Por Philip M. Fearnside, Paulo Maurício Lima de Alencastro Graça, Aurora Yanai, Rosimeire Araújo Silva, Beatriz Figueiredo Cabral, Flora Magdaline Benitez Romero e Leonardo G. Ziccardi
O discurso político tem levado a maior parte da população de Manaus a acreditar que a BR-319 é essencial para a economia da cidade que, direta ou indiretamente, é, em grande parte, baseada em fábricas que montam produtos na Zona Franca de Manaus (SUFRAMA) usando componentes importados. Esses produtos são enviados principalmente para mercados no sudeste do Brasil, especialmente São Paulo. No entanto, a BR-319 não é necessária para o polo industrial de Manaus porque o transporte para São Paulo é 19% mais barato pelo sistema atual de barcaças e transporte rodoviário na rodovia Belém-Brasília do que seria pela BR-319, e seria 37% mais barato se um porto adequado, por exemplo em Itacoatiara, fosse construído para movimentar essa carga por cabotagem em navios oceânicos [1]; ver [2].
Em 2009, o primeiro Estudo de Impacto Ambiental (EIA) da BR-319 relatou que “os representantes das indústrias de Manaus têm indicado que, no momento, a rodovia teria baixa importância para o Pólo Industrial de Manaus” ([3], p. 216). Esse momento de honestidade já passou, pois os mesmos representantes das indústrias diriam hoje que a rodovia é essencial, uma mudança de posicionamento público que pode ser explicada pelo fato de que as indústrias em Manaus precisam de apoio político, e este se perderia se o dogma político em Manaus fosse contrariado.
A BR-319 se destaca como um grande projeto de infraestrutura sem justificativa econômica [4]. A hidrelétrica de Balbina fornece um exemplo do passado [5]. A BR-319 é inviável em termos financeiros simples, com base em custos e retornos monetários, e é ainda mais inviável se o valor de seus danos ambientais for considerado [6]. A BR-319 é o único grande projeto de infraestrutura que não possui o estudo oficial de viabilidade econômica (EVTEA), exigido para todos os projetos desse tipo. Há um extenso histórico de desculpas apresentadas pelo DNIT ao longo do período de 2008 a 2020 para a ausência desse estudo [7].
O argumento mais recente para o projeto não precisar de uma justificativa econômica veio com a divulgação do atual EIA [8], quando um capítulo final foi anexado (após o período de consulta pública) alegando que a BR-319 estaria isenta dessa exigência com base em um decreto de 1973 do ditador militar brasileiro na época (Emílio Garrastazu Médici) que declarou esta rodovia como importante para a “segurança nacional” [9]. Deve-se notar que a justificativa de “segurança nacional” para a BR-319 tem sido usada há algum tempo [10] e que foi contraditada em 2012, quando o comandante militar da Amazônia deu uma palestra de duas horas no INPA sobre “segurança nacional na Amazônia” sem mencionar a BR-319 e, quando questionado, declarou explicitamente que a rodovia não é uma prioridade para a segurança nacional (ver [11]). A Estratégia Nacional de Defesa, do Ministério da Defesa, não menciona a BR-319 [12]. Vale ressaltar que a rodovia BR-163 também foi apontada como importante para a “segurança nacional” no decreto de Médici, mas o projeto de reconstrução dessa rodovia conta com o EVTEA necessário. A verdadeira razão para a ausência de um EVTEA para a BR-319 é a óbvia: o projeto não é economicamente viável [13].
O argumento de que a BR-319 é necessária para garantir o fornecimento de oxigênio e outros suprimentos médicos para Manaus também é enganador, conforme exaustivamente documentado por Ferrante et al. [14]. Esse argumento foi usado nas decisões do desembargador Flávio Jardim mencionadas anteriormente, e também para justificar uma suspensão de segurança que anulou uma ordem judicial para que as audiências públicas da BR-319 pudessem ser realizadas durante a epidemia de COVID-19, avançando assim o processo de licenciamento para o seu estado atual. As suspensões de segurança, um vestígio da ditadura militar brasileira (por exemplo, [15]), representam uma das muitas maneiras pelas quais a história da ditadura assombra o projeto da BR-319 [16].
Outro argumento a favor do projeto de reconstrução da BR-319 é que os ocupantes que invadiram as terras do governo ao longo da rodovia precisam ter acesso a serviços de saúde e educação. No entanto, se a prioridade fosse fornecer saúde e educação à população do interior da Amazônia, os altos valores necessários para construir e, posteriormente, manter a BR-319 seriam completamente injustificáveis para fornecer esses serviços à população relativamente pequena ao longo da rodovia e, em vez disso, os recursos financeiros seriam usados para construir escolas e postos de saúde em todo o interior da Amazônia.
