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A crise de oxigênio de Manaus para promover a BR-319: 4- O aproveitamento político das mortes

A crise de oxigênio de Manaus para promover a BR-319: 4- O aproveitamento político das mortes


Por Lucas Ferrante e Philip Martin Fearnside

Reconstruir a BR-319 era uma promessa de campanha de Jair Bolsonaro como candidato à presidência em 2018 (e também em 2022) e, quando assumiu o cargo em 2019, escolheu seus ministros com base em sua agenda ideológica [1]. O Presidente Bolsonaro repetidamente afirmou que seu ministro da Saúde na época da crise do oxigênio (Eduardo Pazuello) era um especialista em “logística”, mas Pazuello não tem formação nessa área [2]. O presidente afirmou que todos os seus ministros foram escolhidos com base em critérios “técnicos”, inclusive o Ministro da Infraestrutura (Tarcísio de Freitas) [3]. O então Ministro da Saúde (Eduardo Pazuello) não disponibilizou o oxigênio em tempo hábil, conforme concluiu o relatório da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) que avaliou a negligência do governo federal na pandemia da COVID-19 [4]. Tendo em vista que o ministro Pazuello resumiu sua atuação no governo ao afirmar que o presidente “manda” e ele “obedece” [5], pode ser que também tenha havido descaso do presidente Bolsonaro na escolha do mais lento e caro meio de transporte de oxigênio para Manaus. Processos de negligência contra o então Ministro da Saúde Pazuello (que era general da ativa do Exército) pelo Exército Brasileiro foram colocados em sigilo de 100 anos, de forma que não foi revelado o gasto de recursos públicos nessa ação [6].

Por meio da lei de acesso à informação do , solicitamos acesso a essas informações confidenciais ao Ministério da Saúde e ao DNIT-AM (órgão responsável pela rodovia BR-319 na época do colapso do oxigênio). O Ministério da Saúde nos informou que o oxigênio e seu transporte pela rodovia BR-319 custaram 2.767.284,32 reais. Com base nas cotações de preços de oxigênio disponíveis publicamente durante a pandemia (R$ 6,50/m3) [7], os 160.000 metros cúbicos de oxigênio líquido enviados para Manaus [8] podem ser estimados em 1.040.000 reais. Isso significa que o transporte pela BR-319 custou mais de 1,5 milhão de reais a mais do que o transporte pelo Rio Madeira (Tabela 1 do artigo 3), que também foi o meio de transporte mais rápido.

Vale ressaltar que o vice-presidente do Brasil e chefe do Conselho da Amazônia (General Hamilton Mourão) havia prometido que comeria a boina do seu uniforme militar se a rodovia BR-319 não fosse pavimentada antes do fim do mandato do Presidente Bolsonaro [9]. O prefeito de Manaus (David Almeida) também aproveitou a crise do oxigênio como uma oportunidade para promover a rodovia, um projeto cuja prioridade não deriva de qualquer racional econômico, mas sim de seu papel na conquista de votos em Manaus [10].

A operação de condução dos caminhões que transportam oxigênio pela BR-319, inclusive com o uso de um trator de esteira para rebocá-los dos atoleiros [10, 11], não deve ser vista como uma estratégia heroica ou demonstração do isolamento da região, mas sim como uma ação negligente com relação às necessidades de saúde da população da época e uma tentativa de fazer lobby por uma estrada que corta a floresta amazônica e que é inviável econômica [12, 13] e ambientalmente [14-17], além da sua violação dos direitos dos povos indígenas [16-20]. Um juiz federal de Brasília (I’talo Fioravanti Sabo Mendes) usou a crise do oxigênio em Manaus como argumento legal para permitir que as audiências públicas no processo de licenciamento prosseguissem quando a COVID-19 impedisse a participação dos povos indígenas [21]. Este argumento é falso, como mostra este estudo. É necessário revogar as audiências públicas realizadas pelo Instituto Brasileiro do e dos Recursos Naturais Renováveis (IBAMA) durante o governo Bolsonaro para aprovar a licença prévia para a reconstrução da rodovia BR-319, porque a necessidade de participação dos povos indígenas impactados pelo projeto foi ignorada [19].

Incentivamos o Ministério Público Federal a considerar representações contra o ex-ministro Eduardo Pazuello, o ex-ministro Tarcísio de Freitas e o ex-presidente Jair Messias Bolsonaro por omissão durante a crise do oxigênio em Manaus ao mesmo tempo em que usaram a crise para promover uma promessa de campanha de Presidente Bolsonaro [18]. Dado que uma decisão judicial [21] usou uma falsa base técnica para justificar a permissão do IBAMA para a realização de audiências públicas sobre os estudos ambientais da rodovia BR-319 em plena pandemia, colocando em risco o futuro dos mais de 18.000 indígenas impactados [19], recomenda-se a revogação imediata das audiências públicas já realizadas. Além disso, um documento técnico solicitado pelo Ministério Público Federal ao Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia apontou que os estudos ambientais para o trecho do meio da rodovia BR-319 são insuficientes, necessitando de mais estudos [22]. Isso aumenta a evidência de que as audiências públicas realizadas pelo IBAMA como parte do processo de licenciamento não seguiram todos os requisitos legais determinados pela legislação ambiental brasileira. A administração presidencial de Jair Bolsonaro desmantelou o processo de licenciamento ambiental no Brasil [23, 26] e, especificamente no caso da Rodovia BR-319, desconsiderou decisões judiciais que determinaram a necessidade de estudos ambientais adicionais e de consultas aos povos indígenas [14].

