Com a derrubada dos vetos do presidente Lula (PT) à Lei que estabelece o Marco Temporal, lideranças indígenas enxergam novo julgamento no STF com esperança de reafirmação da tese já julgada pela Corte e tem pelos outros temas que terão a inconstitucionalidade avaliada pelos 11 ministros. Na foto, indígena acompanha o julgamento do Marco Temporal em frente ao STF em julho de 2023 (Foto: Joédson Alves/Agência Brasil).
Manaus (AM) – O movimento feito pelo Congresso Nacional, na última quinta-feira (14), para derrubar os vetos do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) da Lei 14.701 (antigo PL2903, que resgata a tese do marco temporal), de 2023 trouxe à tona dois sentimentos distintos entre os povos indígenas. O primeiro, parte de uma quase “certeza” de que o Supremo Tribunal Federal (STF) irá referendar a inconstitucionalidade da tese, coisa que a própria Corte já fez, em setembro deste ano, durante o julgamento do Recurso Extraordinário 1017365 [de repercussão geral]. O placar final de 9 x 2 contra a tese do Marco Temporal, deixou claro que há um entendimento na corte sobre a inconstitucionalidade da matéria. Para os indígenas, o problema é o que vem a seguir, que são os outros trechos da lei que o STF terá de avaliar.
O coordenador jurídico da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB), Maurício Terena, já havia adiantado à Amazônia Real que esperava que o Congresso Nacional derrubasse os vetos do presidente Lula, antes da votação. O advogado indígena falou novamente com a reportagem, na última sexta-feira (15), enquanto trabalhava para fechar os últimos ajustes da Ação Direta de Inconstitucionalidade (Adin) que APIB vai ingressar no STF, junto com os partidos políticos PT, PSB, Rede Sustentabilidade, PSOL e PC do B.
Maurício Terena contou que não esperava que três vetos feitos por Lula fossem mantidos pelo Congresso Nacional. A expectativa inicial era de que os vetos fossem derrubados em sua integralidade.
“Três vetos foram mantidos: o que diz respeito aos povos indígenas isolados e de recente contato e à perda de terra por mudanças de traços culturais e plantação de transgênicos. Então, estamos fazendo esses ajustes aqui [na Adin] porque a gente vinha desenhando a ação como se o Congresso tivesse derrubado tudo, mas como manteve esses vetos, estamos trocando uma ideia sobre a questão do dia do protocolo. A gente provavelmente vai assistir umas cenas dos próximos capítulos”, disse Terena.
O coordenador jurídico da APIB afirmou que, por enquanto, ainda não há uma data fechada para a organização ingressar com a Adin, já que existe internamente uma discussão de estratégia jurídica, uma vez que o Supremo Tribunal Federal entrará em recesso nesta quarta-feira (20), retornando apenas no dia 6 de janeiro de 2024. MaurícioTerena explica que, durante o período do recesso, as decisões são tomadas pelo presidente da Corte, no caso, o ministro Luís Roberto Barroso.
Vetos derrubados no Congresso
O veto ao Marco Temporal foi derrubado na Câmara dos Deputados por 321 votos a favor e 137 contra. A nova legislação foi chamada pela Apib de “Lei do Genocídio”, por impor várias medidas que violam direitos dos povos indígenas.
Já no Senado, o placar foi de 53 a 19. Entre os vetos do presidente Lula que foram derrubados pelo Congresso Nacional está o que delibera sobre a questão do Marco Temporal, em si.
Outros itens com veto derrubado foram: a proibição de ampliação de terras indígenas já demarcadas; a questão da adequação dos processos administrativos de demarcação ainda não concluídos às novas regras. O texto trata ainda também da nulidade da demarcação que não atenda a essas regras.
O texto da nova Lei preverá que o usufruto das terras pelos povos indígenas não se sobrepõe ao interesse da política de defesa e soberania nacional, permitindo a instalação de bases, unidades e postos militares e demais intervenções militares sem que haja necessidade de consulta às comunidades indígenas ou mesmo sem a necessidade de se consultar a Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai).
A nova lei amplia a dispensa de ouvir os indígenas em casos de expansão de rodovias, bem como a exploração de energia elétrica. Com isso, por exemplo, o governo não precisará mais fazer consultas aos povos indígenas como prevê a Convenção n° 169 da OIT (Organização Internacional do Trabalho) sobre Povos Indígenas e Tribais, a qual o Brasil é signatário.
Também segundo a letra da nova Lei, as Forças Armadas e a Polícia Federal não precisarão fazer consulta às comunidades ou à Funai para realização de operações.
O poder público poderá instalar equipamentos, redes de comunicação, e tudo que for considerado necessário à prestação de serviços públicos.
A nova Lei permite aos povos indígenas o livre exercício de atividades econômicas pelos próprios indígenas e até por terceiros [não indígenas] contratados para este fim. A Lei prevê que os povos indígenas poderão assinar contratos de cooperação com não indígenas para a realização de tais atividades. A terra, porém, segue na posse dos indígenas e esses contratos de serviço precisam obrigatoriamente serem registrados na Funai.
O texto trata ainda das indenizações por benfeitorias realizadas pelos ocupantes das terras indígenas, sendo que, até a conclusão do procedimento de demarcação, o ocupante pode permanecer no território.
Para o advogado Ivo Maxuci, que é assessor jurídico do Conselho Indígena de Roraima, cabe ao Supremo agora fazer a interpretação da Constituição, já se posicionando contra o Marco Temporal.
