Comunidades indígenas e ribeirinhas no Amazonas enfrentam, como podem, a nova dinâmica das secas e cheias extremas e recorrentes que impactam a vida, a saúde e a subsistência na região amazônica, que sediará, em novembro, a COP 30. (Imagem aérea do Lago de Tefé, no dia 26 de outubro de 2023 (Foto cedida por Samara Souza)
Manaus (AM) – A comunidade indígena Três Unidos, na zona rural de Manaus, no Amazonas, vive sob uma nova rotina de incertezas. Localizada às margens do rio Cuieiras, um afluente da margem esquerda do rio Negro, a localidade onde vivem cerca de 220 indígenas do povo Kambeba antes era regida pela previsibilidade. Com muita dificuldade se encontraria um morador que desconhecesse os ciclos naturais dos rios. Mas os efeitos dos eventos climáticos extremos e recorrentes, como as secas e as cheias severas que atingiram o Amazonas nos últimos três anos, mudaram esse cenário e tornaram a vida instável.
Na seca de 2024, a lancha que conecta a comunidade a Manaus deixou de atracar “na boca do rio”. Os moradores foram obrigados a caminhar por longas distâncias sob o sol ou no escuro. É uma cena que não sai da memória da estudante Daniele Kambeba, de 22 anos. “A minha mãe tinha que escolher um único momento do mês para poder vir para Manaus fazer o rancho, porque nem toda vez o barco fazia esse trajeto. Foi muito difícil. Mas, graças a Deus, a gente conseguiu doações de rancho para a gente poder sobreviver”, lembrou a jovem em entrevista à Amazônia Real.
O transporte de alimentos foi comprometido com os rios cada vez mais rasos. Mas não só. A pesca também se tornou escassa. O pai de Daniele, pescador na comunidade, mal conseguia encontrar peixes. “O jeito foi ter que mandar comprar na cidade sardinha enlatada, frango, essas coisas, que estavam muito caras também”, explicou.


Comunidade Três Unidos, rio Cuieiras em 2024 (Arquivo da comunidade).
A realidade de enfrentamento a eventos climáticos extremos se estendeu por outras regiões do Amazonas, que em 2025 viu o cenário da seca se inverter. Enquanto em outubro de 2024 o rio Negro registrou a menor cota da história em Manaus (12,66 metros), neste ano, o rio alcançou 29,05 metros, conforme dados do Porto de Manaus. Essa medição superou a cota de inundação severa, que é de 29 metros. O rio chegou a esse nível no início de julho, mas desde abril o período de cheia já afetava diversas áreas no Estado. A urgência por adaptação climática tem exigido resiliência das comunidades da Amazônia.
A adaptação climática é um dos temas centrais da Conferência das Nações Unidas sobre Mudança do Clima, a COP 30, o evento mundial que ocorrerá no mês de novembro, em Belém (PA). Nos bastidores diplomáticos serão os líderes dos países envolvidos que deverão discutir o avanço do Acordo de Paris e se é possível (e vão) cumprir com a Meta Global de Adaptação (Global Goal on Adaptation, ou GGA, na sigla em inglês), estabelecida para impulsionar ações e financiamento para a resiliência climática. Mas a população mais vulnerável da Amazônia já sente os impactos de uma crise que não espera por grandes acordos.
Um estudo do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (Ipam), intitulado “Acelerando estratégias de adaptação equitativa na Amazônia em meio às mudanças climáticas”, divulgado em abril, apontou o custo da inação em relação à crise climática. Entre 1991 e 2023, a Amazônia já perdeu 10,6 bilhões de reais devido a desastres climáticos. Mas o alerta é ainda mais grave: o prejuízo pode chegar a 19,145 trilhões de reais nas próximas três décadas. Na prática, o custo de não agir é quase 2 mil vezes maior que as perdas registradas até agora, o que coloca os eventos extremos como um dos maiores desafios para a economia e a vida na Amazônia.
“Esses eventos não apenas agravam a exposição e vulnerabilidade das comunidades locais, mas também ameaçam a biodiversidade única da região, a cultura e o papel crucial da Amazônia na regulação do clima global. Em um cenário de aquecimento global acelerado, o Brasil enfrenta a urgência de mitigar esses efeitos adversos e fortalecer a resiliência das suas comunidades, especialmente as mais vulneráveis”, diz o estudo do Ipam, assinado pelas pesquisadoras Patrícia Pinho Korbele, Ane Alencar, Olivia Zerbini Benin e Bibiana Alcântara Garrido.
De acordo com o estudo do Ipam, apenas dois municípios têm leis específicas de mitigação e/ou adaptação às mudanças climáticas: Palmas (TO) e Rio Branco (AC). Os estados do Amazonas, Amapá, Roraima, Rondônia, Maranhão, Mato Grosso e Pará (que vai sediar a COP 30) não iniciaram ainda a mitigação. Para o Ipam, os municípios que têm leis, “ainda estão aquém das necessidades do País”.
“Os planos existentes frequentemente incluem medidas como a gestão de recursos hídricos, a proteção de áreas vulneráveis e o fortalecimento da infraestrutura urbana. No entanto, muitos desses planos carecem de alinhamento com os objetivos climáticos nacional e internacionalmente, além de serem insuficientes em termos de abrangência e eficácia”, diz o estudo.
O Ipam alerta que para evitar o colapso nas comunidades amazônicas não é necessário orçamentos bilionários. Em vez disso, estratégias de adaptação de baixo custo, como bioeconomia, energia solar descentralizada, infraestrutura urbana resiliente e proteção aos povos tradicionais têm efeito potencialmente mais barato e eficaz.
Sobre a necessidade de financiamento para adaptação globalmente (Contribuições Nacionalmente Determinadas – NDCs, Planos Nacionais de Adaptação – NAPs), segundo o Ipam, o valor é de 387 bilhões de dólares por ano até 2030. “As estimativas indicam que as necessidades de financiamento para adaptação na América Latina e América do Sul para o período de 2021–2030 variam de 51 a 150 bilhões de dólares anuais, correspondendo a 0,9% a 2,7% do PIB nacional dos países dessas regiões. Isso ressalta a necessidade urgente de ampliar e fortalecer os planos de adaptação em todo o Brasil.”
A falha do Estado

