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Mais que um veredito: a condenação de Bolsonaro e a urgência da Amazônia

Mais que um veredito: a condenação de Bolsonaro e a urgência da Amazônia

Na imagem acima, o ex-presidente Bolsonaro com o governador do Amazonas, Wilson Lima, e os políticos locais: Capitão Alberto Neto, Coronel Menezes, o então comandante da PM, coronel Norte, acusado pelo “Massacre do rio Abacaxis”, ao fundo Anderson Torres (Foto: Secom/AM/Out 2021).


(Belém- PA)- A condenação de Jair Bolsonaro não é apenas a queda de um homem diante da Justiça. É, sobretudo, a revelação de um tempo em que o Brasil decidiu flertar com o abismo — e a Amazônia, com seu meio ambiente e seus povos urbanos e florestais, foi jogada no centro dessa escolha. Durante quatro anos, o maior bioma do planeta deixou de ser visto como território de vida e passou a ser tratado como empecilho, moeda de troca, inimigo interno.

O que se desenhou não foi mera negligência, mas um projeto. O desmonte da política ambiental foi sistemático, calculado, tecido com o mesmo fio do negacionismo que zombava de vacinas e de mortos. Ao IBAMA, ao ICMBio, à FUNAI, coube a corrosão lenta: cortes orçamentários, perseguição a servidores, substituição de técnicos por fiéis políticos ou homens fardados. E a cada árvore tombada, a cada rio escurecido pelo mercúrio, a cada avanço indiscriminado do agronegócio monocultor, ecoava em brado enraivecido a senha vinda de Brasília: “está permitido”.

Os números mostram a escala da devastação. Entre 2019 e 2022, o desmatamento na Amazônia Legal disparou. Somente em 2020, foram derrubados mais de 11 mil km² de floresta — o maior índice em 12 anos. Em 2021, a taxa superou 13 mil km², consolidando-se como uma das piores marcas da série histórica. Em quatro anos, o governo Bolsonaro acumulou quase 45 mil km² de floresta destruída, o equivalente a um país como a Dinamarca. Paralelamente, o garimpo ilegal se expandiu dentro de terras indígenas entre 2010 e 2021, com a explosão mais dramática ocorrendo justamente no período bolsonarista.

Os órgãos responsáveis por proteger a floresta foram desmontados por dentro. O orçamento do IBAMA caiu em mais de 35% entre 2019 e 2021. As operações de fiscalização despencaram: em 2019, o número de autos de infração foi o menor em duas décadas, e em 2020 houve queda de 40% nas multas aplicadas em comparação com a média histórica. A FUNAI foi capturada por indicações políticas alinhadas a ruralistas e transformada em ferramenta contra os povos que deveria proteger. O ICMBio teve unidades fechadas e servidores perseguidos. O resultado foi uma sensação de carta branca para grileiros, madeireiros e garimpeiros. Em 2019, dados do Inpe apontaram índices recordes de focos de incêndio. Em vez de agir, Bolsonaro fez acusações públicas ao órgão. Chegou a apontar o dedo ao então diretor do instituto, Ricardo Galvão, chamando-o de mentiroso. Galvão reagiu, em defesa da autonomia científica. Foi demitido. E Bolsonaro soltou mais uma de suas frases anedoticamente cruéis. Afirmou que a Amazônia não poderia ter queimadas porque sua floresta era tropical úmida. E centrou fogo no desastre. Mais de 600 normas com impacto ambiental foram modificadas entre abril e dezembro de 2020. Nenhuma para proteger.

O auge da pandemia expôs o rosto mais cruel desse tempo. Quando o país clamava por cuidado, o governo oferecia desprezo. Povos indígenas ficaram entregues à própria sorte, duplamente vulneráveis. Sem assistência médica, sem planos emergenciais específicos, aldeias inteiras ficaram expostas ao vírus, em paralelo à invasão de seus territórios por garimpeiros e madeireiros. O caso Yanomami é a cicatriz aberta dessa era, com mais de 20 mil invasores em seu território, crianças desnutridas até os ossos, rios intoxicados, aldeias sitiadas. As imagens que chocaram o mundo não foram fruto do acaso. Eram o retrato fiel de um Estado que, ao invés de proteger, escolheu abandonar.

Enquanto isso, ministros falavam em “passar a boiada”. E passaram. Sob a cortina de fumaça da crise sanitária, normas foram rasgadas, salvaguardas desmontadas, a floresta entregue a um apetite predatório. A frase de Ricardo Salles sobre “passar a boiada” durante a pandemia não foi um lapso, mas o símbolo cristalino de uma política de governo que via a crise sanitária como oportunidade para afrouxar leis e desmontar salvaguardas. O garimpo ilegal explodiu em terras indígenas, levando não apenas destruição material, mas doenças, violência, estupros e morte. Rios inteiros, antes espelhos de céu, transformaram-se em calhas envenenadas. Enquanto o país estava paralisado pela pandemia, Salles esfregava as mãos sugerindo aproveitar a crise sanitária para desmontar discretamente salvaguardas ambientais construídas em décadas. Ironicamente, o ex-ministro foi gravado comprando produtos sem agrotóxicos numa feira orgânica, num ato supremo de ironia cínica.

