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ToggleConectividade e energia renovável transformam a sociobioeconomia amazônica
Acesso à internet e energia renovável fortalecem comunidades tradicionais e impulsionam mercados sustentáveis na Amazônia
Reportagem por Alice Martins Morais
Quando se pensa na Amazônia, é comum imaginar copas de árvores vistas de cima, uma imensidão de verde dominando o território. Embora seja uma imagem distante da realidade, pois as ameaças ao meio ambiente são constantes, ainda há uma extensão da Amazônia do tamanho de Minas Gerais, na qual 95% da floresta ainda está de pé, mesmo não sendo áreas protegidas. Esse resultado não é por acaso: comunidades tradicionais mantêm há séculos práticas de conservação, incluindo as reconhecidas como sociobioeconomia. Porém, para poder competir com modelos destrutivos, é preciso garantir acesso à internet e à energia renovável, ferramentas essenciais para gerar renda, fortalecer mercados locais e manter vivo o conhecimento que conserva a floresta.
Nessa área, chamada de Amazônia Florestal, vivem mais de 6 milhões de pessoas, como Daiana Figueiredo. Ela faz parte da comunidade quilombola Santo Louvor, localizada em Oriximiná, no oeste do estado do Pará. A ancestralidade nesse território sempre foi conectada à natureza, desde que descendentes de escravos ali encontraram refúgio, no século XIX, construindo novas vidas na floresta.

“A nossa economia vem direto da floresta em pé. Desde criança, aprendemos a cuidar dessa floresta”, conta Daiana, que é presidenta da Cooperativa dos Povos da Calha Norte do Pará (Coopaflora). Criada em 2019, a organização abrange indígenas, quilombolas e assentados, que produzem e comercializam castanha-do-pará, pimenta, andiroba, copaíba e cumaru. Somente na safra de agosto a outubro de 2020, a Coopaflora comercializou 3,5 toneladas de sementes secas de cumaru.
No entanto, o isolamento territorial sempre foi um desafio. “A logística na Amazônia é difícil e a gente não tinha internet nem energia até pouco tempo atrás”, recorda. Há um ano, sua comunidade foi contemplada pelo programa Mais Luz para a Amazônia (MLA), do governo federal. “Fez uma diferença grande, principalmente para produtos como a farinha, que antes precisava ligar o gerador [a diesel] e ter esse gasto com combustível. Agora, ficou muito mais sustentável”, relata.
Há alguns meses, adquiriram uma antena de internet por satélite em um espaço comunal. A cooperativa agora consegue se comunicar internamente com muito mais facilidade e 60% das vendas dos produtos já é feita online, seja para a indústria ou ao consumidor final, de acordo com Daiana.
O caminho para infraestrutura não passa necessariamente por estradas
O exemplo da Coopaflora reforça o argumento de que, se no século passado havia a ideia de que a “salvação” da Amazônia estava em cortar a floresta para construir rodovias, agora o entendimento é de que, com energia e inclusão digital, pode-se conectar a região do restante do mundo, mantendo-se a floresta em pé. Até porque, se a internet já chegou a garimpeiros ilegais na Amazônia, nada mais justo que os guardiões da floresta tenham também essa ferramenta em mãos.
Conforme dados divulgados pelo projeto Amazônia 2030, apenas 55% dos moradores de áreas urbanas e 45% dos moradores de áreas rurais da Amazônia Legal tiveram acesso à internet banda larga em 2022. Esses números são, respectivamente, 20 e 18 pontos percentuais menores que no restante do país.
No contexto da Amazônia Florestal, onde municípios têm apenas 5% de cobertura florestal desmatada, a inclusão digital pode significar avanço para os bionegócios. Assim, poderão contribuir para aumentar a participação da região no mercado global de produtos compatíveis com a floresta, que, em 2021, ainda era inferior a 0,2%.