Relatórios, como o Lacuna de Adaptação 2024: Faça chuva ou faça sol, do Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (Pnuma), alertam que as necessidades em países em desenvolvimento, como o Brasil, Burkina Faso, Chile e África do Sul, superam de forma significativa o financiamento disponível. E a falha não é só de dinheiro, mas de planejamento.
Para a geógrafa Paula dos Santos Silva, pesquisadora do Instituto de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá, sediado em Tefé, no Amazonas, a ausência de uma política pública estruturante e preventiva agrava a vulnerabilidade das comunidades da Amazônia. “Só é voltada para desastres no momento em que ocorrem, não para prevenção. Então, se não temos mitigação, o que a população vai fazer é o mínimo, e o mínimo significa que elas não estão preparadas”, critica a pesquisadora. Ela defende que qualquer planejamento precisa contar com a participação direta das comunidades, que são as verdadeiras conhecedoras do território e de suas necessidades.
As secas de 2023 e 2024 foram desastrosas na região e impactaram quase 1,5 milhão de pessoas. Nesses dois anos, o governo decretou estado de emergência em todos os 62 municípios. Já a enchente deste ano afetou mais de 500 mil pessoas com inundações em 43 municípios.
Na prática, essa situação atinge o cotidiano dos moradores. De acordo com dados da Secretaria de Estado de Educação e Desporto Escolar, 453 alunos foram impactados pela cheia dos rios em quatro municípios: Anamã, Itacoatiara, Novo Aripuanã e Uarini. Esses estudantes seguem com o calendário do programa “Aula em Casa”, que oferece ensino remoto.
“Se mais de uma comunidade for atingida ao mesmo tempo, será que os municípios estão preparados [para a adaptação]? Será que o governo está preparado para atender essa população, se nem consegue atender comunidades próximas?”, questiona a geógrafa Paula Silva.
Durante a seca de 2023, o calor matou centenas de botos. Veja aqui.
Terras caídas