Bolsonaro transformou a Amazônia em ativo político para sua base mais radical e em moeda de troca para setores econômicos interessados no uso predatório da terra. Sob sua gestão, a floresta deixou de ser patrimônio ambiental e passou a ser tratada como obstáculo a ser removido. Bolsonaro não apenas falhou em proteger a Amazônia — ele ativamente a colocou sob risco. Sua condenação, portanto, deve ser lida para além da esfera político-partidária, mas também como o reconhecimento de que sua gestão foi marcada por crimes contra a vida, contra o meio ambiente e contra a dignidade de populações que sempre defenderam a floresta.

E não foi apenas a floresta que sangrou. O Brasil também se apequenou. A imagem construída em décadas, ainda que nem de todo real — de país guardião da maior floresta tropical — foi substituída pela de uma nação cúmplice da devastação. O Fundo Amazônia foi suspenso, acordos travados, chefes de Estado estrangeiros apontaram para nós como ameaça climática global. O que era patrimônio planetário tornou-se vergonha internacional.

A condenação de Bolsonaro, nesse contexto, é mais do que um ato jurídico. É o símbolo de um ciclo de destruição. Um tempo em que o autoritarismo se somou ao negacionismo, e juntos produziram tragédias ambientais e humanas de alcance ainda difícil de medir. A condenação do ex-presidente, portanto, não é apenas sobre articulações golpistas ou ataques à democracia. Ela deve ser lida também como símbolo de um ciclo político que tratou a Amazônia como terra arrasada. É um lembrete do  quanto se pode produzir tragédias humanas e ambientais a favor de uma política de morte. É o que mostra, por exemplo, o documentário “Amazônia, A Nova Minamata?”, de Jorge Bodanzky. O filme mostra como a mineração na região amazônica contamina com mercúrio os rios e peixes, a população ribeirinha e os indígenas. No documentário, Bodanzky recorre a imagens de arquivo para relacionar o desastre Minamata, no Japão – em que crianças e adultos foram gravemente afetados pelo contato com o mercúrio nos anos 1950 – à contaminação da região amazônica, em especial a do povo Munduruku.

A sentença, proferida na emblemática data de 11 de setembro, não devolve o que foi perdido. Não faz brotar as árvores derrubadas que se transformaram em pastos ou campos de soja, na savanização da Amazônia, não devolve pureza às águas contaminadas, não devolve a vida às crianças Yanomami. Ela aponta, isso sim, para a urgência de reconstrução.

E aqui está o verdadeiro desafio. Recompor instituições feridas, devolver dignidade aos povos tradicionais, restaurar florestas, responsabilizar redes criminosas que se alimentaram da impunidade. Mais do que punir o indivíduo Jair Bolsonaro, é preciso desmontar o sistema de destruição que ele legitimou. Porque se nada for feito, a floresta continuará em risco, e o país permanecerá prisioneiro do mesmo ciclo de cinzas. É uma tarefa que o governo Lula ainda não dedicou tempo e esforço necessário, é preciso dizer.

Apesar de tudo, a Amazônia insiste. Entre troncos tombados, nas clareiras abertas pela violência, brotam sementes teimosas. Povos resistem, porque sabem que isso sempre fez parte de sua própria história. Resistência sempre foi a palavra de ordem, o norte a seguir.

A condenação de Bolsonaro pode, assim, ser lida como um marco. A possibilidade de encerrar um capítulo de morte e começar outro de reparação. Mas o julgamento mais importante não está nos tribunais. Está nas mãos da sociedade brasileira. Somos nós que decidiremos se a floresta será tratada como obstáculo ou como futuro. Se o país será cúmplice da devastação ou guardião de sua maior riqueza.

A Amazônia é a memória mais antiga do país e também a promessa mais necessária do que ainda virá. Se a condenação do ex-presidente serve de marco, que ela seja também um chamado. Não basta punir o CPF. É preciso desmontar tudo de negativo que ele trouxe. Só então poderemos olhar para a Amazônia não como um cemitério de possibilidades, mas como território de vida, diversidade e futuro.  

A Amazônia não pede vingança. Pede vida. Pede que a condenação de um homem seja transformada em compromisso coletivo. Que o que foi perdido seja recuperado, que as águas voltem a correr limpas, que os povos possam viver com dignidade em seus territórios. Esse será o verdadeiro veredito. Porque a Amazônia não esquece — e continuará a nos julgar, geração após geração.


As informações apresentadas neste post foram reproduzidas do Site Amazônia Real e são de total responsabilidade do autor.
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