Capilarizar o acesso à internet e à energia é fundamental para a sociobioeconomia. Com esse propósito, iniciativas têm reunido esforços de pesquisas, organizações sem fins lucrativos e lideranças comunitárias. É o caso do Laboratório Aberto de Bioeconomia (LAB), da Universidade Federal do Oeste do Pará (UFOPA), no qual Daiana Figueiredo recebeu capacitação em informática. O projeto, coordenado pelo professor Clayton Santos, visa à ampliação do mercado de produtos florestais não-madeireiros.
O LAB é um desdobramento do “Puxirum da tecnologia da informação”, outra iniciativa encabeçada pelo docente, que há quatro anos promove a democratização do acesso a ferramentas digitais para as comunidades tradicionais da região. Além de capacitação básicas de gestão de arquivos digitais, por exemplo, o LAB agrega várias outras formações, como economia para adolescentes e apoio no desenvolvimento de sites, a fim de facilitar o escoamento de produtos compatíveis com a floresta. “Tinha documentos que, só para poderem assinar, as pessoas precisavam sair da sua comunidade. A inclusão digital facilita [a rotina] e encurta essas distâncias”, frisa o professor.
De acordo com Clayton, simplesmente tornar a energia e a internet mais acessíveis não basta. “Hoje, já há comunidades com painéis solares e antenas de internet por satélite, mas que não receberam as ferramentas necessárias para usufruir melhor e se apropriar dessas conexões e tecnologias”, justifica.


Protagonismo para além de doação de equipamentos
Assim como o LAB da UFOPA, outros projetos defendem também que não basta levar antenas, painéis solares e outros aparelhos que promovam a conectividade. É preciso dar as ferramentas necessárias para que essas comunidades tenham autonomia para se apropriar da tecnologia e possam tomar suas próprias decisões.
É o que propõe, por exemplo, o Conexão Povos da Floresta, projeto liderado conjuntamente pela Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras e Rurais Quilombolas (CONAQ), a Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (COIAB) e o Conselho Nacional das Populações Extrativistas (CNS), com apoio de mais de 30 organizações da sociedade civil, instituições e empresas.
Criada em 2022, a iniciativa fornece roteadores de alta capacidade, antenas via satélite, celulares, computadores e, em regiões isoladas, kits de energia solar. “A nossa principal missão é o protagonismo dos povos da floresta, através da ótica do cuidado, da conectividade significativa e dos processos de inclusão digital com responsabilidade”, ressalta Juliana Dib Rezende, secretária executiva do projeto.
A proposta é formar uma rede colaborativa digital, com uma camada de segurança para que os usuários tenham os dados protegidos. É a própria comunidade que elege um facilitador apto a participar de cursos de capacitação e compartilhar os conhecimentos adquiridos com os demais.
No mesmo sentido, está a Rede Comunitária Floresta Digital, coordenada pela DW Akademie e pelo projeto Saúde e Alegria. Uma das estratégias é desenvolver uma espécie de intranet nas comunidades, ou seja, uma rede privada usada apenas internamente, para compartilhar informações de forma segura. “Nós trabalhamos com infraestruturas tecnológicas pensando na autonomia das comunidades”, sintetiza Adriane Gama, pesquisadora do projeto e doutora em Ciências Ambientais com ênfase em Bioeconomia na Amazônia.
“Nosso objetivo primordial é que as pessoas se conectem entre si. Então, promovemos redes que tenham um servidor robusto, para evitar que informações sensíveis dessas comunidades venham parar em provedores que não sejam confiáveis”, complementa.

