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ToggleFoi de uma conversa entre jovens universitários, realizada em Visconde Mauá, o paraíso das cachoeiras contíguas ao Parque Nacional de Itatiaia (RJ), que começou a nascer, há quase 40 anos, a mais importante organização produtora de tecnologias sociais em saúde na Amazônia – o Projeto Saúde e Alegria, PSA.
O então recém formado médico infectologista Eugênio Scanavinno e a arte-educadora Marcia Gama decidiram se dedicar à saúde da população tradicional amazônida e partiram, em setembro de 1984, para Oriximiná (PA), onde até hoje a Universidade Federal Fluminense (UFF, sediada em Niterói, Rio de Janeiro) mantém um campus avançado para projetos de extensão universitária.
“Eu me formei pela UFRJ, fiz residência na UFF e queria trabalhar em um lugar em que eu fosse útil. Direcionei a minha formação médica. Viajei o Brasil inteiro durante a faculdade procurando um lugar. Fui para o Nordeste e o Centro-Oeste. No Mato Grosso encontrei os índios Xavantes. Mas, quando cheguei à Amazônia, eu disse: “Vai ser aqui mesmo”, lembra Eugênio, um paulista de 65 anos com raízes também no Rio, de onde falou comigo.
“Oriximiná, no Pará, me espantou pela grandiosidade da natureza, a generosidade, sabedoria e alegria das pessoas, que, no entanto, morriam de diarréia, por falta de água tratada. Coisas muito básicas e simples. Naquela época não existia nem consultório em infectologia. O cara abria consultório ou ia dar aula. Eu fui para lá trabalhar no hospital da unidade avançada da UFF. Mas, ainda assim eu estava dentro do hospital e eu queria trabalhar com saúde”, recorda.
Marcia Gama foi àquela época companheira de Eugênio, na vida e no PSA. “Eu tinha 19 anos e era cantora no Rio de Janeiro, onde eu nasci e fazia Belas Artes. Nós nos encontramos e em três meses pegamos um avião da Força Aérea. Fui acompanhar o Eugênio. Fomos a Oriximiná e depois em Santarém, onde o prefeito pediu que fizéssemos um trabalho com arte e educação. Larguei minha faculdade, meu trabalho e me embrenhei de barco com o Eugênio pelo interior da cidade da minha avó, que também nasceu em Santarém. Fiquei fascinada. O lugar e o povo são uma loucura de lindos. Usei as ferramentas que eu tinha, de arte e de canto, para trabalhar questões importantes da vida: como fazer soro caseiro, evitar a desnutrição. Usamos a arte como ferramenta porque aquela população não era letrada”, lembra Marcia, que em setembro lança um livro contando essa trajetória e outras histórias.
Há 36 anos passando seis meses. E mais seis
Amigos e familiares foram se juntando àquela empreitada, que já se chamava Projeto Saúde e Alegria. Quem chegou dois anos depois foi Caetano, fotógrafo paulista e irmão de Eugênio.
“Na época da fundação do Saúde e Alegria eu trabalhava com vídeo em São Paulo. Participei de uma campanha eleitoral vitoriosa, cujo resultado não me agradou, e resolvi ir para a Amazônia, para fazer um período sabático e ajudar a montar o setor de comunicação do PSA em no máximo seis meses. Estou lá há 36 meses e acho que vou passar mais seis meses”, brinca Caetano Scanavinno, irmão de Eugênio, que ainda hoje trabalha no PSA.
O Saúde e Alegria, que continua sediado em Santarém, atende cerca de 30 mil moradores de comunidades rurais do seu município, além de Belterra, Aveiro e Juruti, localizados no oeste paraense. O Projeto foi tomado como exemplo pelo Ministério da Saúde, que criou 110 unidades de atendimento integral, semelhantes àquelas utilizadas pelo PSA, em toda a região amazônica. “Ong serve para criar tecnologia social, e não para substituir o estado”, reflete Eugênio.