“Agora, os outros pontos da Lei, nós não sabemos como vai ser o posicionamento do Supremo, porque existe, inclusive, o artigo que trata de grandes empreendimentos em terras indígenas sem consulta aos povos indígenas e isso pode abrir uma discussão como nós vimos inclusive no julgamento do Marco Temporal, com o ministro Gilmar (Mendes), suscitando a necessidade de se discutir a regulamentação da mineração em terras indígenas, isso pode ser discutido inclusive no julgamento da ação direta de inconstitucionalidade que vai questionar essa lei”, pontua.
Ivo Macuxi aponta que o movimento feito pelo Congresso Nacional, com a derrubada dos vetos, visa atender interesses econômicos, de um “projeto de desenvolvimento nacional”, que violenta a Constituição Federal, que reconhece os direitos constitucionais dos povos indígenas, direitos originários, inclusive, direitos territoriais.
“Eles [políticos] alegam [que o Marco Temporal] vai trazer insegurança jurídica no campo, mas isso é só uma falácia! Por outro lado, os povos indígenas, vão continuar sofrendo toda a forma de violência, principalmente assassinato, já que há uma expectaiva de legalização de garimpo, mineração e tudo isso reflete lá nos territórios indígenas, aumento de invasões e violência contra os povos indígenas”, analisa Ivo, que reafirma que nova Lei é um atentado à Constituição Federal que consagra os direitos dos povos indígenas.
O que dizem as lideranças indígenas
Para a coordenadora da Associação Indígena Pariri, Alessandra Munduruku, que é líder indígena do povo Munduruku do Médio Tapajós, no Pará, é nítida a posição contrária do Congresso Nacional aos povos indígenas do Brasil.
“A gente vem acompanhando a própria sociedade brasileira, coloca um deputado, um senador, que odeia os indígenas. O que parece é que os povos indígenas estão em uma luta solitária por seus territórios”, desabafa.
Para Alessandra, já está mais do que clara a inconstitucionalidade da tese do Marco Temporal. “Infelizmente, algumas pessoas ligadas ao agronegócio enxergam a questão não pelo ponto de vista da Constituição, mas pelo ponto de vista do desenvolvimento. O desenvolvimento de um País, que não envolve crianças, mulheres, pajés, lugares sagrados, florestas… Eles vão atropelando tudo. A sociedade civil precisa fazer urgentemente uma campanha contra esse ruralismo, contra o Marco Temporal e contra a exploração de petróleo na Amazônia”, pontua a líder indígena.
Herton Mura, que é professor e assessor técnico da Organização das Lideranças Mura do Careiro da Várzea (OLIMCV), no Amazonas, compartilha da mesma visão de Alessandra Munduruku sobre o Marco Temporal.
“Todos já sabem, todo o corpo jurídico no Brasil, sabe que Marco Temporal é inconstitucional. Ele vem contra o que diz o artigo 231 da Constituição Federal, então não existe isso de dizer que a terra indígena só é terra indígena, se os indígenas já estavam lá antes da Constituição”, analisa, lembrando a condição de muitos povos indígenas de todo o País que foram expulsos de suas terras ao longo do tempo.
Herton alerta também que o Marco Temporal abre precedentes para vários crimes contra os povos indígenas e também contra a biodiversidade amazônica “porque existem muitas mineradoras, muitas propostas de mineração e a ideia do Marco Temporal nem é tanto por conta só do agronegócio. Além do latifundiário, tem a parte da mineração que tem esse interesse. Eles sabem que a mineração em terra indígena é inconstitucional e, com a tese do Marco Temporal, isso facilita para essas empresas, para esses grandes empresários”, finaliza.
O caminho de volta
O julgamento da tese do Marco Temporal foi encerrado no dia 27 de setembro deste ano. A ação foi originada a partir da disputa pela posse da Terra Indígena Ibirama-Laklãnõ, em Santa Catarina. No local vivem indígenas das etnias Xokleng, Guarani e Kaingang. O governo catarinense tentava a reintegração de posse. Se a tese do Marco Temporal tivesse sido acolhida pelo STF, os indígenas teriam que desocupar as terras em Santa Catarina.
O julgamento teve início em 2021, no Supremo Tribunal Federal, e só foi encerrado em 2023. Votaram contra a tese do Marco Temporal os ministros Edson Fachin, Alexandre de Moraes, Cristiano Zanin, Luís Roberto Barroso, Dias Toffoli, Luiz Fux, Cármen Lúcia, Gilmar Mendes e a presidente do Supremo, Rosa Weber. Apenas os ministros Kássio Nunes Marques e André Mendonça, ambos indicados pelo ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), votaram a favor da admissão da tese.
O Projeto de Lei (PL 2.903/2023) aprovado pelo Congresso Nacional foi uma resposta do legislativo ao julgamento sobre a tese do Marco Temporal, feito pelo Supremo Tribunal Federal. Quando os ruralistas perceberam que a tese seria derrubada pela suprema corte, as votações do PL foram aceleradas nas duas casas legislativas, em Brasília, até ser aprovado de forma definitiva no Senado, no dia 27 de setembro de 2023, no mesmo dia em que o STF encerrou o julgamento do Marco Temporal, fixando 13 itens para a tese de repercussão geral.
Agora, com o Congresso Nacional derrubando os vetos do presidente Lula e a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil, junto com PT, PSB, Rede Sustentabilidade, PSOL e PCdoB, o caso vai voltar ao STF.
“Vamos assistir a cenas dos próximos capítulos dentro do plenário do Supremo Tribunal Federal, inclusive novamente tratando sobre o Marco, mas também as outras questões que têm a lei que no nosso entendimento é também inconstitucional. A gente não tem tanta previsibilidade a respeito das outras matérias, mas em relação ao Marco Temporal, a gente está bem confiante que a corte vai manter a jurisprudência”, confia Maurício Terena.
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