Uma aceleração do projeto da rodovia BR-319 durante a pandemia levou à disseminação do coronavírus em aldeias indígenas próximas à rodovia [17]. Os povos indígenas foram o grupo mais afetado pela pandemia de COVID-19 no Brasil [26, 27]. Isso porque os povos indígenas fazem parte do grupo de risco para a COVID-19 devido a fatores genéticos e às vulnerabilidades sociais e econômicas das comunidades [24-26]. A COVID-19 é especialmente letal para esses povos, pois atinge principalmente os idosos responsáveis pela transmissão oral das tradições do grupo. A contaminação de uma comunidade indígena pela COVID-19 pode dizimar toda uma cultura devido à morte de anciãos ou caciques [24]. A manutenção do tráfego ao longo do rio Madeira em vez da rodovia BR-319 ajudaria a preservar as etnias dos povos tradicionais da Amazônia, uma vez que a rodovia BR-319 aumenta as disparidades de saúde em detrimento das etnias mais vulneráveis. [28]


A imagem que abre este artigo é de autoria de Euzivaldo Queiroz (Especial para o MS), e mostra o General Pazuello em 11 de janeiro de 2021, em Manaus, apresentando o Plano Estratégico de Enfrentamento á covid-19 no Amazonas.


Notas

[1] Ferrante, L. & P.M. Fearnside. 2019. O novo presidente do Brasil e “ruralistas” ameaçam o meio ambiente, povos tradicionais da Amazônia e o clima global. Amazônia Real, 30 de julho de 2019.

[2] Congresso em Foco. 2021. Eduardo Pazuello não tem formação acadêmica em logística. Congresso em Foco. 13 de fevereiro de 2021.

[3] Verdélio,  A. 2022. Bolsonaro defende escolha de ministros por critérios técnicos. Agência Brasil. 18 de agosto de 2022.

[4]. Senado Federal. 2021. CPI da Pandemia. 26 de outubro de 2021.

[5] Basilio, P. 2021. ‘Um manda, o outro obedece’, já disse Pazuello sobre Bolsonaro; veja frases polêmicas do ministro. G1, 15 de março de 2021.

[6] Gomes, P.H. 2021. Exército diz que agiu conforme a lei ao estabelecer sigilo de 100 anos a processo de Pazuello. G1, 18 de junho de 2021. https://g1.globo.com/politica/noticia/2021/06/08/exercito-atribui-a-lei-sigilo-de-100-anos-em-processo-sobre-ida-de-pazuello-a-ato-com-bolsonaro.ghtml

[7] IBG Industria Brasileira de Gases. 2020. Cotação de Oxigênio Liquido –30 de setembro de 2020. 

[8] Marques, P. 2021. Comboio com 160 mil m³ de oxigênio chega com atraso em Manaus devido a condições da BR-319. G1, 24 de janeiro de 2021.

[9] Ferrante, L & P.M. Fearnside. 2020. Forças militares e Covid-19 como cortinas de fumaça para a destruição da Amazônia e violação dos direitos indígenas. Amazônia Real, 16 de dezembro de 2020.

[10] Fearnside, P.M., M.B.T. de Andrade & L. Ferrante. 2021. BR-319: Prefeito de Manaus aproveita crise de oxigênio para promover agenda anti-ambiental. Amazônia Real, 18 de janeiro de 2021.

[11] Jornal Hoje. 2021. Comboio com oxigênio para Manaus atola BR-319. Jornal Hoje. 23 de janeiro de 2021.

[12] Fleck, L. 2009. Eficiência Econômica, Riscos e Custos Ambientais da Reconstrução da BR 319. Série Técnica, no. 17. Conservation Strategy Fund (CSF), Lagoa Santa, MG, 53 p.

[13] Teixeira, K.M. 2007. Investigação de Opções de Transporte de Carga Geral em Conteineres nas Conexões com a Região Amazônica. Tese de doutorado em engenharia de transportes. Universidade de São Paulo, Escola de Engenharia de São Carlos, São Carlos, SP. 235 p.

[14] Ferrante, L. & P.M. Fearnside. 2020. BR-319: O caminho para o desmatamento da Amazônia. Amazônia Real, 07 de agosto de 2020.

[15] Andrade, M.B.T., L. Ferrante & P.M Fearnside. 2021. A rodovia BR-319, do Brasil, demonstra uma falta crucial de governança ambiental na Amazônia. Amazônia Real, 02 de março de 2021.

