Em 31 de março de 2024, o 60º aniversário do golpe que instalou a ditadura militar no Brasil de 1964-1985 estimulou a reflexão sobre essa era sombria e suas consequências hoje, apesar do presidente Luiz Inácio Lula da Silva ter proibido agências do governo federal de realizar quaisquer eventos oficiais para esse fim [1]. O gesto de Lula para obter favores dos atuais militares do Brasil tem sido parte de um padrão [2]. A explicação mais lógica decorre da história relativamente recente de intervenção e governo militar no Brasil.
Aproximadamente metade do que resta da floresta amazônica brasileira está ameaçada pela proposta de “reconstrução” da rodovia BR-319 (Manaus-Porto Velho) e pelos planos rodoviários associados ligados a este projeto [3-5]. O fantasma da ditadura militar brasileira de 1964-1985 permeia tanto o passado como o presente deste desastroso projeto rodoviário. A rodovia foi construída em 1968-1973 e inaugurada oficialmente em 1976, durante um período em que alguns generais podiam encomendar tais projetos essencialmente sem nenhuma consideração dos custos ambientais e humanos e até mesmo da simples viabilidade económica. A rodovia foi abandonada em 1988, mas desde 2015 um programa de “manutenção” a tornou transitável durante a estação seca.
Uma lei aprovada pelo Congresso Nacional em 2008 e assinada pelo então Presidente Lula exige um estudo de viabilidade económica para qualquer projeto de grande vulto [6]. Com base nessa lei, em 2009 a então senadora Marina Silva elaborou um requerimento da Comissão de Meio Ambiente do Senado Federal ao Departamento Nacional de Transportes Rodoviários (DNIT) solicitando informações sobre o estudo econômico necessário para o projeto de reconstrução da BR-319 [7]. Isso levou o DNIT a obter um “acordão” do Tribunal de Contas da União (TCU) declarando que não era necessário nenhum estudo de viabilidade econômica [8]. O acordão do TCU baseou-se na lei de segurança nacional de 1973 [9], emitida durante a gestão de Emílio Garrastazu Médici, que declarou a BR-319 essencial para a “segurança nacional” e isenta de estudo de viabilidade econômica. Não foi explicado o que justifica que um decreto da ditadura de 1973 tenha precedência sobre uma lei subsequente aprovada pelo Congresso Nacional democraticamente eleito.
A lei de segurança nacional de 1973 ainda é usada como base para justificar a ausência de estudo de viabilidade econômica (EVTEA) para o projeto de reconstrução. A versão atual do Estudo de Impacto Ambiental (EIA) do projeto ([10] Parte 5.2) justifica essa ausência citando o acordão do TCU e também cita uma portaria interna do próprio DNIT reivindicando isenção do EVTEA com base na lei de 1973 [11]. A lei de 1973 [9] foi revogada em 2021 [12].
O slogan “ocupar para não entregar”, que significa ocupar a Amazônia com mais população brasilera para não entregar a região a potências estrangeiras, foi um princípio norteador da ditadura militar nas decisões iniciais de construção de rodovias amazônicas como a BR-319 [13]. Ironicamente, a BR-319 facilitaria a exploração dos recursos naturais do Brasil por iteresses estrangeiros, mais notavelmente a empresa petrolífera russa Rosneft [14, 15].
A BR-319 não é realmente uma prioridade para a segurança nacional, apesar da lei de 1973 ter declarado que sim. A atual Estratégia de Segurança Nacional do Ministério da Defesa, assim como suas antecessoras em 2008, 2012 e 2016, não faz menção à BR-319 [16]. Em 2012, o então chefe do Exército Brasileiro na região amazônica (General Eduardo Villas Bôas) ministrou um seminário no Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (INPA) sobre “segurança nacional na Amazônia” e não fez nenhuma menção da BR-319 como prioridade [17]. Questionado ao final de sua apresentação de quase duas horas, ele confirmou claramente que a BR-319 não é uma prioridade de segurança nacional porque a rodovia fica longe de qualquer fronteira do Brasil e quaisquer problemas teriam que ser resolvidos com o transporte aéreo de tropas a paratir de um local central, como Manaus, até uma série de bases mantidas ao longo das fronteiras (ver: [18]).
