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A COP no divã - Amazônia Real

A COP no divã – Amazônia Real


Belém (PA) – A COP30 tornou-se não apenas um fórum de negociações climáticas, mas também um espelho das contradições políticas, econômicas e sociais que moldam o debate ambiental no país. Nas ruas, nos espaços paralelos e mesmo dentro dos pavilhões oficiais em Belém, multiplicaram-se manifestações de povos indígenas, quilombolas e movimentos socioambientais. O porangaço, os atos dos Munduruku, a passeata do clima e demais intervenções de grupos tradicionais lembram que, para quem vive entranhado na floresta, a crise climática não é pauta de gabinetes diplomáticos. Ela é cotidiano, é território, é sobrevivência. Simples assim. Ela se manifesta na desestruturação de modos de vida, no avanço da violência territorial, na contaminação das águas e no desmatamento que pressiona diretamente suas existências.

Esse contraste se intensificou porque, dentro da conferência, a presença de grandes financiadores privados e setores historicamente ligados à destruição ambiental tem sido marcante. Empresas de mineração, petróleo, agronegócio e química se apresentaram com discursos afinados sobre sustentabilidade, inovação verde e compromisso com metas climáticas, enquanto são apontadas por comunidades e especialistas como vetores centrais de pressão sobre florestas, rios e modos de vida tradicionais. Essa dualidade — protesto popular de um lado, vitrine corporativa do outro — cria um ambiente onde a disputa narrativa é tão intensa quanto as negociações climáticas formais. É como se fosse criada uma espécie de paisagem partida. De um lado, a urgência concreta e de outro, estratégias de ‘branding’ ambiental, ou seja, a gestão estratégica de uma marca, englobando a criação e manutenção de sua identidade para torná-la mais conhecida, desejada e valiosa. Negócios, no final das contas.

A própria dinâmica interna da COP reforçou esse descompasso. Mais de 1.600 lobistas de combustíveis fósseis tiveram acesso às negociações climáticas, um número sem precedentes desde o início do monitoramento da ‘Kick Big Polluters Out’, uma organização que combate as chamadas ‘empresas poluidoras ambientais’.  Os números impressionam. Segundo a organização, um em cada 25 participantes da cúpula representava interesses de petróleo, gás ou carvão, superando praticamente todas as delegações nacionais e escancarando a força desses atores nos bastidores das decisões globais.

A forte presença de lobistas do agronegócio e da mineração,  entre outros, circulando nos espaços oficiais e nos bastidores, reforça a percepção de que a zona de debates da COP é permeada por interesses econômicos capazes de tensionar decisões e suavizar resoluções. A crítica de movimentos socioambientais não é apenas à presença desses atores, já que o ambiente democrático assim o permite, mas ao descompasso entre compromissos globais e práticas domésticas.

A influência econômica também se materializou nos patrocínios oficiais. A Bayer, criticada por movimentos sul-americanos por fomentar um modelo agrícola que impulsiona “desmatamento em massa”, tornou-se patrocinadora diamante da Agrizone, pavilhão organizado pela Embrapa. Esse arranjo ilustra não apenas a força do agronegócio na cena nacional, mas seu esforço crescente em se apresentar como protagonista da sustentabilidade, mesmo com altos índices de emissões, dependência de agrotóxicos e presença em áreas de avanço sobre biomas frágeis.

No plano interno, o governo brasileiro vive seu próprio paradoxo. Embora busque projetar liderança climática internacional, investindo em narrativas de proteção da Amazônia e transição ecológica, enfrenta críticas por decisões que vão na direção oposta. A liberação de novos agrotóxicos, apontada por organizações ambientalistas como incoerente com a agenda de transição ecológica, reacende o debate sobre o peso do agronegócio na formulação das políticas nacionais. Essa medida simboliza a dificuldade do país em conciliar metas ambientais com pressões econômicas de setores influentes.

A insistência na exploração de petróleo na Foz do Amazonas e a defesa de infraestruturas como o Ferrogrão também colocam em xeque a coerência dessas promessas sustentáveis. Esses movimentos não soam como incidentes isolados, mas evidências de que setores poderosos continuam ditando prioridades, muitas vezes em detrimento dos compromissos ambientais assumidos pelo país.

