Manaus (AM) – Em meio a protestos dos povos indígenas, o julgamento do marco temporal foi retomado em sessão extraordinária nesta segunda-feira (15), no Supremo Tribunal Federal (STF). Sob formato virtual, o ministro Gilmar Mendes, relator do processo, proferiu seu voto contra a tese que limita a ocupação de povos indígenas em seus territórios ancestrais a 5 de outubro de 1988, data da promulgação da Constituição Federal. A expectativa é que todos os ministros votem até quinta-feira (18), quando o julgamento será encerrado.
Mesmo reconhecendo a inconstitucionalidade do marco temporal, o voto de Gilmar Mendes inclui várias ressalvas que podem atrasar a regularização das terras indígenas e gerar novos conflitos. O voto prevê, por exemplo, um prazo de até dez anos para a conclusão das demarcações, atrasando ainda mais processos que já são considerados demorados.
O ministro autoriza a permanência de não-indígenas na área demarcada até o pagamento de indenizações. Também permite que atividades econômicas sejam realizadas por pessoas não indígenas. O receio de lideranças é que, sob pressão e assédio, os indígenas aceitem arrendar seus territórios ou permitir que atividades predatórias sejam desenvolvidas nas suas áreas.
Estes pontos têm gerado preocupação nas organizações indígenas. Para advogados indígenas lideranças ouvidas pela Amazônia Real, o voto do ministro carrega armadilhas jurídicas que atendem a interesses do agronegócio, da mineração e de grupos políticos contrários às demarcações de terras indígenas.
A advogada Auzerina Macuxi, liderança do povo Macuxi e gerente da assessoria jurídica da Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab), alerta que a proposta relativiza direitos constitucionais ao impor condicionantes que não estão previstas na Constituição de 1988.
“Esse prazo para concluir as demarcações impõe um marco temporal. Se em 10 anos a demarcação não acontecer, a gente vai perceber várias violações e violências de direitos humanos e direitos indígenas no Brasil. Primeiro se fala em marco temporal, agora se fala de 10 anos? O que é tudo isso, considerando violações dentro das terras indígenas tradicionalmente ocupadas? É muito preocupante e alarmante para nós, povos indígenas, que mantemos as florestas de pé”, explicou Auzenira, que foi uma das advogadas a realizar sustentável oral no julgamento, na semana passada.
Um dos pontos mais criticados é o pagamento de indenizações de benfeitorias e terra nua de imóveis rurais, o que, segundo a advogada, pode aprofundar a insegurança jurídica, aumentar conflitos nos territórios e travar processos demarcatórios. “Terra nua” refere-se a imóveis sem investimento ou obras construídas.
“Permitir que os posseiros permaneçam na terra indígena tradicionalmente ocupada, até que se pague as indenizações da benfeitoria e da terra nua, que é o que invasores procuram, não só atrasa como inviabiliza, de fato, as demarcações das terras indígenas, porque a sua continuidade depende que essa fase seja ultrapassada”, disse Auzerina.
Para a advogada, a medida de indenização para invasores de terras indígenas transfere ao Estado a responsabilidade por indenizar essas ocupações ilegais, ao mesmo tempo em que atrasa a efetivação das demarcações e prolonga os conflitos nos territórios.
“Os conflitos dentro das terras nacionalmente ocupadas se instalam com ainda mais força. E isso reverbera desde assassinato, incêndio criminosos e expulsão de comunidades, de povos indígenas que tem seu pertencimento tradicional com aqueles territórios. E isso vai não só pela Amazônia Legal, mas também por todo o Brasil”, alertou.
O advogado do Conselho Indígena de Roraima (CIR), Junior Nicacio Farias, do povo Wapichana, reforçou que a Constituição Federal de 1988 estabeleceu o prazo de cinco anos para a conclusão das demarcações de terras indígenas, compromisso que nunca foi cumprido pelo Estado brasileiro. Segundo ele, a proposta de fixar um novo prazo de dez anos representa mais um adiamento de um direito já reconhecido.
“Em dez anos, muita coisa pode mudar no país. Basta lembrar que, há poucos anos, durante o governo Bolsonaro, houve uma postura abertamente contrária aos direitos dos povos indígenas, com declarações públicas de que não seria demarcado ‘nem um centímetro’ de terra indígena, e essa promessa foi cumprida”, explicou.