Apesar de a organização ter apenas a palavra “Saúde” no nome, a sua dimensão ambiental é inseparável da proposta sanitária original, por desenvolver as suas atividades bem no meio da floresta. O meio de transporte até populações que vivem isoladas são os barcos do PSA, verdadeiros ambulatórios navegantes, que atravessam os rios, as “estradas” da Amazônia.
“Saúde e meio ambiente são indissociáveis”, ensina Eugênio, que lembra de como essa aparente contradição entre as duas áreas dificultava o levantamento de recursos para o funcionamento do então nascente Centro de Estudos Avançados de Promoção Social e Ambiental, a instituição sem fins lucrativos que representa juridicamente o Projeto Saúde & Alegria.
“Agora as pessoas percebem essa óbvia relação entre saúde e ambiente. Mas, lá no início o pessoal da área de saúde dizia que éramos da área ambiental e não nos dava dinheiro. E o pessoal da área ambiental dizia que éramos da área de saúde e não nos dava também”.
Aquela proposta até hoje marca o trabalho do PSA, que desenvolve com as populações da Amazônia projetos que integram ao mesmo tempo saúde e saneamento básico; ordenamento territorial, fundiário e ambiental; organização social, cidadania e direitos humanos; produção agroextrativista e geração de renda; energias renováveis; economia da floresta, ecoturismo e artesanato; e educação, cultura, comunicação e inclusão digital.
“Anemia, dor de barriga, doença de pele e gripe”
A confusão inicial derivava da nova concepção de saúde integral que emergia, na década de 1980, do Movimento de Reforma Sanitária Brasileira, da criação do Sistema Único de Saúde (SUS) e da Constituinte, já no final da ditadura militar de 1964.
“As comunidades nunca tinham visto um médico. Eu atendia 150 pacientes em um fim de semana. Era anemia, anemia, anemia; dor de barriga, dor de barriga, dor de barriga; doença de pele, doença de pele, doença de pele; gripe, gripe, gripe. Coisas muito simples que não dependiam da presença de um médico. Dependiam apenas de higiene pessoal e de tratamento da água”.
A necessidade de convencer e informar populações inteiras que viviam isoladas foi a oportunidade para a arte-educadora Marcia Gama e as comunidades desenvolverem o combo de atividades lúdicas e mobilizadoras que gerou a criação do Gran Circo Mocorongo (que existe até hoje).
Aliás, é bom explicar.
Mocorongo é uma palavra comumente usada como sinônimo de pessoa que vive no meio rural. O termo também pode ser empregado como xingamento. Mas, efetivamente, é o gentílico, ou seja, como são chamados os indivíduos naturais ou que vivem na região do Rio Tapajós, e as pessoas que nasceram em Santarém.
“Começamos pela educação, fazendo o que chamávamos de 10 mandamentos da higiene: lavar a mão, cobrir os alimentos, usar chinelo, usar sanitário, tratar a água. Como não dava para eu explicar um a um, começamos a treinar as próprias pessoas das comunidades, em especial os jovens. Naquela época não tínhamos a ideia dos agentes de saúde, mas começamos a fazer isso”, diz Eugênio, que completa:
“Fazíamos brincadeiras, gincanas de saúde, caldos verdes e outras comidas nutritivas. A partir disso, começou-se a criar um movimento de saúde, com o uso do cloro na água. Eles formaram os grupos de Patrulheiros da Saúde. Mas, eu era funcionário da prefeitura e não conseguia fazer um trabalho continuado com as mesmas comunidades, enquanto eles queriam um trabalho assistencial de distribuir remédios etc. A partir daí, o Projeto, que já chamava Saúde e Alegria, foi cortado”.
