Por Domingos de Jesus Rodrigues, Thadeu Sobral-Souza, Tiago Shizen Pacheco Toma, Aretha Franklin Guimaraes, Thiago Junqueira Izzo, Marcos Penhacek, Flávia Barbosa Rodrigues, Neucir Szinwelski, Afonso Kempner, Willian Schornobay Bochenski, Milton Omar Cordova Neyra, Helena Streit, Gerhard Ernst Overbeck, Fabio de Oliveira Roque, Geraldo W. Fernandes, Cássio Cardoso Pereira e Philip Martin Fearnside
Apresentamos nesta série uma tradução de um trabalho publicado na revista Perspectives in Ecology and Conservation [1] sobre a ameaça deredução, rebaixamento e desafetação de áreas protegidas. O trabalho original em inglês está disponível aqui.
Resumo
Este artigo aborda a redução e eliminação de áreas protegidas na Amazônia brasileira. Isso impacta os esforços de conservação do Brasil, os processos ecossistêmicos e a mitigação das mudanças climáticas. A frase “Passando a boiada” originou-se de uma declaração do então Ministro do Meio Ambiente do Brasil, Ricardo Salles, em uma reunião ministerial de 2020 e reflete o desmantelamento das políticas ambientais pelo governo presidencial de Jair Bolsonaro (2019-2022). Apesar dos esforços do atual presidente para restaurar as proteções ambientais, o controle da Frente Ruralista no Congresso Nacional continua a ameaçar as áreas protegidas. O Parque Estadual Cristalino II, localizado no sul da Amazônia, no estado de Mato Grosso, está enfrentando a eliminação devido a reivindicações fundiárias fraudulentas. A redução das áreas protegidas prejudica a conservação da biodiversidade e a mitigação das mudanças climáticas. Manter essas áreas é crucial para que o Brasil cumpra seu compromisso do Acordo de Paris e da COP 15 da Convenção da Biodiversidade de atingir o desmatamento zero até 2030. A situação exige atenção global urgente para manter os compromissos de conservação e evitar maior degradação dos ecossistemas.
Redução de tamanho, rebaixamento e desafetação
Áreas protegidas estão sendo desafetadas em todo o mundo [2], apesar dos aumentos nas metas de conservação pós-2020 [3]. No Brasil, forças fortes inibem tanto o estabelecimento de novas Unidades de Conservação” (UCs) quanto a defesa das UCs existentes contra a desafetação [4]. Dado que o Brasil é o país com maior biodiversidade do mundo e um líder global no estabelecimento e gestão de áreas protegidas [5], a redução, o rebaixamento e a desafetação das áreas protegidas do Brasil têm consequências globais para a biodiversidade, a conservação de ecossistemas e as mudanças climáticas. Há forte pressão política no Brasil para aprovar leis que reduzam a área de reservas legais privadas (como o Projeto de Lei Federal 3334/2023 e o Projeto de Lei do Estado do Mato Grosso 337/2022). Essa pressão não se limita às áreas privadas: ela também impulsiona o “PADDD” (sigla em inglês para “redução, rebaixamento e desafetação de áreas protegidas”) em terras governamentais protegidas na Amazônia [5].
“Passando a boiada” tornou-se uma expressão amplamente conhecida no Brasil após uma reunião ministerial em 2020, onde essa frase foi usada por Ricardo Salles, o Ministro do Meio Ambiente durante o governo notoriamente antiambiental do presidente Jair Bolsonaro. Sales instou seus colegas ministros a desmantelar as regulamentações ambientais do país, aproveitando a “oportunidade” criada pelo foco da mídia na emergência sanitária da COVID-19. Salles, que deveria estar protegendo o meio ambiente, foi filmado fazendo essa declaração, e a filmagem foi posteriormente tornada pública pelo Supremo Tribunal Federal. Suas palavras essencialmente resumiram a abordagem do governo Bolsonaro à política ambiental [6].