Outro argumento é que a ausência da BR-319 viola o “direito de ir e vir” das pessoas. Ao contrário de alguns países, como a China, todos no Brasil têm o direito de ir e vir, mas isso não significa que todos tenham o direito de ter o governo construindo uma estrada até a sua porta.
Um tema comum na promoção da rodovia é a alegação de que a governança controlará o impacto da BR-319. Infelizmente, este é um mito perigoso que serve ao propósito de facilitar a aprovação de licenças ambientais, mas não corresponde à realidade [17, 18]. A BR-319 é basicamente uma terra sem lei [19], e a alegação de que a reconstrução e pavimentação da rodovia permitirá melhor acesso para as autoridades policiais e, portanto, reduzirá os crimes ambientais é desmentida pelo histórico da rodovia desde o início de um programa de “manutenção” em 2015 – em vez de diminuir, as violações aumentaram constantemente à medida que as condições da rodovia melhoravam.
Como exemplo de como a BR-319 supostamente não resultaria em desmatamento em um cenário com governança, o primeiro EIA utilizou o exemplo do Parque Nacional de Yellowstone, nos EUA, onde milhões de turistas dirigem pelas estradas sem cortar uma única árvore ([3]; ver [20]). O atual ministro dos Transportes chegou a afirmar que a BR-319 será “a rodovia mais sustentável e mais verde do planeta” [21]. Mais recentemente, em 13 de setembro de 2025, políticos de Manaus realizaram um comício na Vila Realidade onde afirmaram que “A BR-319 está hoje preservada. Nós vimos” [22, 23]. A polícia rodoviária federal declarou formalmente que não tem capacidade para controlar a própria rodovia federal [24], e é claro que controlar as estradas estaduais planejadas seria ainda mais problemático.
O melhor exemplo do perigo de “cenários de governança” irrealistas é o projeto de reconstrução da rodovia BR-163 (Santarém-Cuiabá), aprovado em 2005 com base no projeto “BR-163 Sustentável”. Em vez de se tornar o “ corredor do desenvolvimento sustentável” previsto pela então Ministra do Meio Ambiente Marina Silva, a rodovia se tornou um grande foco de desmatamento ilegal, grilagem de terras, garimpo e invasão de territórios indígenas e unidades de conservação, e foi a partir daí que o “dia do fogo” de 2019 foi organizado quando fazendeiros em toda a Amazônia brasileira atearam fogo no mesmo dia para mostrar apoio às políticas antiambientais do então presidente Bolsonaro [18, 25]. A BR-363 é apresentada pelo Grupo de Trabalho BR-319 do DNIT como modelo de governança para a BR-319 ([26]; ver [27]).
Após 40 anos de exposição a constante desinformação, quase toda a população de Manaus acredita que a BR-319 é essencial para o seu bem-estar e que quase não terá impactos negativos. Isso coloca os políticos de Manaus em uma armadilha que eles mesmos construíram, pois qualquer político com a coragem de questionar a sensatez da BR-319 não seria reeleito. Na verdade, a razão para o projeto da rodovia não é a economia ou qualquer outra justificativa que tenha sido inventada para justificá-lo, mas sim como uma forma de os políticos ganharem votos em Manaus [28, 29].
Notas
[1] Teixeira, K.M. 2007. Investigação de Opções de Transporte de Carga Geral em Conteineres nas Conexões com a Região Amazônica. Tese de doutorado em engenharia de transportes. 235 p. Universidade de São Paulo, Escola de Engenharia de São Carlos, São Carlos, São Paulo.
[2] Fearnside, P.M. & P.M.L.A. Graça. 2009. Transporte Hidroviário por Cabotagem como Alternativa à Rodovia Manaus-Porto Velho (BR-319). pp. 437-441 In: José Alberto da Costa Machado (ed.) Anais da IV Jornada de Seminários Internacionais sobre Desenvolvimento Amazônico, Volume 3. Superintendência da Zona Franca de Manaus (SUFRAMA), Manaus, Amazonas. 629 pp.
[3] DNIT (Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes). 2009. Estudo de impacto ambiental da reconstrução da BR-319.
[4] Fearnside, P.M. 2024. Impactos da rodovia BR-319 – 1: Inviabilidade econômica. Amazônia Real, 23 de abril de 2024.