De volta ao Rio, Eugênio procurou a Fundação Oswaldo Cruz, na época presidida pelo médico Sergio Arouca, um dos principais membros do Movimento da Reforma Sanitária Brasileira. “Desenvolvemos o projeto técnico e colocamos toda a nossa experiência em recolher indicadores, um trabalho enorme. Meu pai, que era membro do Rotary e de uma ONG que ajudava meninos de rua, sugeriu que eu fizesse uma organização, uma entidade comunitária”.
A seguir, os principais trechos da entrevista em que Eugênio lembra da criação do PSA e projeta cenários, preocupantes, para a Amazônia e o planeta.
((o))eco: Há 40 anos não foi fácil registrar no cartório o nome Projeto Saúde e Alegria nem conseguir financiamento, não?
Eugênio Scanavinno: O cara do cartório perguntou: “Você pensa que isso aqui é brincadeira? Vou registrar isso não. Põe um nome que preste!”. Criamos então, em 1985, o Centro de Estudos Avançados e Promoção Social e Ambiental/Projeto Saúde e Alegria, para fazer um trabalho sério e livre das influências políticas. Com o projeto escrito, começamos a procurar financiamento, e o próprio Sergio Arouca tentou de todas as maneiras. Um dia, eu e um colega, saindo da Fiocruz chorosos, porque não conseguíamos financiar o projeto, pegamos carona em um Fusquinha e a motorista perguntou: “porque vocês estão com essa cara?”. “Temos um projeto lá na Amazônia e não conseguimos financiamento”. “Pois, eu sou do BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social) e o Finsocial (o Fundo de Assistência Social, administrado pelo BNDES para financiar ações várias áreas, inclusive saúde), para financiar o desenvolvimento social integrado.
Escrevemos o projeto e apresentamos ao Finsocial. Como havia acabado a ditadura, eles queriam uma referência de projeto social participativo, integrado. Em 1987, voltamos (à Amazônia), como organização social financiada pelo Finsocial, com apoio da Fiocruz e da Universidade Federal do Pará. Recomeçamos tudo de novo, voltamos a muitas comunidades, já no modelo integrado.
E novamente para atender a problemas de saúde ao mesmo tempo mortais e simples…
Mudamos o conceito que as populações tinham, de que saúde era sinônimo de remédio. Estudamos com eles os problemas deles – a diarréia, a contaminação da água. Aquelas comunidades que usavam o cloro na água, que fica com gosto de água sanitária até para lavar roupa, começou a cavar sanitário longe das casas que nem tinham esse equipamento. Alcançamos uma redução imediata da altíssima mortalidade infantil. Havia dia em que morriam até quatro crianças por desidratação e diarréia. Usávamos o soro caseiro, o tratamento da água e alimentação nutritiva, que hoje em dia é chamada de PANCS (Plantas Alimentícias Não Convencionais, plantas com potencial alimentício e desenvolvimento espontâneo).
A partir do momento que a população percebeu que, se tomasse medidas simples, a saúde melhorava, percebeu também que ela era protagonista e não dependente. Passaram a cavar sanitários, campanhas de amamentação, usar água e sabão – até hoje não se colocou na bolsa da saúde o sabão de coco, para lavar feridas. Coisas muito simples.
Como você tratava da grande quantidade de pessoas que necessitavam de atendimento?
No início atuamos com 16 comunidades, hoje são cerca de 50 comunidades, em quatro municípios. O Projeto não existe para atender em grande escala porque não nos cabe substituir o Estado, mas desenvolver tecnologia social com baixo custo e alto impacto e com isso qualificar políticas públicas para a Amazônia, de tal forma a serem replicadas em larga escala. A saúde foi um desencadeador da mobilização comunitária para o seu desenvolvimento integral porque é um desafio coletivo que depende da participação de cada indivíduo, território e governo.
O Saúde e Alegria é a construção multilateral do saber, um processo horizontal de aprendizado, em que as próprias comunidades vão disseminando esse conhecimento. Começamos a colocar os sistemas de água, que é algo muito forte até hoje porque a Amazônia sofre de stress hídrico. Haja vista a seca de agora, quando as comunidades não têm sequer um poço de onde trazer água limpa. Mais recentemente, começamos a desenvolver a economia da floresta, que é o que estrutura a qualidade de vida das pessoas.