Infelizmente, “passando a boiada” continua altamente relevante, apesar dos esforços do governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, iniciados em 2023. O governo Lula está em processo de restauração do robusto arcabouço legal brasileiro de proteção ambiental, estabelecido há mais de 40 anos e fundamentado na Constituição Federal como um direito fundamental. O governo Lula retomou iniciativas como o Plano de Ação para Prevenção e Controle do Desmatamento na Amazônia Legal (PPCDAm) por meio do Decreto 11.367, de 1º de janeiro de 2023, e reafirmou compromissos internacionais com a criação do Comitê Interministerial sobre Mudanças Climáticas (Decreto nº 11.550, de 5 de junho de 2023) e o fortalecimento do Acordo de Paris.
A influência de “passando a boiada” é generalizada no Congresso Nacional, onde, em 2025, 59% das cadeiras na Câmara dos Deputados e 62% das cadeiras no Senado são controladas por “ruralistas” na Frente Parlamentar da Agricultura e Pecuária [7], que historicamente representa os interesses dos grandes proprietários de terras. Este grupo tem dado apoio significativo às políticas públicas implementadas durante o governo Jair Bolsonaro para desmantelar as proteções ambientais, que tiveram impactos duradouros. Um exemplo notável é o enfraquecimento de órgãos ambientais como o IBAMA (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis) e o ICMBio (Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade) [8]. Quase nenhum novo funcionário ambiental foi contratado durante o governo Bolsonaro, e o orçamento para inspeções ambientais foi drasticamente cortado, levando a uma redução significativa em multas e embargos de propriedade por crimes ambientais [9]. Isso também prejudicou a credibilidade dos órgãos ambientais, fomentando a noção de que a proteção ambiental atrapalha o desenvolvimento econômico.
Bolsonaro continuou a se orgulhar desse desmantelamento quase dois anos após sua presidência. Em um discurso público em setembro de 2024, ele se gabou: “Revogamos mais de 5.000 normas ambientais e não houve contratações públicas para o IBAMA ou o ICMBio”. Lula, o atual presidente, ainda enfrenta o desafio de restaurar totalmente o setor de políticas ambientais após mais de dois anos no cargo, e a restauração não está progredindo no ritmo necessário. [10]
A foto que abre este artigo mostra um macaco-aranha-de-cara-branca (Ateles marginatus) no Parque Estadual Cristalino II (Foto: Marcos Amend).
Notas
[1] Rodrigues, J.R., T. Sobral-Souza, T.S.P. Toma, A.F. Guimaraes, T.J. Izzo, M. Penhacek, F.B. Rodrigues, N. Szinwelski, A. Kempner, W.S. Bochenski, M.O.C. Neyra, H. Streit, G.E. Overbeck, F.O. Roque, G.W. Fernandes, C.C. Pereira & P.M. Fearnside. 2025. “Passando a boiada”: Degazettement and downsizing threaten protected areas in the Brazilian Amazon. Perspectives in Ecology and Conservation 23(1): 1-5.
[2] Azevedo, K., Alves-Martins, F., Martinez-Arribas, J., Correia, R.A., Malhado, A.C.M., Ladle, R., 2024. Assessing the political vulnerability of National Parks in sub-Saharan Africa using data on digital trends and engagement. People and Nature 6(6): 2449-2462.
[3] Visconti, P., Butchart, S.H.M., Brooks, T.M., Langhammer, P.F., Marnewick, D., Vergara, S., Yanosky, A., Watson, J.E.M., 2019. Protected area targets post-2020. Science 364: 239–241.
[4] Loos, J., 2021. Reconciling conservation and development in protected areas of the Global South. Basic and Applied Ecology 54: 108–118.
[5] Pack, S.M., Ferreira, M.N., Krithivasan, R., Murrow, J., Bernard, E., Mascia, M.B., 2016. Protected area downgrading, downsizing, and degazettement (PADDD) in the Amazon. Biological Conservation 197: 32–39.
[6] Figueira, J.E.C., Santos, F.R., Drumond, M.A., Massara, R.L., Ribeiro, M.C., Fernandes, G.W., 2021. We can’t breathe! the urgency for an ethical, sustainable socio-environmental policy for a downgrading Brazil.