[5] Fearnside, P.M. 2015. A Hidrelétrica de Balbina: O faraonismo irreversível versus o meio ambiente na Amazônia. pp. 97-125. In: P.M. Fearnside (ed.) Hidrelétricas na Amazônia: Impactos Ambientais e Sociais na Tomada de Decisões sobre Grandes Obras. Vol. 1. Editora do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (INPA), Manaus, Amazonas, Brasil. 296 pp.
[6] Fleck, L.C. 2009. Eficiência Econômica, Riscos e Custos Ambientais da Reconstrução da BR 319. Conservation Strategy Fund, Lagoa Santa, MG. 87 p.
[7] Fearnside, P.M. 2024. A BR-319 e o fantasma da ditadura. Amazônia Real, série completa.
[8] DNIT (Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes). 2020. BR-319/AM: EIA – Estudo de Impacto Ambiental Segmento do km 250,00 ao km 655,70. DNIT, Brasília, DF. 2795 p.
[9] Brasil, PR (Presidência da República). 1973. Lei No 5.917, de 10 de setembro de 1973.
[10] Fearnside, P.M. 2024. A BR-319 e o fantasma da ditadura -1: “Segurança nacional”. Amazônia Real, 08 de abril de 2024.
[11] Fearnside, P.M. 2012. Segurança nacional na Amazônia [comentários sobre palestra do Gen. Villas Bôas]. pp. 177 & 191. In: A.L. Val & G.M. dos Santos (eds.) GEEA: Grupo de Estudos Estratégicos Amazônicos. Tomo V, Editora do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (INPA), Manaus, Amazonas. 191 pp.
[12] Brasil, MD (Ministério da Defesa). 2022. Política Nacional de Defesa – Estratégia Nacional de Defesa. MD, Brasília, DF. 79 pp.
[13] Fearnside, P.M. 2024. Impactos da rodovia BR-319 – 1: Inviabilidade econômica. Amazônia Real, 23 de abril de 2024.
[14] Ferrante, L. & P.M. Fearnside. 2023. Vidas sacrificadas na crise de oxigênio de Manaus para promover a BR-319. Amazônia Real, Série completa.
[15] Brasil, PR (Presidência da República). 1964. Lei nº4.348, de 26 de junho de 1964. Estabelece normas processuais relativas a mandado de segurança. PR, Brasília, DF. https://arisp.files.wordpress.com/2008/12/boletim-ago-fev-1964-65_lei-n-4-348.pdf
[16] Fearnside, P.M. 2024. A BR-319 e o fantasma da ditadura. Amazônia Real, série completa.
[17] Fearnside, P.M. 2024. Impactos da rodovia BR-319 – 9: O discurso de governança. Amazônia Real, 26 de junho de 2024.
[18] Fearnside, P.M. 2025. Uma utopia amazônica com ressalvas. pp. 103-119. In: M. Colón (ed.) Utopias Amazônicas. Ateliê Editorial, Cotia, SP. 335 pp.
[19] Andrade, M.B.T., L. Ferrante & P.M Fearnside. 2021. A rodovia BR-319, do Brasil, demonstra uma falta crucial de governança ambiental na Amazônia. Amazônia Real, 02 de março de 2021.
[20] Fearnside, P.M. & P.M.L.A. Graça. 2009. BR-319: A rodovia Manaus-Porto Velho e o impacto potencial de conectar o arco de desmatamento à Amazônia central. Novos Cadernos NAEA 12(1): 19-50.
[21] ClimaInfo. 2023. Recursos do Fundo Amazônia podem parar na BR-319, que corta a floresta. ClimaInfo, 18 de agosto de 2023.
[22] ClimaInfo. 2025. Senador prefere ignorar grilagem na BR-319 e acusar imprensa de “fake news”. ClimaInfo, 02 de outubro de 2025.
[23] Sassine, V. & L. de Almeida. 2025. Trecho do meio da BR-319 tem intensa venda de terras antes do asfalto, e grilagem devasta floresta. Folha de São Paulo, 28 de setembro de 2025.
[24] Mandel, A. 2025. REQ 81/2025 CMADS Requerimento para realização ou participação em Seminário, Visita Técnica ou outro Evento. Câmara dos Deputados, Brasília, DF.
[25] Fearnside, P.M. 2025. Desmatamento e queimadas: A degradação da floresta. pp. 40-41; 84-86. In: Atlas da Amazônia Brasileira. J. Dolce, M. Montenegro & R. Shoenenberg (Eds.). Fundação Heinrich Böll, Rio de Janeiro, RJ. 96 pp.