Na comunidade ribeirinha de São Luiz do Macari, no município de Tefé (a 522 quilômetros de Manaus), localizada na margem direita do médio rio Solimões, a paisagem mudou drasticamente nos últimos anos. O que antes era um território consolidado, com 42 famílias, está sendo destruído pelo fenômeno conhecido como “terras caídas”, processos de erosão que vêm se intensificando pelas cheias e secas recorrentes.
Ribeirinha nascida e criada na região de Tefé, a pesquisadora Paula Silva acompanha de perto essa realidade. “É um fenômeno da natureza, que pode ocorrer tanto na cheia quanto na seca. Pode acontecer a qualquer momento, tanto em áreas onde já ocorreu, quanto em áreas onde nunca ocorreu”, explica. Segundo ela, com os eventos climáticos extremos se tornando mais frequentes e severos, o processo natural das terras caídas se converteu em um evento de intensidade muito maior e que ameaça a vida e os modos de existência de milhares de famílias amazônidas.
Com o passar do tempo, esse fenômeno provocou diversos impactos socioambientais em São Luiz do Macari, como mostra um artigo escrito por Paula Silva e publicado em 2023 na revista Geonorte, do Departamento de Geografia da Universidade Federal do Amazonas (Ufam). A redução da área habitável, a perda de plantações e a necessidade dos moradores primeiro recuarem suas construções e, mais tarde, se deslocarem para outras duas áreas distintas da Ilha Assani/Panamim, também chamada localmente de Ilha do Tarará, são alguns exemplos citados na pesquisa.
Em 2019, quando o fenômeno das terras caídas atingiu a comunidade com maior intensidade, a Escola Municipal Samuel Fritz veio ao chão. Era a única construção de alvenaria existente no local. A destruição provocou ainda o deslocamento de oito famílias. “A erosão não traz só perdas de materiais, perdas agricultáveis, mas também vai impactar na educação, impactar na saúde, no psicológico, porque como vão ficar essas pessoas depois que perdem tudo? O processo de erosão, para essas pessoas que vivem nesse ambiente, vem ocorrendo muito mais rápido “, relata Paula Silva.
Avanço da erosão

Durante as secas, o tempo de deslocamento até Tefé se torna inviável, em muitas localidades. Isso porque a erosão e a sedimentação altera drasticamente o curso dos rios e forma novas ilhas e bancos de areia. Um trajeto que levava 50 minutos passou a levar mais de 6 horas. Mais de 5 mil ribeirinhos que vivem na Reserva de Desenvolvimento Sustentável (RDS) Mamirauá estão sob o risco de avanço da erosão, segundo um estudo publicado em fevereiro na revista Communications Earth & Environment, liderado pelo Instituto Mamirauá, em colaboração com as universidades de Brasília (UnB), do Sul e Sudeste do Pará (Unifesspa) e de Toulouse, da França.
Já são cerca de 254 comunidades da reserva com formações de praias. Um exemplo disso é a comunidade de Coadi, que fica na beira do rio Solimões, dentro da RDS Mamirauá. Os comunitários já tiveram de se mudar quatro vezes por conta da destruição do território, migrando cada vez mais para dentro da floresta. Em 2019, a comunidade teve parte de suas edificações engolidas pelas terras caídas.
A pesquisadora Paula Silva afirma que as migrações acontecem ou por erosão ou por sedimentação, que são as grandes praias formadas na frente de um território. Pelas imagens de satélite, é possível ver essas ilhas ao longo do Médio Solimões. “Às vezes parece que é natural, mas não é. Na verdade, é uma resposta que a natureza está dando diante da crise climática”, ressalta Paula.
Na seca de outubro de 2023, o fenômeno das terras caídas provocou uma tragédia na comunidade do Arumã, em Beruri, às margens do rio Purus. Cerca de 40 casas foram engolidas pela erosão, resultando na morte de duas pessoas e no desaparecimento de outras três. Quase um ano depois, em setembro do ano passado, uma nova seca histórica atingiu o Amazonas e 30 casas foram destruídas em São Paulo de Olivença, deixando ao menos nove famílias desabrigadas.
Um mês depois, um novo desabamento no Porto de Terra Preta, em Manacapuru, matou duas pessoas e feriu outras dez. Um laudo do Serviço Geológico do Brasil (SGB) confirmou que a erosão foi causada pelas terras caídas, porém agravada pela construção de um aterro sobre solo instável e sem capacidade para suportar cargas adicionais. O Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (Dnit), responsável pela obra, chegou a ser autuado e multado em mais de 3 milhões de reais pelo Instituto de Proteção Ambiental do Amazonas (Ipaam) pela construção.
Nova dinâmica climática