De acordo com o advogado, quanto mais o Estado demora para demarcar os territórios, maior é a vulnerabilidade dos povos indígenas. Em Roraima, Nicacio ressaltou que há comunidades que aguardam há mais de 50 anos pela demarcação, como é o caso da Terra Indígena Arapuá, um território dos povos Macuxi e Wapichana que é cercado pelo agronegócio. Outras foram removidas de seus locais tradicionais, como os povos da Terra Indígena Lago da Praia e da Terra Indígena Anzol, na região do rio Murupu, próximo a Boa Vista.
“Quanto mais se prolonga a permanência de posseiros em terras indígenas, maior é o risco de conflitos e violências. Além disso, pode ocorrer de o Estado não dispor de recursos suficientes para as indenizações ou de os posseiros questionarem judicialmente os valores fixados, o que pode arrastar os processos por muitos anos”, disse o advogado.
O lobby ruralista

Outro eixo de preocupação no voto do ministro Gilmar Mendes é a liberação de atividades econômicas em terras indígenas, vista pelas organizações indígenas como uma vitória dos lobistas do setor rural e da mineração, que vêm questionando, desde o fim de novembro, decretos e portarias que avançaram na demarcação e homologação de territórios. “O voto autoriza o exercício de atividades econômicas nas terras indígenas, inclusive agropecuárias, em parcerias com terceiros, desde que sejam lideradas pelos próprios indígenas, que gerem benefícios para toda a comunidade e não envolvam arrendamento que restrinja a posse”, diz a redação do voto do ministro.
Os ruralistas justificam que os atos do governo federal violariam a Lei 14.701/2023, que instituiu o marco temporal, mesmo diante da controvérsia jurídica sobre sua constitucionalidade. Há também uma pressão do setor minerário para que a atividade seja autorizada nas terras indígenas.
A reação da bancada ruralista se intensificou após a homologação das Terras Indígenas Kaxuyana-Tunayana (PA e AM) e Manoki, Uirapuru e Estação Parecis (MT), anunciadas durante a COP30, em Belém (PA). Além das homologações, o Ministério da Justiça também publicou dez novas portarias declaratórias de demarcação. Em resposta, a Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA) protocolou uma notícia-crime na Procuradoria-Geral da República (PGR) contra o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, o ministro da Justiça, Ricardo Lewandowski, e servidores envolvidos na edição dos decretos.
Além disso, a Confederação Nacional da Agricultura e Pecuária (CNA) tem pressionado para impedir revisões de limites territoriais, inclusive em casos de erros reconhecidos pelo próprio Estado. A entidade tenta aplicar de forma retroativa a Lei 14.701/2023 a demarcações feitas há décadas, incluindo terras já homologadas e áreas com portarias declaratórias.
Segundo a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), ao menos 66 terras indígenas ainda aguardam homologação no país, cenário que reforça o temor de que novos condicionantes impostos pelo STF sirvam para postergar demarcações e manter territórios sob disputa.
Embora a autorização de atividades econômicas em terras indígenas devam seguir parâmetros como o benefício coletivo, manutenção da posse direta pelos indígenas, aprovação pela comunidade e comunicação à Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) no prazo de 30 dias, Auzerina Macuxi afirmou que a abertura para exploração econômica em terras indígenas é uma ameaça à autodeterminação e aos modos de vida dos povos originários.
Entre as atividades possíveis está a exploração do turismo, desde que os benefícios alcancem toda a coletividade e que a posse da terra seja preservada. A advogada explicou que há um desequilíbrio estrutural nos contratos firmados entre empresas e povos indígenas, no qual as comunidades acabam ocupando a posição mais vulnerável.
Na maioria desses contratos há imposição de regras, falta de esclarecimento adequado e ausência de informações acessíveis às comunidades, incluindo a inexistência de tradução para as línguas indígenas e explicações simplificadas sobre os impactos e consequências dos acordos.
“Nós estamos falando de grandes empresas que desejam explorar crédito de carbono, que desejam explorar turismo indígena, dentro das terras indígenas. Quem tem que dizer como isso deve acontecer, por quanto tempo e até quando, caso queiram, são os povos originários”, destacou.
Para o advogado Junior Nicacio, esse discurso se revela como uma visão ainda colonialista, que parte da falsa ideia de que as comunidades indígenas não exercem atividades econômicas ou não são capazes de gerir seus próprios modelos de desenvolvimento.
“É como se existisse um único modelo legítimo de economia, o modelo não indígena. Ao contrário disso, os povos indígenas já desenvolvem atividades econômicas sustentáveis, baseadas em suas próprias formas de organização social, um exemplo concreto é a Terra Indígena Raposa Serra do Sol, que abriga experiências consolidadas como feiras comunitárias e regionais e se destaca hoje como a maior produtora de carne orgânica bovina do país”, destacou.