Assim, em vez de subirem arquivos – os quais podem ser privados ou sensíveis – em nuvens de grandes corporações, tenha a opção de salvá-los em um servidor local, funcionando como um espaço que permite compartilhar arquivos em rede, mesmo off-line.
No entanto, essas populações têm também a possibilidade de usar internet disponibilizada via antena de satélite para ampliar a conectividade. “Mas fazemos todo um debate sobre segurança de dados e contexto tecnopolítico. Falamos dos limites, dos desafios, dos riscos, para que se possa usufruir da internet com responsabilidade”, ressalva a pesquisadora.
A Rede Comunitária Floresta Digital também mantém parcerias com CNS, COIAB e CONAQ. Em lugares que ainda não são conectados à rede de energia pública ou onde a eletricidade é muito instável, o projeto ainda provê a instalação de placas solares. No total, nove comunidades são contempladas, entre os estados do Pará, Acre, Amazonas e Amapá.
Conectividade melhora a logística diante de secas e enchentes
Juliana Rezende, do Conexão Povos da Floresta, destaca ainda que, no momento de emergência climática em que vivemos, ter caminhos digitais para se conectar com o restante do mundo é ainda mais crucial. “A logística na Amazônia, naturalmente, tem suas questões. Por exemplo, se está em um período de seca, essas pessoas ficam extremamente isoladas e a conectividade se torna ainda mais indispensável”, pontua.
Além disso, quando as pessoas conseguem estabelecer uma comunicação dentro do seu próprio território, podem empreender sem comprometer a sua vigilância (como patrulhamento e denúncia a invasores) e continuar mantendo seus conhecimentos tradicionais. “Se essas pessoas saem para outra cidade, deixam os territórios mais vulneráveis. Com a conectividade, podem continuar fortalecendo a cultura e os saberes da sua comunidade. A tecnologia une a juventude e os anciões”, ressalta Juliana. O projeto reúne cerca de 400 empreendedores da floresta, que, ao se apropriarem das ferramentas digitais, começaram a se profissionalizar ainda mais, construindo sua marca, por exemplo.
Para a agrônoma Cyntia Meireles, garantir direitos básicos como o acesso à energia elétrica e à internet é primordial para assegurar a essas comunidades dignidade no trabalho e dar condições para que essas pessoas continuar nos territórios. Ela é pesquisadora da Universidade Federal Rural da Amazônia (UFRA) e atua com a gestão sustentável das cadeias de valor na Amazônia.
“Não existe mercado de produto da floresta sem o lado humano. Essas práticas sustentáveis devem ser economicamente viáveis e promover inclusão e justiça social, e, ao mesmo tempo, seguir os princípios de conservação ambiental”, assinala. Cyntia ressalta que a sociobioeconomia promove o uso responsável dos recursos florestais e, portanto, deve ser pensada como uma maneira de recompensar efetivamente quem cuida dessa natureza, com o devido protagonismo dessas comunidades e uma remuneração compatível com seus esforços.


Fomentando a sociobioeconomia para pessoas e lugares diferentes
Com apoio da sociobioeconomia, mesmo em outras regiões da Amazônia é possível se ter um refúgio de floresta mantido em pé. Acará-Açu, a cerca de 86 km da capital Belém, faz oficialmente parte da Amazônia desmatada e, durante muito tempo, o principal meio de subsistência da comunidade era a monocultura do açaí. Hoje, são os sistemas agroflorestais que têm se espalhado.
Antonina de Oliveira, uma das participantes da Rede Floresta Digital, é secretária da Associação dos Moradores da Comunidade Acará-Açu, que reúne 20 pessoas, e é uma das jovens que estão liderando essa transição de economia local. “Nós temos associados que trabalham com a sociobioeconomia, seja com artesanato ou cacau e castanha-do-Pará. E a Rede Floresta Digital está nos ajudando a ganhar visibilidade no mercado fora da comunidade”, diz.
Tal qual nos outros projetos, a comunidade recebe formação para aperfeiçoar sua organização social e agregar valor ao produto. Segundo Antonina, até aqueles que não produzem produtos compatíveis com a floresta podem se beneficiar dessa geração de renda. É o caso de quem não fabrica chocolate, mas que tem plantação de cacau no quintal e vende o fruto para o processamento.
Para ela, a implementação da energia elétrica e da internet reduz distâncias e desigualdades regionais. “O último lugar que olham é aquele que está escondido, por isso a gente precisa se fazer ver – e a internet proporciona esses espaços”, declara.
As informações apresentadas neste post foram reproduzidas do Site O Eco e são de total responsabilidade do autor.
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