Belém (PA) – A Mostra Amazônia: Memórias para o Futuro surge em um momento emblemático para Belém e para o Brasil. A cidade se prepara para sediar a COP30 e, com isso, amplia sua visibilidade global como capital simbólica da floresta. Mas a relevância de um evento como este vai muito além da agenda climática, já que tudo indica, trata-se de uma reafirmação da Amazônia como território de pensamento, criação e memória. E também como ferramenta de resistência e reflexão.
Nem toda iniciativa que se aproxima da Amazônia o faz com respeito e profundidade. Há mostras, festivais e campanhas que ainda reproduzem a lógica extrativista — aquela que, sob o pretexto de “dar visibilidade à floresta”, apenas a explora como cenário exótico, apagando vozes locais e se apropriando de narrativas alheias. Nem preciso citar exemplos, mas lembro uma frase sintomática do diretor Fernando Meirelles afirmando que Belém estava na moda, para entender como é preciso ter cuidado com esse olhar exógeno.
A Mostra Amazônia: Memórias para o Futuro, tudo indica, parece demonstrar um caminho de respeito ético e culturalmente consequente ao criar pontes entre o passado e o presente, entre realizadores que, ainda no auge da ditadura militar, olharam para as transformações da região por intermédio do audiovisual e os realizadores indígenas que hoje filmam de dentro da floresta.
A programação reúne mais de 40 filmes ao longo de sete dias, compondo um retrato denso e plural. Os títulos de Adrian Cowell e Vicente Rios trazem o peso histórico de quem acompanhou, durante meio século, a transformação radical da região — desde o avanço da fronteira agrícola e o contato com povos isolados até o assassinato de Chico Mendes. Obras como “Financiando o Desastre (1987)” e a série “A Década da Destruição” continuam a ecoar como denúncias atemporais.
Além disso, a presença de nomes como Adrian Cowell e Jorge Bodanzky, por exemplo, ao lado de coletivos contemporâneos como Vídeo nas Aldeias e Munduruku Daje Kapap Eypi, soa como mais do que uma curadoria e sim como uma costura de tempos. Cowell e Bodanzky foram, cada um a seu modo, cronistas de uma Amazônia em transformação — registrando desde o avanço da fronteira agrícola até a resistência dos povos originários. Suas trajetórias, atravessadas por décadas de compromisso com a complexidade e os desafios do território, tornaram-se matrizes de um cinema que não apenas observa, mas participa; que não consome a paisagem, mas dialoga com ela.
Ao lado desses registros, estão 15 produções de cineastas indígenas de coletivos como Vídeo nas Aldeias, Beture, Munduruku Daje Kapap Eypi e Wakoborũn. Essa presença indígena na curadoria é uma das maiores virtudes da mostra, sinal de um tempo em que a Amazônia deixa de ser filmada como objeto para se filmar como sujeito.
Hoje, quando cineastas indígenas assumem a câmera, essa herança se renova sob novas lentes e novos repertórios. O olhar já não é de fora: é o próprio território que se narra, que se mostra e se defende. Nesse sentido, a mostra reafirma uma ideia fundamental, a de que o futuro da Amazônia não está apenas em políticas públicas ou acordos internacionais, mas na capacidade de seus povos de contarem suas próprias histórias. Isso pode parecer óbvio, mas é uma luta cotidiana de quem faz audiovisual na região Norte.
Outro ponto alto está nos encontros e debates. Diálogos entre ‘pioneiros’ e novas gerações, como o de Vincent Carelli e Takumã Kuikuro na abertura, ou a conversa entre Jorge Bodanzky e Beka Munduruku, dão corpo à ideia de que o cinema é também território de transmissão de saberes. Bodanzky, com sua trajetória singular de imersão na Amazônia, é homenageado com o lançamento do livro “Um Olhar Inquieto: o Cinema de Jorge Bodanzky (2024)”, reafirmando sua importância como cronista visual de um país que o Brasil não quis ver.
Há ainda momentos de emoção e tributo, como o lançamento póstumo de “Como Salvar a Amazônia: uma busca mortal por respostas”, livro que Dom Phillips escrevia quando foi assassinado ao lado de Bruno Pereira. Esse gesto simbólico confere à mostra uma dimensão ética e memorial, lembrando que documentar a floresta e suas violências é também um ato de coragem. A presença de pesquisadores, lideranças indígenas, jornalistas e escritores da região, entre eles Edna Castro, Neidinha Suruí, João de Jesus Paes Loureiro e Violeta Loureiro, reforça a potência interdisciplinar do evento
Belém, que recentemente viu a inauguração de dois novos centros culturais ligados a bancos, vive um momento de efervescência. A cidade, historicamente marcada por ciclos de esquecimento cultural, parece ensaiar uma nova fase, de abertura, circulação e debate. Se essas novas instituições souberem dialogar com a diversidade e a complexidade da região, em vez de impor modelos externos, poderemos testemunhar o surgimento de uma nova cartografia cultural amazônica.
O que é?
“Mostra Amazônia, Memórias para o Futuro”.
Período: 16 a 22 de outubro, em Belém.
Local: Cine Líbero Luxardo, na sede da Fundação Cultural do Pará.
Avenida Gentil Bittencourt, nº 650, bairro Nazaré.
Entrada gratuita.
As informações apresentadas neste post foram reproduzidas do Site Amazônia Real e são de total responsabilidade do autor.
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