Segundo Nicacio, a abertura para atividades econômicas conduzidas por terceiros, ainda que condicionada à consulta, cria brechas perigosas para o arrendamento de terras indígenas e para a expansão de monoculturas, como a soja, que já exerce forte pressão sobre os territórios indígenas.
O ministro Flávio Dino seguiu o voto de Gilmar Mendes e também votou pela derrubada da tese, mas com ressalvas. Em seu voto, Dino afirmou que a definição das regras para visitação a comunidades indígenas deve ser feita pelos próprios indígenas e não por órgãos de gestão ambiental e, como Mendes, defendeu a regulamentação da exploração de riquezas naturais em terras indígenas.
A exploração mineral havia sido retirada da proposta apresentada inicialmente pelo ministro Gilmar Mendes, mas o tema deverá ser analisado em ações específicas sob a relatoria do ministro Flávio Dino.
Indígenas vão às ruas

A decisão do STF ocorreu no dia seguinte a manifestações em diversas regiões do país, convocadas neste domingo (14) por movimentos sociais e entidades da sociedade civil, que foram às ruas para protestar, entre outros temas, contra a tese do marco temporal e alertar para os riscos de retrocessos nos direitos originários no Brasil.
Em Manaus (AM), a Articulação das Organizações e Povos Indígenas do Amazonas (APIAM), o Fórum de Educação Escolas e Saúde Indígena (Foreeia) e o Movimento dos Estudantes Indígenas do Amazonas (MEIAM) convocaram o movimento indígena para marchar pelas ruas do Centro neste domingo. “A favor da derrubada da Lei 14.701/23 e a PEC 48, lutamos firmes pela defesa dos nossos territórios e da Constituição”, afirmou o Foreeia.
Em Macapá (AP), a Articulação dos Povos e Organizações Indígenas do Amapá e Norte do Pará (APOIANP) e suas lideranças se uniram aos movimentos sociais do estado no ato nacional contra a anistia e o marco temporal.
“Sem anistia para golpista. O poder é nosso, é do povo! Levantamos nossa voz contra o marco temporal, que ataca nossos direitos e territórios”, disse a organização.
Na mobilização em Brasília (DF), as lideranças da Apib reafirmaram seu compromisso em derrubar a tese do marco temporal. “Essa tese é injusta, violenta e ataca diretamente os direitos originários dos povos indígenas, garantidos pela Constituição. A luta é coletiva, é intergeracional e não vai recuar. Seguimos firmes, com coragem e resistência, defendendo a vida, os territórios e o futuro dos nossos povos”, declarou Kleber Karipuna, coordenador-executivo da organização.
Desde a semana passada, o movimento indígena já estava mobilizado nos territórios e em Brasília com suas organizações de base. A delegação do Conselho Indígena de Roraima (CIR) levou à capital federal lideranças indígenas das regiões Serras, Murupu, Tabaio e Serra da Lua.
Em Roraima, o movimento indígena segue mobilizado na BR-174. Em diferentes regiões do estado, eles se manifestam em resposta ao julgamento do marco temporal. Um dos principais pontos de concentração está próximo à comunidade indígena Sabiá, na região de São Marcos. Outras áreas mobilizadas incluem o Baixo Cotingo, na comunidade São Francisco, Serra da Lua, na comunidade Tabalascada, e a região Amajari, na comunidade Mangueira. Em todas as regiões, lideranças comunitárias organizam atos, assembleias e rituais de fortalecimento cultural.
“O movimento indígena reafirma seu posicionamento contrário à Lei 14.701/2023 e segue mobilizado na defesa dos direitos originários, dos territórios e da vida dos povos indígenas”, declarou o CIR em nota publicada após os votos dos ministros do STF.
No protesto em Belo Horizonte (MG), Thabata Pinheiro Campos, mulher indígena do povo Borun Xonin, de 37 anos, foi detida por pixar a frase “Brasil Terra Indígena” na base do Monumento à Terra Mineira, estátua que fica na Praça da Estação, no Centro da cidade.