[26] DNIT (Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes). 2024. Relatório do Grupo de Trabalho da BR-319. DNIT, Brasília, DF. 67 p.
[27] Fearnside, P.M. 2024. O relatório do GT BR-319 de DNIT: A mais recente manobra para obter aprovação para um desastre Ambiental. Amazônia Real, 13 de junho de 2024.
[28] Fearnside, P.M. 2022. Por que a rodovia BR-319 é tão prejudicial. Amazônia Real, série completa.
[29] Litaiff, P. 2025. BR-319: 40 anos de oportunismo eleitoral e a realidade que eles não contam. Revista Cenarium, 30 de setembro de 2025.
Sobre os autores
Philip Martin Fearnside é doutor pelo Departamento de Ecologia e Biologia Evolucionária da Universidade de Michigan (EUA) e pesquisador titular do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa), em Manaus (AM), onde vive desde 1978. É membro da Academia Brasileira de Ciências e pesquisador 1A de CNPq. Recebeu o Prêmio Nobel da Paz pelo Painel Intergovernamental para Mudanças Climáticas (IPCC), em 2007. Tem mais de 800 publicações científicas e mais de 750 textos de divulgação de sua autoria que estão disponíveis aqui.
Paulo Maurício Lima de Alencastro Graça é doutor pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe). Ele tem mestrado em ciências florestais pela Universidade de São Paulo, (USP-Esalq) e graduação em Engenharia Florestal pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ). Ele é pesquisador titular do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa), em Manaus (AM), atuando junto ao laboratório de agroecossistemas. Ele tem publicado artigos sobre mapeamento de exploração madeireira utilizando técnicas de sensoriamento remoto, modelagem espacial do uso da terra, impacto do desmatamento, e eficiência de queima de biomassa florestal, entre outros.
Aurora Miho Yanai é engenheira florestal pela Universidade Federal do Amazonas (UFAM) e tem mestrado e doutorado pelo Inpa em ciências de florestas tropicais. Atualmente é pesquisadora no Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa), onde ela continua suas pesquisas iniciadas como pós-doutoranda no mesmo instituto trabalhando com modelagem de desmatamento na região Trans-Purus. Ela tem experiência na análise e modelagem de desmatamento no sul do Amazonas.
Rosimeire Araújo Silva é graduada em física pela Universidade Federal do Amazonas e em análise e desenvolvimento de sistemas pela Unifavip Wyden. Tem mestrado e doutorado em clima e ambiente pelo Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia-Inpa. Atualmente é bolsista pós-doutorado no laboratório do Dr. Philip Fearnside, no Inpa. Pesquisa a influência da interação oceano-atmosfera no clima amazônico, especialmente os efeitos e diferentes tipos de El Niño.
Beatriz Figueiredo Cabral possui graduação em Engenharia Florestal pela Universidade Federal de Lavras e mestrado em Ciências de Florestas Tropicais (CFT) pelo Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (INPA). Atualmente é doutoranda em CFT no INPA, onde desenvolva uma tese sobre “Projeções para a Expansão da Fronteira Amazônica: Simulação do Desmatamento e da Degradação Florestal sob Futuros Cenários Climáticos”. Ela tem experiência em análise e manipulação de dados de sensoriamento remoto, sistemas de informação geográfica, programação nas linguagens R e Python e simulação do desmatamento no software Dinamica-EGO para análises espaço-temporais na Amazônia.
Flora Magdaline Benitez Romero possui graduação em Engenharia Agroflorestal pela Universidad Amazónica de Pando, Bolívia (UAP) e em Engenharia Florestal pela Universidade Federal de Viçosa (UFV), mestrado em Desenvolvimento Regional pela Universidade Federal do Acre (UFAC), e doutorado em Ciência Florestal pela UFV. Atualmente é pós-doutoranda no Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (INPA). Desenvolve pesquisas em modelagem estatística aplicada à estimativa de biomassa e carbono em florestas amazônicas.
Leonardo Guimarães Ziccardi possui graduação em Engenharia Florestal pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) e mestrado, Ciências de Florestas Tropicais pelo Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (INPA). Atualmente é doutorando no Departamento de Ciências Florestais da Universidade Estadual de Michigan, EUA. Desenvolva pesquisas sobre ecofisiologia de árvores amazônicas e a dinâmica do carbono relacionada aos impactos antropogênicos em florestas tropicais.
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