O apelo à “segurança nacional” para justificar a ausência de um estudo de viabilidade económica faz parte de uma longa história de tentativas para justificar esta ausência por outros meios. Em 2007-2008, o então Secretário de Desenvolvimento Sustentável do Estado do Amazonas (Vigílio Viana) fez repetidos pedidos de explicações ao DNIT, sem sucesso. A desculpa foi que um estudo econômico havia sido feito quando a estrada original foi proposta, mas o DNIT não conseguiu localizá-la. A questão foi levantada diversas vezes durante as reuniões do Fórum BR-319 organizadas pelo Ministério Público Federal no Amazonas (MPF-AM) entre 2017 e 2020, e a resposta do representante do DNIT sempre foi que um estudo de viabilidade econômica realizado no o final da década de 1960 existia e era procurado na sede do DNIT, em Brasília.
O MPF acabou dando ao representante do DNIT um prazo de 30 dias para apresentar o estudo, seguido de uma prorrogação de 30 dias concedida quando o representante explicou que estava tentando localizar um funcionário aposentado em Manaus que pudesse ter uma cópia [19]. Nenhum estudo econômico foi apresentado e o MPF emitiu então um pedido diretamente à sede do DNIT em Brasília [20]. O DNIT tem alegado a existência de tal estudo [21], mas até hoje nunca forneceu uma cópia do mesmo. Contudo, tal como é necessário um EIA para o projeto de reconstrução, um EVTEA também é necessário para o projeto de reconstrução, independentemente da existência de um estudo económico para a rodovia original.
Estudos de viabilidade econômica para projetos de reconstrução são prática padrão, como evidenciado pelo estudo de viabilidade econômica para reconstrução da rodovia BR-163 (Santarém-Cuiabá) [22], estrada que também foi listada como essencial para a “segurança nacional” pelo a lei de 1973 e que, assim como o atual projeto da BR-319, também visava à reconstrução de uma rodovia existente. A diferença entre a BR-163 e a BR-319 é que, apesar de seus grandes impactos [23], a BR-163 tem justificativa econômica para transportar soja de Mato Grosso para portos com acesso ao rio Amazonas, enquanto a BR-319 não tem nenhuma justificativa deste tipo e tem sido mostrado a ser completamente inviável economicamente [24]. Transportar cargas para São Paulo a partir de fábricas na zona franca de Manaus pela BR-319 seria 19% mais caro do que pelo atual sistema predominante de barcaças para Belém seguido de transporte rodoviário e, se um porto adequado fosse construído, por exemplo em Itacoatiara, para permitir que esse frete fosse transportado por cabotagem em navios oceânicos, seria 37% mais barato que o sistema atual [25].
A verdadeira razão de serpara oprojeto de reconstrução da BR-319 visa que os políticos de Manaus ganhem votos [26, 27]. Esses políticos têm afirmado que a rodovia não tem impactos ambientais [28], e até que a BR-319 será um “modelo de sustentabilidade para o mundo” [29]. Estas afirmações são manifestamente falsas. O traçado da rodovia é atualmente cenário de desmatamento desenfreado [30-32] e é essencialmente uma área sem lei [33, 34]. É um mito perigoso que a área à beira da estrada e a vasta área adicional que a BR-319 e suas estradas vicinais planejadas abririam para a entrada de desmatadores serão transformadas pela governança para evitar impactos em uma escala de tempo relevante para a manutenção da floresta. Um exemplo é fornecido pela rodovia BR-163 onde, apesar dos melhores esforços do Plano BR-163 Sustentável [35], a área se tornou um dos principais focos de grilagem de terras, garimpagem, exploração madeireira ilegal e desmatamento [36, 37]. A BR-163 foi, inclusive, a origem do “dia do fogo” de 2019, quando fazendeiros de toda a Amazônia atearam fogo no mesmo dia para mostrar apoio às políticas antiambientais do então presidente Jair Bolsonaro [38].
A falta de argumento económico levou a inventar uma série de outras justificações para o projeto, como fornecer transporte para escolas e hospitais à população que invadiu as margens da atual estrada nos últimos anos, e como obrigação dar a esta população a “direito de ir e vir”. Contudo, se o propósito da estrada fosse fornecer saúde e educação à população do interior amazônico, os fundos certamente não seriam gastos em uma rodovia cara para fornecer esses serviços à relativamente pequena população à beira da estrada, mas em vez disso seriam gastos para construir escolas e postos de saúde espalhados por toda a região amazônica. Quanto ao “direito de ir e vir”, todos os brasileiros têm esse direito, mas isso não significa que as pessoas tenham o direito de que o governo construa uma estrada até a sua porta.
A imagem que abre este artigo é de autoria de Alberto César Araújo/ Amazônia Real e mostra o início de uma das tentativas do Exército Brasileiro de asfaltamento do trecho do meio da BR-319 feita em 2007.