Ataque duplo

O julgamento faz parte de uma ameaça coordenada por dois Poderes da República. Na última terça-feira (9), o Senado aprovou, em dois turnos, a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 48/2023, conhecida entre organizações indígenas como “PEC da Morte”. Apresentada pelo senador Dr. Hiran Gonçalves (PP-RR), a PEC pretende inserir na Constituição o marco temporal para demarcação de terras indígenas, ignorando as expulsões, deslocamentos forçados e violências históricas sofridas pelas comunidades indígenas, muitos destes episódios impulsionados pela ditadura militar (1964-1988) no Brasil. A proposta recebeu 54 votos a favor e 14 contra no primeiro turno, e 52 a 15 no segundo. O texto segue agora para análise da Câmara dos Deputados.
Ao mesmo tempo, o STF deu continuidade ao julgamento de quatro ações (ADIs 7582, 7583 e 7586 e ADC 87) que questionam a constitucionalidade da Lei 14.701/2023, conhecida como Lei do Marco Temporal. Nas sessões dos dias 10 e 11, foram realizadas sustentações orais e a leitura do relatório da lei, com manifestação de 24 amici curiae. A Apib foi representada no julgamento pelo coordenador executivo Dinamam Tuxá, pelo advogado Ricardo Terena e pela advogada Maíra de Oliveira, indígena do povo Pankararu, do estado de Pernambuco.
Auzerina Macuxi apresentou na plenária casos concretos de violações como a situação da TI Uru-Eu-Wau-Wau, em Rondônia. Ela lembrou que, embora a ADPF 709 do STF tenha determinado a realização de operações de desintrusão, fiscalização e proteção territorial para combater o garimpo, a extração ilegal de madeira e outras atividades criminosas no território, essas ações não foram efetivamente executadas. A liderança Macuxi relatou uma série de violências em outros territórios, incluindo estupros e incêndios criminosos.
Em sua sustentação, o advogado Ricardo Terena ressaltou que o período de vigência da lei do marco temporal foi marcado por assassinatos de lideranças indígenas cometidos por milícias armadas, incluindo o assassinato da Pajé Nega Pataxó Hã-Hã-Hãe. Nega foi assassinada em janeiro de 2024, na Terra Indígena Caramuru-Paraguassu, na Bahia. Outro assassinato cometido durante esse período foi o do jovem Neri Guarani Kaiowá, alvejado a tiros em setembro de 2024, na Terra Indígena Nhanderu Marangatu, no Mato Grosso do Sul.
A aprovação da PEC da Morte e a retomada do julgamento da Lei 14.701 confrontam a decisão do próprio STF no Recurso Extraordinário (RE) 1017365, que em setembro de 2023 definiu a inconstitucionalidade da tese do marco temporal. Logo depois, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) vetou parcialmente o projeto de lei do Congresso, mas os parlamentares derrubaram os vetos em dezembro daquele ano.
A ação foi orquestrada por um lobby político do agronegócio e da mineração aliado a partidos de direita como Partido Liberal (PL), Partido Progressistas (PP) e o Republicanos, que protocolaram no STF as ações para manter a validade do projeto de lei que reconhecia a tese do marco temporal.
Plenária virtual exclui indígenas

A Apib já havia protocolado uma manifestação exigindo que o julgamento fosse integralmente presencial. Contrariando as reivindicações dos povos indígenas, a votação do julgamento foi agendada na tarde da última sexta-feira (12), após as sustentações orais realizadas nos dias 10 e 11, de forma presencial na plenária do STF. Segundo o movimento indígena, a decisão de uma votação virtual compromete a participação dos povos originários e minimiza o debate sobre a lei, que restringe a demarcação de terras e é chamada de “Lei do Genocídio Indígena”.
Em nota, a Apib declarou que a realização da votação no meio virtual fere o direito de acesso à justiça dos povos indígenas, além de ir contra a Resolução 454 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), que prevê a preferência de atos presenciais em processos em que indígenas sejam parte.
“Somente o plenário presencial irá garantir a participação plena dos povos originários!”, disse a organização.
O advogado Junior Nicacio Farias afirmou que o julgamento em curso no STF define o futuro dos direitos dos povos indígenas e, por isso, deveria ocorrer integralmente de forma presencial. Segundo ele, a participação indígena ficou limitada às sustentações orais, o que considera insuficiente diante do impacto do tema na vida das comunidades.“Espero que a Suprema Corte mantenha sua jurisprudência contra o marco temporal e a Constituição Federal, que declarou que os direitos dos povos indígenas são originários. Os votos de dois ministros já afastaram essa tese, o que é importante, embora alguns pontos ainda prejudiquem os povos indígenas”, disse.

As informações apresentadas neste post foram reproduzidas do Site Amazônia Real e são de total responsabilidade do autor.
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