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A cara do Brasil e a 'reforma perfeita' – Opinião – CartaCapital

A cara do Brasil e a ‘reforma perfeita’ – Opinião – CartaCapital

Em pronunciamento ao Congresso Nacional, quando  festejava com Arhur Lira e Rodrigo Pacheco a promulgação da reforma tributária, que seu ministro da Fazenda qualificou de “perfeita”, o presidente Lula sentiu-se no dever, que as circunstâncias talvez expliquem, de saudar os parlamentares, esses que vêm coartando o governo em sua inclinação progressista. Com as vistas voltadas para o Plenário, afirmou: “O Congresso é a cara do ”.

O presidente não se referia a um Congresso in abstrato saltado das páginas dos manuais de ciência política, mas a um colegiado específico, precisamente a este que aí está, ao fim de seu primeiro e deletério ano de legislatura. Lula referia-se claramente ao caráter sociológico da composição parlamentar. Errou. Como ter a cara do Brasil um Congresso de homens brancos e majoritariamente ricos, quando 55% de nossa gente se declara de cor parda ou  pretaquando 51% da população é constituída de mulheres que ocupam apenas 8% das vagas na Câmara dos Deputados?

Fixando-se  na aparência, Lula deixou de ver (ou não quis ver) a essência degenerada do Congresso, como  instrumento da dominação de classe que é, e assim destoante da realidade social brasileira, formada por trabalhadores e assalariados de um modo geral, multidões de desempregados, quase todos sem proteção previdenciária, enfim uma nação dilacerada: 37% de sua gente passa fome; algo como 100 milhões de mulheres, homens e crianças formam o grupo dos que não sabem se almoçarão dois dias seguidos; milhões de camponeses sem terra pedem trabalho, numa economia capitalista que ainda convive com o latifúndio; milhões de homens e mulheres sem teto, milhões de “moradores de rua” que morrerão sem saber o que é o Estado brasileiro. Em suma, a agora celebrada 9ª economia do mundo é, ao mesmo tempo, a segunda maior concentração de renda do planeta, ultrapassada nessa miséria apenas pelo Catar. Esses brasileiros não são representados no Congresso que aí está.

A cara do atual Congresso, registrada pelo DIAP, indica a presença majoritária dos empresários na Câmara dos Deputados: 174, nada menos de 33,9% de seu total (513). Se a esse contingente somarmos 68 advogados, 24 médicos, 24 policiais, 19 administradores, 12 engenheiros, nove agricultores, sete delegados de polícia, nove militares e três administradores públicos, teremos a representação dos interesses da classe dominante: ela controla direta ou indiretamente 67,4% das cadeiras da Câmara. No contrapelo, apenas um sindicalista e um operário! A majoritária cor da classe dominante no Congresso que hoje temos revela a deterioração da democracia representativa.

Esse Congresso, porém, nada ou muito pouco se distingue de sua origem histórica: no nascimento um colégio de nobres  – duques, viscondes e marqueses improvisados, ao lado de latifundiários, e representantes do clero católico e já do exército;  na essência, o Congresso de Lira e Pacheco reproduz aquele plenário que na Constituinte foi frequentado pelo deputado Lula. Terminada a Constituinte, vem, legislatura por legislatura, desfazendo os avanços sociais da Carta promulgada pelo Dr. Ulysses. Sua tarefa presente é revogar, sem consulta à soberania popular, o sistema presidencialista – já transformado em um mostrengo, um híbrido no qual o parlamento governa controlando o orçamento da União. Efetiva-se aos poucos, com o concerto da cidadania silente, a mesma ditadura da Câmara que, após manietar o segundo governo Dilma, natimorto, determinou o impeachment da presidente, ao arrepio da Constituição, mas com o beneplácito do poder judiciário, sempre pronto a legitimar os golpes de Estado, ainda quando não acicatado pelas baionetas (como fôra em 1964).

A composição social do Congresso, que Lula não viu, é representativa daquele pequeno grupo de homens brancos que controlam a economia nacional e, por via de consequência, a política, o que lhes dá condições de formar os corpos legislativos com seus despachantes de luxo. Representam o 1% mais rico da população, cuja renda média mensal per capita foi de 17.447 reais em 2022, ou seja, uma renda média real mensal 32,5 vezes maior que o rendimento da metade mais pobre do povo brasileiro!

Assim, quando trabalha, e às vezes o faz com afinco, como nas últimas semanas, o Congresso simplesmente exerce o ofício de protetor dos interesses dos poderosos, ou seja, atua contra o País e seu povo, e exerce extremada vigilância contra eventuais avanços sociais e políticos suscitados pela centro-esquerda, seja mediante ação executiva, seja pela via legislativa. Essas tentativas de avanço, mínimas que sejam, são atropeladas pelo rolo compressor da direita, que se move a partir do presidente da Câmara dos Deputados e chega até ao mais obscuro membro do “Centrão”, o valhacouto que constitui a base fisiológica dominante nas votações das duas casas do Legislativo. Assim, o Congresso que não tem a cara do povo brasileiro move guerra sem quartel contra o MST e qualquer tentativa de democratização da terra, derruba a iniciativa do marco temporal para legitimar o avanço sobre as terras indígenas, ataca o ensino publico, de olho nos recursos do Fundeb e do FNDE. Emperra todas as medidas que digam respeito a direitos sociais, trabalhistas ou previdenciários, emperra toda tentativa de regulamentação do capital, e se impõe contra qualquer mecanismo de combate à discriminação étnica ou de gênero. Para desorganizar o País, combate o governo naquilo que ele tem de melhor: os projetos sociais. É um aliado dos grileiros e dificulta a defesa do . De vez em quando se dá ao luxo de aprovar uma ou outra proposta do executivo, mas mesmo assim ao preço do assalto ao erário. Esse tráfico a grande imprensa, naturalizando-o, batiza de “negociações entre Poderes”.