Notas
[1] Feitoza, C. & C. Seabra. 2024. Ministério cancela ato sobre 60 anos do golpe militar após decisão de Lula. Folha de São Paulo, 12 de março de 2024.
[2] Holanda, M. & R. Machado. 2024. Lula já tinha discurso conciliador com militares há 20 anos e agora justifica com 8 de janeiro. Folha de São Paulo, 30 de março de 2024.
[3] Fearnside, P.M. 2022. Por que a rodovia BR-319 é tão prejudicial. Amazônia Real
[4] Ferrante, L., M.B.T. de Andrade, L. Leite, C.A. Silva Junior, M. Lima, M.G. Coelho Junior, E.C. da Silva Neto, D. Campolina, K. Carolino, L.M. Diele-Viegas, E.J.A.L. Pereira & P.M. Fearnside. 2021. BR-319: O caminho para o colapso da Amazônia e a violação dos direitos Indígenas. Amazônia Real.
[5] Santos, J.L., A.M. Yanai, P.M.L.A. Graça, F.W.S. Correia & P.M. Fearnside. 2023. Amazon deforestation: Simulated impact of Brazil’s proposed BR-319 highway project. Environmental Monitoring and Assessment 195(10): art. 1217.
[6] Brasil, PR (Presidência da República). 2008. Lei nº 11.653 de 07 de abril de 2008.
[7] Senado Federal. 2009. Requerimento da Comissão de Meio Ambiente n° 46, de 2009.
[8] TCU (Tribunal de Contas da União). 2010. Grupo I – Classe II – Plenário. TC 015.334/2009-5. Ata n° 5/2010 – Plenário. 11. Data da Sessão: 24/2/2010.
[9] Brasil, PR (Presidência da República). 1973. Lei No 5.917, de 10 de setembro de 1973.
[10] DNIT (Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes). 2020. BR-319/AM: EIA – Estudo de Impacto Ambiental Segmento do km 250,00 ao km 655,70. DNIT, Brasília, DF. 2.795 p.
[11] DNIT (Departamento Nacional de Infra-Estrutura de Transportes). 2008. Reconhece e declara como de relevante interesse social, inadiáveis, as obras de infra-estrutura de transportes, sob jurisdição do ministério dos Transportes e, sob gerenciamento e administração do DNIT, constantes do Programa de Aceleração do Crescimento – PAC, dispensando-as dos estudos de viabilidade técnica e econômica. Portaria DNIT nº 1.562 de 26/12/2008. DNIT, Brasília, DF.
[12] Brasil, PR (Presidência da República). 2021. Lei Nº 14.273 de 23 de dezembro de 2021.
[13] Fernandes, S.S., G.W. Fernandes & P.M. Fearnside. 2023. Soberania e a destruição da Amazônia. Amazônia Real, Série Completa.
[14] Fearnside, P.M. 2020. Oil and gas project threatens Brazil’s last great block of Amazon forest (commentary). Mongabay, 09 de março de 2020.
[15] Fearnside, P.M. 2022. O interesse financeiro de Putin nas rodovias da Amazônia brasileira. Amazônia Real, 03 de maio de 2022.
[16] Brazil, MD (Minisério da Defesa). 2022. Política Nacional de Defesa – Estratégia Nacional de Defesa. MD, Brasília, DF. 79 p.
[17] Villas Bôas, E.D.C. 2012. Segurança nacional na Amazônia. In: Val, A.L., dos Santos, G.M. (eds.) GEEA: Grupo de Estudos Estratégicos Amazônicos. Tomo V, Editora do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (INPA): Manaus, Amazonas. Brazil. p. 152-174.
[18] Fearnside, P.M. 2012. Segurança nacional na Amazônia. p. 177 & 191. In: A.L. Val & G.M. dos Santos (eds.) GEEA: Grupo de Estudos Estratégicos Amazônicos. Tomo V, Editora do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (INPA), Manaus, Amazonas. 191 p.
[19] MPF-AM (Ministério Pública Federal no Amazonas). 2020. 22a Reunião Ordinária do Fórum Permanente de Discussão sobre o Processo de Reabertura da Rodovia BR-319. Gravação da reunião de 10/03/20.
[20] MPF-AM (Ministério Pública Federal no Amazonas). 2020. Ministério Público Federal, Procuradoria da República no Amazonas, 9º Ofício. Ofício nº 160/2020/9OFÍCIO/PR/AM. PR-AM-00045400/2020. Referência: PA 1.13.000.000307/2014-19. 05 de agosto de 2020.