Quando foi exatamente o momento em que você percebeu que saúde e meio ambiente são faces da mesma moeda?
Quando um médico vê um paciente com 1,5 grau de febre imagina que isso seja sinal de doenças profundas que se manifesta com uma febrícula. A Terra também está vivendo uma febrícula que é sinal de uma doença crônica e que se manifesta às vezes com sintomas agudos.
A Amazônia não é o pulmão do mundo, mas ela é o resfriador, é o anti-térmico das mudanças climáticas. A região não é um dos remédios para a saúde do planeta. E de quem depende a saúde da Amazônia? Dos povos tradicionais que estão lá. Eles são os guardiões da floresta, mas estão em condições bem fragilizadas em termos de saúde. Estão enfrentando as invasões de territórios e de doenças. A cada quatro pessoas perguntadas, três dizem que a saúde é a sua prioridade.
“Quando entra a comida industrializada, aumenta o lixo e diminui a saúde”
E qual a consequência disso para o planeta?
Eu fazia parte do Global Risks Groups, um grupo de cientistas que foi chamado em 2014 para uma sala de situação no Fórum Econômico Mundial, em Davos (Suíça), para onde foram chamados decisores de saúde do mundo inteiro, e aplicaram um caso para todos tentarem resolver. Sabe qual era o caso? Uma epidemia de coronavírus surgida na Amazônia, porque a região tinha dificuldade de comunicação, baixíssima presença do Estado, incapacidade de respostas rápidas, desflorestamento. Os resultados desse painel não foram publicados.
Nesse cenário, quais são as medidas necessárias a serem tomadas imediatamente?
Temos pela frente bactérias super-poderosas, novas viroses vindas de animais e das florestas para humanos. Precisamos de acesso universal da saúde para toda a população e mudança de modelo produtivo. Capacitação de equipes para identificação de doenças, conectividade, se possível para fazer telemedicina em larga escala e atender áreas remotas. Essas são coisas básicas. Notificação rápida, tratamento da água e de todas as doenças do campo da atenção básica em saúde. E, por fim, parar a loucura do desmatamento e fazer agricultura em agrofloresta para mimetizar a própria floresta. Produzir várias plantas numa mesma área para dar alimento e lucro, mas sem a monocultura que seleciona viroses, bactérias e fungos que possam se espalhar em larga escala.
E, em a Amazônia tendo essa função global de resfriar parte do planeta, grandes alterações lá impactam diretamente outras regiões do globo.
Vemos muito rapidamente a mudança do clima na Amazônia. Quando eu cheguei lá, tínhamos os ciclos regulados, o povo de lá vive dos ciclos da natureza. A época das chuvas começava em dezembro e a seca em junho ou julho. Aí em novembro ainda tinha bastante seca, mas já começava a chover. Hoje esse sistema está desregulado.
Quando isso se altera, altera-se completamente a capacidade de vida dessas populações e aí entram o apoio social e a comida industrializada, mais farinácea, porque farinha e óleo são baratos. Aumenta o lixo, diminui a saúde. As pessoas passam a comer menos proteína e mais carboidratos e diminui a imunidade. Derruba-se a floresta, diminui a imunidade, contamina a água. O garimpeiro invade áreas protegidas e leva todo tipo de doença. Assim você cria um cenário catastrófico para as comunidades sem saúde, principalmente as isoladas.
É a Amazônia que abastece de umidade o Sul e o Sudeste do Brasil. As chuvas vêm pelos Andes. Na hora que você desfloresta e seca o sistema, você vai ter ou a seca ou menos retenção de chuvas extremas.
As informações apresentadas neste post foram reproduzidas do Site O Eco e são de total responsabilidade do autor.
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