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Ignorância estratégica, mudanças climáticas e Amazônia

Ignorância estratégica, mudanças climáticas e Amazônia


Todos sabemos que “ignorar a lei não é desculpa”, mas, na vida cotidiana, ignorar as consequências das próprias ações é, de fato, uma desculpa que nos protege do nosso próprio desconforto ou da condenação alheia, mesmo pelas ofensas mais graves. Lembra-nos de Jesus Cristo na cruz pedindo ao Senhor que perdoasse os soldados romanos que o estavam matando, “pois não sabem o que fazem”.

Quando se trata de mudanças climáticas e da Amazônia, a negação e a alegada ignorância são comuns. Se o aquecimento global escapar do controle humano com a passagem de um ponto de não retorno no sistema climático global, a Amazônia (e o Brasil como um todo) seria devastada. Não apenas a floresta amazônica e seus serviços ambientais vitais seriam perdidos, mas grande parte da população humana da região pereceria durante ondas de calor sem precedentes [1-5]

Os pontos de inflexão no clima global e para a manutenção da floresta amazônica estão interligados. Se a Floresta amazônica entrar em colapso (por exemplo, [6]), a liberação resultante de gases de efeito estufa levaria o clima global além de seu ponto de não retorno [7], e se o aquecimento global escapar do controle devido à continuação da queima de combustíveis fósseis, a Floresta amazônica logo sucumbiria. Portanto, seria de se esperar que os líderes brasileiros estivessem focados em impedir que esses pontos de inflexão fossem ultrapassados, mas, em vez disso, com exceção dos esforços do Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima (MMA) para controlar o desmatamento ilegal (observação: apenas o que é ilegal), essencialmente todo o resto do governo está trabalhando para aumentar as emissões [8].

A suposição é sempre que nossos líderes agem como agem porque não sabem as consequências de suas ações. A questão de se o presidente Lula “acordará” para a crise climática pressupõe isso [9], assim como a questão de suas ações sobre o outro grande elefante na sala: enfrentar as causas do desmatamento da Amazônia, em vez de simplesmente contar com o MMA para reprimir os sintomas por meio de inspeções e multas. As causas subjacentes incluem a construção de rodovias como a BR-319 e estradas secundárias associadas [10, 11], legalizar (“regularizar”) a grilagem de terras e a invasão de terras do governo [13-15], subsidiar pastagens e soja na Amazônia [16], e subsidiar a transformação de pastagens em soja em todo o Brasil [16], facilitando assim os pecuaristas que vendem suas terras de pastagens para plantadores de soja e compram áreas muito maiores de floresta amazônica barata para desmatar para novas pastagens [17]. Além do desmatamento, o governo também promove a degradação da floresta amazônica por meio da exploração madeireira (sob o pretexto de manejo florestal “sustentável”), que leva a aumentos de degradação por incêndios florestais [18].

A importância de todos esses fatores é conhecida há algum tempo. Será que os líderes não estão cientes disso? Quando os impactos não são negados pela alegação de que tudo será controlado pela “governança” [19, 20], a reação mais comum é que as posições governamentais são decisões políticas e que todo o resto deve simplesmente se conformar a elas. Infelizmente, nenhum político ou outro ser humano comanda o clima, e as consequências de cruzar um ponto de não retorno simplesmente seguem automaticamente assim que o ponto é cruzado.

Além de enfrentar as causas do desmatamento, o outro elefante na sala é a posição do Brasil em relação aos combustíveis fósseis. Como já estamos em um ponto crítico para o clima global (por exemplo, [21, 22]), não há margem para continuar emitindo gases de efeito estufa. Mas a posição dos líderes brasileiros é que o país pode continuar emitindoessencialmente para sempre. O Ministro de Minas e Energia afirma que “o Brasil vai explorar petróleo até ter nível de país desenvolvido” [23]. Presidente Lula afirma com referência ao proposto campo petrolífero offshore na foz do Amazonas que “nós não vamos jogar fora nenhuma oportunidade de fazer esse país crescer” [24]. Como o país sempre desejará crescer, isso representa uma licença para perfurar para sempre. A premissa é que sempre há espaço para mais um campo petrolífero. A questão é vista como uma decisão “política” [25]. Infelizmente, também aqui os políticos não controlam o clima.

O Presidente Lula entende isso? A ignorância é uma proteção essencial aqui, porque, se ele de fato entendesse as consequências dessas decisões políticas, a história seria muito mais severa em seu julgamento. Mas as consequências seguem automaticamente, não dependem de como as decisões de hoje serão julgadas.


A imagem que abre este artigo é de autoria de Marizilda Cruppe/ Greenpeace e mostra a floresta queimando no sul do Amazonas durante sobrevoo na região amazônica para monitorar desmatamento e focos de incêndio, em setembro de 2025.


[1] Fearnside, P.M. 2025. Por que o Brasil deveria abandonar seus planos de gás e petróleo na Amazônia. Amazônia Real, 21 de maio de 2025.