[16] Ferrante, L., M.B.T. de Andrade, L. Leite, C.A. Silva Junior, M. Lima, M.G. Coelho Junior, E.C. da Silva Neto, D. Campolina, K. Carolino, L.M. Diele-Viegas, E.J.A.L. Pereira & P.M. Fearnside. 2021. BR-319: O caminho para o colapso da Amazônia e a violação dos direitos indígenas. Amazônia Real, 23 de fevereiro de 2021.

[17] Ferrante, L.; Andrade, M.B.T.; Fearnside, P.M. 2021. Grilagem na rodovia BR-319. Amazônia Real,

[18] Ferrante, L., L. Duczmal, W.A. Steinmetz, A.C.L. Almeida, J. Leão, R.C. Vassão, U. Tupinambás & P.M. Fearnside. 2021. How Brazil’s president turned the country into a global epicenter of COVID-19. Journal of Public Health Policy 42: 439–451.

[19] Ferrante, L., M. Gomes & P.M. Fearnside. 2020. BR-319 ameaça povos indígenas. Amazônia Real.

[20] Ferrante, L. & P.M. Fearnside. 2021. Governo viola direitos indígenas. Amazônia Real,

[21] Mendes, I.F.S. 2021. Processo: 1035291-44.2021.4.01.0000 Processo referência: 1022245-88.2021.4.01.3200. Tribunal Regional Federal da 1ª Região, Brasília, DF. 27 de setembro de 2021.

[22] Magnusson, W.E. 2020. Análise do EIA-RIMA do trecho do meio da rodovia BR-319. Re: Ofício nº 205/2019/9ºOFÍCIO/PR/AM (expediente PR/AM-00055261/2019).

[23] Ruaro,R., L. Ferrante & P.M. Fearnside. 2021. Licenciamento ambiental do Brasil condenado. Amazônia Real, 08 de junho de 2021.

[24] Ferrante, L., W.A.C. Steinmetz, A.C.L. Almeida, J. Leão, R.C. Vassão, U. Tupinambás, P.M. Fearnside & L.H. Duczmal. 2020. As políticas do Brasil condenam a Amazônia a uma segunda onda de Covid-19. Amazônia Real, 11 de agosto de 2020.

[25] Ferrante, L., S. Livas, W.A. Steinmetz, A.C.L. Almeida, J. Leão, R.C. Vassão, U. Tupinambás, P.M. Fearnside & L.H. Duczmal. 2021. The first case of immunity loss and SARS-CoV-2 reinfection by the same virus lineage in Amazonia. Journal of Racial and Ethnic Health Disparities 8: 821–823.

[26] Sansone, N.M.S., M.N. Boschiero, M.M. Ortega, I.A. Ribeiro, A.O. Peixoto, R.T. Mendes & F.A.L. Marson. 2022. Severe acute respiratory syndrome by SARS-CoV-2 infection or other etiologic agents among Brazilian indigenous population: An observational study from the first year of coronavirus disease (COVID)-19 Pandemic. Lancet Regional Health – Americas 8: art. 100177. https://doi.org/10.1016/j.lana.2021.100177

[27]. Ferrante, L. & P.M. Fearnside. 2020. Proteger os povos indígenas do COVID-19. Amazônia Real, 17 de abril de 2020.

[28] Esta série traduz o trabalho Ferrante, L. & P.M. Fearnside. 2023. Brazil’s Amazon oxygen crisis: How lives and health were sacrificed during the peak of COVID-19 to promote an agenda with long-term consequences for the environment, indigenous peoples and health. Journal of Racial and Ethnic Health Disparities


Sobre os autores

Lucas Ferrante é doutor em Biologia (Ecologia) pelo Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa) e atualmente é pós-doutorando na Universidade Federal do Amazonas (Ufam). Foi primeiro autor de notas em Science e Nature Medicine sobre o impacto de COVID-19 na Amazônia, inclusive em povos indígenas, e coordenou o grupo formado a pedido do Ministério Público-AM sobre o COVID-19 em Manaus. Tem pesquisado agentes do desmatamento, buscando políticas públicas para mitigar conflitos de terra gerados pelo desmatamento, invasão de áreas protegidas e comunidades tradicionais, principalmente sobre Terras indígenas e Unidades de Conservação na Amazônia.

Philip Martin Fearnside é doutor pelo Departamento de Ecologia e Biologia Evolucionária da Universidade de Michigan (EUA) e pesquisador titular do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa), em Manaus (AM), onde vive desde 1978. É membro da Academia Brasileira de Ciências. Recebeu o Prêmio Nobel da Paz pelo Painel Intergovernamental para Mudanças Climáticas (IPCC), em 2007. Tem mais de 750 publicações científicas e mais de 700 textos de divulgação de sua autoria que estão disponíveis aqui.

As informações apresentadas neste post foram reproduzidas do Site Amazônia Real e são de total responsabilidade do autor.
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