural, sociopolítico e econômico do Estado do Pará, da Amazônia e do Brasil. A peça vai sendo moldada ao calor dos novos tempos, temas e comportamentos. Por isso mantém seu frescor, mesmo após quatro décadas.
Qual o principal significado da cobrança explícita feita no encerramento do espetáculo? Uma das leituras possíveis é a mais óbvia. A organização da COP-30 quer os olhares do mundo, mas esquece alguns preceitos básicos. As reivindicações locais- políticas, culturais, territoriais, sociais, materiais, ambientais etc- têm sido muito pouco respeitadas, observadas, ouvidas e levadas em consideração. É uma leitura feita por quem está diretamente envolvido em algumas dessas questões.
Nesse ponto, impressiona, quase sempre de forma negativa, o quanto a cultura é relegada a planos muito inferiores, quando ela poderia ser o carro-chefe (ou pelo menos um deles) de um governo que tivesse reais olhos para o futuro. E quando esse texto afirma isso é defendendo a ideia muito ampla de como esse setor poderia ajudar a resolver muitos problemas numa cidade, num estado, num país. Pela geração de emprego, pela democratização da renda, pela criação de uma identidade, pela autoestima, pelo aumento do turismo, por tanta coisa que o espaço aqui se torna pequeno para tanto.
Pensemos no audiovisual. “O setor audiovisual brasileiro demonstrou sua força econômica com números robustos, mesmo após a grave crise provocada pela pandemia. Segundo estudo da Oxford Economics, antes da Covid-19, o audiovisual já movimentava R$ 27,5 bilhões no PIB, sustentando mais de 126 mil empregos diretos e 657 mil postos de trabalho totais, com arrecadação de R$ 7,7 bilhões em tributos. Em 2023, mesmo diante da recuperação em curso, os investimentos públicos no setor ultrapassaram R$ 2,4 bilhões. Só na cidade do Rio de Janeiro, o impacto econômico do audiovisual atingiu R$ 4,2 bilhões em 2023, com mais de 20 mil empregos formais gerados e R$ 72 milhões arrecadados em ISS. Em São Paulo, o setor gerou R$ 5,18 bilhões para o PIB nacional, com efeito multiplicador de R$ 1 gerando R$ 3,69 na economia. Esses dados não são apenas cifras: são evidência de que investir em audiovisual é investir em emprego, arrecadação e desenvolvimento sustentável.”
Esses dados estão numa carta aberta que está sendo elaborada por grupos de pessoas e produtoras ligadas ao audiovisual no Pará. O documento pretende ser enviado ao governo do estado e à Secretaria de Cultura. E porque ele se faz necessário? Por conta do recente lançamento do Edital Arranjos Regionais, promovido pelo Ministério da Cultura. Ele representa uma oportunidade histórica para o fomento à produção audiovisual fora do eixo tradicional (leia-se Rio e São Paulo). Com recursos da ordem de R$ 300 milhões, sendo R$ 210 milhões destinados às regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste, o edital pretende descentralizar os investimentos públicos no setor e impulsionar a produção local. Cada estado poderá acessar até R$ 30 milhões, desde que apresente uma contrapartida financeira — no caso do Pará, já assegurada por um projeto parlamentar aprovado na Assembleia Legislativa, que autoriza o uso de R$ 5 milhões para esse fim.
Qual o enrosco? O projeto, apresentado pela deputada Lívia Duarte (PSOL) não estabeleceu que a emenda fosse do tipo ‘impositiva’. Ou seja, os tais cinco milhões que seriam a contrapartida do Estado do Pará, devem ser retirados do orçamento da Comunicação. E por não ser emenda impositiva, o governador pode simplesmente sentar em cima da emenda e cantar ‘sal, sal, sal’. Ganha um caroço de pupunha quem apostar que, com tanta publicidade feita em cima das obras da COP-30, isso será uma prioridade para nosso Rei do Norte. Mesmo que alguém argumente ao pé do ouvido dele que esses recursos efetivamente seriam liberados apenas em 2026, fica difícil acreditar num esforço maior de Hélder Barbalho nesse sentido, caso chegue até ele a proposta do Edital de Arranjos Regionais.
Esse raciocínio se estende a outras capitais e cidades amazônicas. Quem trabalha com cultura- e quando escrevo trabalho, me refiro a essa labuta diária, cotidiana, de sobreviver dignamente em qualquer profissão relacionada à dita economia criativa- sabe o quanto é difícil não ser olhado como um ‘pedinte incômodo’. Parece sempre estarmos a estender um pires na mão para ‘fazermos alguma coisa diletante ligada à arte’. E os ataques disparados pela extrema-direita nas redes digitais só reforçam isso.
Não é uma tarefa fácil ser ouvido. Não é uma batalha simples de vencer, essa de convencer governantes que o setor cultural deve ser olhado com tanta ou mais atenção que outros setores que pouco fazem e muito ajudam a destruir- seja em formas de direitos, seja em formas de impactos ambientais, seja em termos de futuro- o chão em que pisamos.
Pena que não teremos essa pauta como primordial nas eleições ano que vem. Mas podemos tentar. Sempre se pode.
A imagem que abre este artigo mostra cena do espetáculo Ver de Ver-o-Peso do grupo teatral Experiência (Foto: Elói Corrêa / @grupoexperienciaoficial).
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