[2] León, L.P. 2024. Entenda estudo da Nasa sobre ‘Brasil inabitável’ em 50 anos. Agência Brasil, 24 de julho de 2024.

[3] Raymond, C., T. Matthews & R.M. Horton. 2020. The emergence of heat and humidity too severe for human tolerance. Science Advances 6: eaaw1838.

[4] Sherwood, S.C. & E.E. Ramsay 2023. Closer limits to human tolerance of global heat. Proceedings of the National Academy of Science USA 120(43): art. e2316003120.

[5] Matthews, T., E.E. Ramsay, F. Saeed, S. Sherwood, O. Jay, C. Raymond, N. Abram, J.K.W. Lee, S. Barley, S. Perkins-Kirkpatrick, M.S. Khan, K.J. Meissner, C. Roberts, D. Mavalankar, K.G.C. Smith, A. Ullah, A. Sadad, V. Turner & A. Forrest 2025. Humid heat exceeds human tolerance limits and causes mass mortalityNature Climate Change 15: 4–6.

[6] Flores, B.M., E. Montoya, B. Sakschewski, N. Nascimento, A. Staal, R.A. Betts, C. Levis, D.M. Lapola, A. Esquível-Muelbert, C. Jakovac, C.A. Nobre, R.S. Oliveira, L.S. Borma, D. Nian, N. Boers, S.B. Hecht, H. ter Steege, J. Arieira, I.L. Lucas, E. Berenguer, J.A. Marengo, L.V. Gatti, C.R.C. Mattos & M. Hirota. 2024. Critical transitions in the Amazon forest system. Nature 626: 555–564.

[7] Fearnside, P.M. & R.A. Silva. 2023. A seca na Amazônia em 2023 indica um futuro desastroso para a floresta tropical e seu povo. The Conversation, 06 de novembro de 2023.

[8] Fearnside, P.M. 2024. A Agenda Transversal Ambiental do PPA-2024-2027: Os elefantes na sala. Amazônia Real, 31 de janeiro de 2024.

[9] Fearnside, P.M. 2025. O Lula acordará para a crise climática? Amazônia Real,

[10] Fearnside, P.M. 2022. Por que a rodovia BR-319 é tão prejudicial. Amazônia Real.

[11] Fearnside, P.M. 2024. Impactos da rodovia BR-319. Amazônia Real.

[13] Yanai, A.M., P.M.L.A. Graça, L.G. Ziccardi, M.I.S. Escada & P.M. Fearnside. 2023. Desmatamento em terras públicas não destinadas. Amazônia Real.

[14] Carrero, G.C., R.T. Walker, C.S. Simmons & P.M. Fearnside. 2023. Grilagem de terras na Amazônia brasileira. Amazônia Real.

[15] Ferrante, L.; Andrade, M.B.T.; Fearnside, P.M. 2021. Grilagem na rodovia BR-319. Amazônia Real.

[16] MAP (Ministério de Agricultura e Pecuária). 2025. Lula e Fávaro anunciam maior Plano Safra da história, com R$ 516,2 bi para crédito e inovação. MAP, 01 de julho de 2025.

[17] Fearnside, P.M. 2021. O desmatamento da Amazônia. Amazônia Real.

[18] Barni, P.E., A.C.M. Rego, F.C.F. Silva, R.A.S. Lopes, H.A.M. Xaud, M.R. Xaud, R.I. Barbosa & P.M. Fearnside. 2022. Exploração madeireira e incêndios florestais. Amazônia Real,

[19] Fearnside, P.M. 2024. Impactos da rodovia BR-319 – 9: O discurso de governança. Amazônia Real, 26 de junho de 2024.

[20] Fearnside, P.M. 2025. Uma utopia amazônica com ressalvas. Amazônia Real.

[21] Hansen, J.E., P. Kharecha, M. Sato, G. Tselioudis, J. Kelly, S.E. Bauer, R. Ruedy, E. Jeong, Q. Jin, E. Rignot, I. Velicogna, M.R. Schoeberi, K. von Schuckmann, J. Ampronsen, J. Cao, A. Keskinen, J. Li & A. Pokela. 2025. Environment: Science and Policy for Sustainable Development, 67(1): 6-44.

[22] McKay, D.I.A., A. Staal, J.F. Abrams, R. Winkelmann, B. Sakschewski, S. Loriani, I. Fetzer, S.E. Cornell, J. Rockström & T.M. Lenton. 2022. Science 377: art. eabn7950.

[23] Pupo, F.2024, Brasil vai explorar petróleo até ter nível de país desenvolvido, diz ministro de Energia. Folha de São Paulo, 03 de abril de 2024.

[24] Vieceli, L. & I. Nogueira, 2024. Lula volta a defender exploração de petróleo na margem equatorial. Folha de São Paulo, 12 de junho de 2024.

[25] Prazeres, L. 2025. A estratégia de Lula de usar petróleo da Amazônia na eleição de 2026. BBC News Brasil, 25 de fevereiro de 2025.

As informações apresentadas neste post foram reproduzidas do Site Amazônia Real e são de total responsabilidade do autor.
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