Paula Silva lembra que o conhecimento tradicional ribeirinho sempre foi suficiente para lidar com os ciclos naturais da seca e da cheia. Agora, com a frequência dos eventos extremos, as comunidades parecem ter desaprendido a responder de forma eficaz. “A população ribeirinha estava adaptada a uma cheia normal, a uma seca normal. Mas diante de um novo quadro das mudanças climáticas que intensificaram todos esses processos, isso mudou a dinâmica da nossa região. As pessoas não estão preparadas para isso”, manifestou.
Muitas famílias do Médio Solimões acabaram migrando para áreas urbanas por não conseguirem mais reconstruir o que perderam. “Nós vivenciamos duas secas extremas. A gente entende que temos uma dependência total do rio, para o consumo, a subsistência, a pesca, o deslocamento. Então, tivemos uma diminuição em tudo. Na produção, na pesca e no acesso à cidade”, disse Paula.
Em fevereiro, a Defesa Civil e o Ministério Público do Amazonas (MP-AM) emitiram uma recomendação direcionada ao município de Jutaí para que fossem adotadas medidas para retirada e realocação de pessoas em áreas onde ocorrem o fenômeno das terras caídas. Vistorias realizadas em outubro de 2023 identificaram áreas com risco alto a moderado de colapso estrutural, incluindo residências e prédios públicos.
Silva destaca que os riscos ambientais se tornaram compostos e cíclicos, como a relação entre cheia e poluição, seca e erosão, sedimentação e escassez de recursos naturais. Isso gera isolamento, insegurança alimentar e hídrica, aumento do tempo de deslocamento até centros urbanos e dificuldade no acesso a serviços básicos, como saúde e abastecimento de água. Nas secas de 2023 e 2024, muitas comunidades ficaram semanas sem água potável e com acesso limitado à pesca e ao transporte, dependendo exclusivamente dos rios para sobreviver. A geógrafa ressalta que as populações não escolheram viver em áreas de risco, mas foram empurradas para esses locais por falta de alternativas.

A partir de oficinas realizadas com cerca de 51 comunitários da RDS Amanã, Paula e sua equipe no Instituto Mamirauá ajudaram a sistematizar soluções possíveis. Com os moradores, elaboraram um documento voltado para as ações comunitárias e propostas para o poder público diante da crise climática no Médio Solimões. A RDS, onde vivem mais de 4 mil pessoas em 127 localidades (comunidades e sítios), foi severamente afetada pela estiagem de 2023. Ocorrência de diarreia em consequência da insalubridade da água para beber, suspensão das aulas devido às altas temperaturas do ar, dificuldade de escoamento das produções, aumento nos preços de combustíveis e alimentos e impedimento de realização das atividades de manejo do pirarucu e peixes ornamentais foram alguns dos problemas enfrentados pelos moradores.
Os ribeirinhos, representados pela Central das Associações de Moradores e Usuários da Reserva de Desenvolvimento Sustentável Amanã (Camura) e da Federação dos Manejadores e Manejadoras de Pirarucu da Região de Mamirauá (Femapam), apresentam demandas simples, mas necessárias para a sobrevivência nesses novos tempos: aquisição de botes leves, perfuração de poços artesianos, instalação de tanques de água de 5 mil litros, criação de postos de saúde com presença permanente de técnicos e implementação de sistemas de captação da água da chuva.
Era preciso, nos episódios climáticos extremos dos anos passados, ouvir aqueles que viviam na linha de frente. Municípios como Alvarães, decidiram perfurar poços durante a seca de 2023, uma medida simples que transformou a realidade de mais de 20 comunidades. Na seca seguinte, a diferença foi gritante. Quem tinha acesso ao poço sobreviveu com dignidade, e até os vizinhos sem essa sorte podiam recorrer à água da outra comunidade. “Os próprios ribeirinhos têm esse conhecimento, mas precisam de suporte, de auxílio. Porque, se não têm de onde tirar, se sua subsistência já foi comprometida tanto no período de seca quanto no de cheia, ficam desassistidos”, concluiu a geógrafa Paula Silva, do Instituto Mamirauá.

As informações apresentadas neste post foram reproduzidas do Site Amazônia Real e são de total responsabilidade do autor.
Ver post do Autor