Antes de encerrar os trabalhos da atual legislatura, a Comissão Mista de Orçamento aprovou o projeto de Lei Orçamentária Anual (LOA), com um corte de 6 bilhões de reais no Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), menina dos olhos de Lula e reconhecido por gregos e troianos como fundamental para a retomada do desenvolvimento. O corte se deveu a manobra para aumentar o volume das emendas parlamentares, aquelas que são destinadas aos redutos de suas excelências, preparando-se a um só  tempo para a eleição de seus prepostos em 2024 e o financiamento de suas próprias campanhas, em 2026, pois a reprodução do mandato é o mandamento básico do parlamentar de hoj

O Relatório da CMO prevê 16,6 bilhões de reais para as emendas de comissões, atalho criado para substituir o “orçamento secreto”, que foi muito mal-recebido pela sociedade. Se depender dessa Comissão, nada menos de 25 bilhões de reais serão destinados a emendas individuais dos congressistas, e outros 11,3 bilhões às emendas de bancada. O valor das emendas parlamentares chega a 53 bilhõe de reais.

Mas o assalto não está de todo completo. A esses valores, devem-se somar os recursos destinados ao Fundo Partidário, 462 milhões de reais para 21 partidos, e nada menos que 4,96 bilhões (o título da prebenda é Fundo Eleitoral) para o financiamento das eleições de 2024.

O Congresso que, além do PAC, corta recursos da Saúde (851 milhões), Transportes (452 milhões), Cidades (336 milhões), Defesa (331 milhões), e Educação (320 milhões), ou seja, 2,2 bilhões de reais, é o mesmo que abocanha 58,3 bilhões para a farra eleitoral, pois esta é a soma do absurdo que não escandaliza a opinião pública, também conhecida simplesmente como “opinião publicada”.

Um Congresso com a cor de nosso povo não cometeria tatos disparates.

Mas, em meio a tudo isso, e ao cabo do ano legislativo, o senador Rodrigo Pacheco poderá dizer-nos que o Congresso terminou por nos legar uma Reforma Fiscal há algo como trinta anos reclamada pela classe dominante. Mas a dita reforma, costurada como colcha de retalhos (método necessário para acomodar interesses) nada tem de “perfeita”, como anunciou insistentemente o ministro da Fazenda.

Trata-se mesmo de reforma superficial, perfunctória, inconclusa, talvez tão-só técnica, mas sem cor: não cuida dos interesses dos consumidores, a grande massa dos brasileiros. Seu mérito, decantado pelo governo, pela direita e pela Faria Lima, e por meia dúzia de tributaristas, é a promessa de  simplificar a arrecadação e o trabalho dos contadores e advogados das empresas, e a consequente redução dos recursos judiciais e administrativos.

Promete, de quebra, economia de custos para empresas e agilidade à burocracia especializada. As empresas de rating aplaudiram. É, sim, alguma coisa ante a barafunda antiga, mas ainda muito pouca coisa para justificar a  alegria de um governo de centro-esquerda. Mantém de pé a perversidade visceral  do caráter regressivo da carga tributária, punitivo do pobre e benfeitor dos especuladores e dos rentistas de modo geral. Fugindo da necessidade social do imposto progressivo, fundamentalmente incidente sobre a renda, a propriedade e a herança, a reforma “perfeita” mantém o peso da arrecadação, ou seja, da tributação, sobre o consumo, isto é, sobre os pobres, cujo consumo de subsistência devora o salário. Assim,  o ministro Haddad e o contínuo que lhe serve café e água gelada na Esplanada pagam o mesmo imposto quando no supermercado ou no armazém da periferia compram arroz ou feijão.

O Congresso brasileiro não é a cara de nosso povo. E jamais o foi, pois foi sempre o que é, a representação da dominação de classe que pervade, desde a colônia, todas as instâncias do poder: desde a falsa nobreza, latifundiários e traficantes de escravos, o clero e os militares (protetores da Ordem) aos beneficiários contemporâneos da economia primária agroexportadora, os industriais que não investem em tecnologia (preferindo o leasing) e os especuladores e rentistas de um modo geral, os comissários do grande capital internacional, seus delegados, seus procuradores, seus porta-vozes e seus lugar-tenentes..

Mais do que todos nós, Lula, constituinte de 1988,  conhece essa realidade. Não terá sido em vão sua caminhada histórica — menino flagelado das secas do semiárido pernambucano, tangido pela fome para sobreviver como favelado em Santos –, até chegar, pela terceira vez, à Presidência do País, que já palmilhou milhares de vezes, de ponta a ponta.

O mais representativo de quantos presidentes tivemos, Lula conhece como ninguém o povo brasileiro, e sabe que ele não se identifica nem se confunde com aquela gente que lotava o Plenário da Câmara dos Deputados na sessão do Congresso do dia 20 de dezembro.

*  Com a colaboração de Pedro Amaral

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

As informações apresentadas neste post foram reproduzidas do Site Carta Capital e são de total responsabilidade do autor.
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