Essa contradição ganha ainda mais peso quando inserida no cenário global. Nos últimos meses, o continente americano enfrentou impactos extremos: um furacão que devastou partes do Caribe, enchentes históricas no sul do Brasil e um tornado no Paraná, que deixou mortos e centenas de feridos. Ao mesmo tempo, o relatório Global Tipping Points 2025 alertou para o primeiro ponto de não-retorno ultrapassado, que é o branqueamento irreversível dos recifes de corais, evidência de que os sistemas de regulação do planeta entram em colapso mais rapidamente do que se previa.

Na Amazônia, embora tenha ocorrido uma redução nas taxas de desmatamento em relação ao período Bolsonaro, a pressão continua alta. Mineração ilegal, grilagem, expansão irregular do agronegócio e violência contra comunidades seguem em ritmo que contradiz o discurso global de proteção da floresta. Os povos tradicionais denunciam ainda contaminação por agrotóxicos, conflitos fundiários e a presença hostil de garimpeiros, muitas vezes mais velozes e violentos que qualquer política pública.

O resultado é uma COP em que a distância entre o discurso e a prática se torna evidente. E, paralelamente, empresas e representantes do grande capital ocupam posições de destaque nos painéis, reforçando a ideia de que a transição ecológica, para eles, é antes um mercado do que uma reparação histórica. Enquanto negociadores falam em justiça climática, descarbonização e preservação da Amazônia, povos tradicionais denunciam que suas vidas continuam ameaçadas pelo avanço de interesses econômicos. Enquanto empresas falam em inovação verde, seus modelos de produção seguem dependentes de práticas predatórias.

Em meio a tudo isso, a cobertura da grande imprensa brasileira se mostra insuficiente, muitas vezes superficial. Veículos historicamente alinhados ao agronegócio e ao mercado financeiro enfatizaram as “contradições” do governo Lula, mas pouco mencionaram as contradições estruturais do próprio modelo econômico que defendem, o mesmo que molda as ações criticadas. A falta de profundidade no debate midiático deixa de problematizar as raízes do problema, reduzindo conflitos complexos a disputas narrativas rasas. Mas aí adentramos em outra discussão. Os grandes financiadores da COP30 também estão financiando importantes veículos de mídia tradicional, numa relação no mínimo complicada. É só ver diariamente as manchetes dos dois maiores portais de notícias do Brasil que percebemos o quanto a COP30 é assunto lateral, menor na pauta do dia para esses veículos.

A COP30, portanto, sintetiza as tensões do Brasil contemporâneo: um país que abriga a maior floresta tropical do mundo (entre outros biomas importantes como o Cerrado e a Mata Atlântica) e comunidades que a defendem há séculos, mas cuja economia segue ancorada em modelos extrativistas; um governo que busca protagonismo climático, mas enfrenta alianças e pressões internas que limitam sua coerência; uma conferência que deseja apontar caminhos para o futuro, mas que é atravessada por conflitos urgentes e não resolvidos no presente.

O que se extrai dos protestos, dos corredores e das plenárias é a consciência de que nenhum pacto climático será sólido enquanto ignorar as populações que vivem na linha de frente da crise. E que não haverá transformação real se as forças que alimentam o colapso ambiental continuarem sendo legitimadas como protagonistas da solução. Enfrentar a emergência climática exige um pouco mais do que acordos internacionais. Ela exige coragem política e disposição para enfrentar contradições profundas dentro e fora das zonas oficiais de debate. E isso não é apenas no Brasil. É na própria lógica global que sustenta o aquecimento, o desequilíbrio ambiental e a desigualdade. Como disse recentemente o jornalista Leonardo Sakamoto, a fortuna trilionária de Elon Musk eliminaria a fome no mundo. Alguém está disposto a fazer esse debate de forma profunda?


As informações apresentadas neste post foram reproduzidas do Site Amazônia Real e são de total responsabilidade do autor.
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