[21] DNIT (Departamento Nacional de Infra-Estrutura de Transportes). 2019. Assunto: BR-319/AM- Ofício n° 111/2019/5° OFICIO/PRIAM. Referência: Autos no 1.13.000.001678/2009-42. DNIT, Brasília, DF. 06 de maio de 2019.
[22] DNIT (Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes). 2005. Estudos de Viabilidade Técnico-Econômica Concernentes à Construção da BR-163/MT/PA Trecho: Guarantã do Norte/MT – Santarém/PA. DNIT, Brasília, DF. 4 vols.
[23] Fearnside, P.M. 2022. BR-163: A rodovia Santarém-Cuiabá e o custo ambiental de asfaltar um corredor de soja na Amazônia. p. 239-257. In: Fearnside, P.M. (ed.) Destruição e Conservação da Floresta Amazônica. Editora do INPA, Manaus. 356 p.
[24] Fleck, L. 2009. Eficiência Econômica, Riscos e Custos Ambientais da Reconstrução da BR 319. Conservation Strategy Fund, Lagoa Santa, MG. 87 p.
[25] Teixeira, K.M. 2007. Investigação de Opções de Transporte de Carga Geral em Conteineres nas Conexões com a Região Amazônica. Tese de doutorado em engenharia de transportes. 235 p. Universidade de São Paulo, Escola de Engenharia de São Carlos, São Carlos, São Paulo.
[26] Fearnside, P.M. 2018. Challenges for sustainable development in Brazilian Amazonia. Sustainable Development 26(2): 141-149.
[27] Fearnside, P.M., M.B.T. de Andrade & L. Ferrante. 2021. BR-319: Prefeito de Manahttps://amazoniareal.com.br/br-319-prefeito-de-manaus-aproveita-crise-de-oxigenio-para-promover-agenda-anti-ambiental/us aproveita crise de oxigênio para promover agenda anti-ambiental. Amazônia Real, 18 de janeiro de 2021.
[28] Diário do Amazonas. 2015. Parlamentares dizem que não há impacto ambiental na BR-319. Diário do Amazonas 29 de outubro de 2015, p. 4.
[29] Amazonas em Tempo. 2020. BR-319 será exemplo sustentável para o mundo, dizem deputados. Amazonas em Tempo, 22 de setembro de 2020.
[30] Lima, M., D.C. Santana, I.C. Maciel Junior, P.M.C. da Costa, P.P.G. de Oliveira, R.P. de Azevedo, R.S. Silva, U.F. Marinho, V. da Silva, J.A.A. de Souza, F.S. Rossi, R.C. Delgado, L.P.R. Teodoro, P.E. Teodoro & C.A. da Silva Junior. 2022. The “New Transamazonian Highway”: BR-319 and its current environmental degradation. Sustainability 14: art. 823.
[31] Soares-Filho, B., J.L. Davis & R. Rajão. 2020. Pavimentação da BR-319, a Rodovia do Desmatamento. Nota técnica 11/2020-01 – Centro de Sensoriamento Remoto e Laboratório de Gestão de Serviços Ambientais, Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Belo Horizonte, MG.
[32] Mataveli, G.A.V., M.E.D. Chaves, N.A. Brunsell & L.E.O.C. Aragão. 2021. The emergence of a new deforestation hotspot in Amazonia. Perspectives in Ecology and Conservation 19(1): 33-36.
[33] Andrade, M.B.T., L. Ferrante & P.M Fearnside. 2021. A rodovia BR-319, do Brasil, demonstra uma falta crucial de governança ambiental na Amazônia. Amazônia Real, 02 de março de 2021.
[34] Ferrante, L., M.B.T Andrade & P.M. Fearnside. 2021. Grilagem na rodovia BR-319. Amazônia Real
[35] IBAMA (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis). 2007. Plano de Desenvolvimento Regional Sustentável para a Área de Influência da Rodovia BR-163 Cuiabá-Santarém. IBAMA, Brasília, DF. 145 pp.
[36] Fearnside, P.M. 2024. BR-319: O perigo chega a um momento crítico. Amazônia Real, 15 de fevereiro de 2024.
[37] Wenzel, F. 2022. Os Engenheiros da grilagem.
[38] Greenpeace-Brasil. 2020. Dia do fogo completa um ano, com legado de impunidade. Greenpeace-Brasil, 10 de agosto de 2020.
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