[7] FPA (Frente Parlamentear Agropecuária), 2025. Todos os membros (site atualizado 03 de julho 2025).
[8] Duarte, R.G., Ferreira-Quilice, T., Assis, N.R., Machado, R.C., Oliveira, R.S.G., 2023. Transition to sustainability: assessing the challenges of the Brazilian environmental agenda and policy. Forest Policy and Economics 157: 103094.
[9] Giffoni Pinto, R., Malerba, J., 2022. (Anti) environmental policy in the United States and Brazil: a comparative analysis. Desenvolvimento e Meio Ambiente 60: 143–166.
[10] Esta série é uma tradução de Rodrigues, J.R., T. Sobral-Souza, T.S.P. Toma, A.F. Guimaraes, T.J. Izzo, M. Penhacek, F.B. Rodrigues, N. Szinwelski, A. Kempner, W.S. Bochenski, M.O.C. Neyra, H. Streit, G.E. Overbeck, F.O. Roque, G.W. Fernandes, C.C. Pereira & P.M. Fearnside. 2025. “Passando a boiada”: Degazettement and downsizing threaten protected areas in the Brazilian Amazon. Perspectives in Ecology and Conservation 23(1): 1-5. PMF agradece o Conselho Nacional do Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) Proc. 311103/2015-4, 06941/2022-0, Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Amazonas (FAPEAM) Proc. 22/07/24 a 22/07/29, e FINEP/Rede CLIMA Proc. 01.13.0353-00. DJR agradece ao CNPq por Apoio financeiro (Proc. 312407/2022-0 e 441228/2023-2).
Sobre os autores
Domingos de Jesus Rodrigues possui graduação em Ciências Biológicas e mestrado em Ecologia e Conservação pela Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, e tem doutorado em Biologia (Ecologia) pelo Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia. É professor Titular da Universidade Federal de Mato Grosso em Cuiabá. Suas pesquisas focam a biologia reprodutiva de anuros (sapos). É colaborador do Ministério do Meio Ambiente, Secretaria de Estado de Meio Ambiente do Estado de Mato Grosso, ICMBio, e a Polícia Federal.
Thadeu Sobral-Souza possui graduação em Ciências Biológicas pela Universidade Católica de Santos e mestrado e doutorado em Ecologia pela Universidade Estadual de Campinas. Atualmente é Professor Adjunto A do Departamento de Botânica e Ecologia da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT). Tem interesse nas áreas correlatas à macroecologia, filogeografia, biogeografia e biologia da conservação em ambientes tropicais.
Tiago Shizen Pacheco Toma possui graduação em Ciências Biológicas pela Universidade Federal de Viçosa e mestrado e doutorado e em Ecologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). É associado ao Departamento de Genética, Ecologia e Evolução da Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte. Participa de projetos de pesquisa em ecologia de comunidades que avaliam os efeitos de diferentes fatores em escala local e regional, com foco em insetos galhadores e sobre recuperação/restauração ecológica, definição de áreas prioritárias para conservação.
Aretha Franklin Guimaraes possui graduação em Ciências Biológicas, Mestrado em Engenharia Florestal e Doutorado em Botânica Aplicada pela Universidade Federal de Lavras. Atualmente é pós-doutoranda no Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia, Manaus, Amazonas. Atua na área de ecologia vegetal com foco em entender os padrões de distribuição e diversidade de solos, plantas e microrganismos em florestas tropicais da Amazônia brasileira. Colabora com as redes PPBio, INCT CENBAM, INCT Observatório da Biodiversidade e PELD PSAM com foco em bancos de dados (big data) de espécies da fauna e flora brasileiras.
Thiago Junqueira Izzo possui graduação em Ciências Biológicas pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho e mestrado e doutorado em Biologia (Ecologia) pelo Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia. Atualmente é professor Associado em Ecologia e Conservação da Biodiversidade na Universidade Federal de Mato Grosso, Cuiabá, MT. Tem experiência na área de Ecologia, com ênfase em Ecologia Evolutiva, atuando principalmente nos seguintes temas: mutualismos, Interações biológicas, Inseto-planta, comportamento e ecologia de comunidades e conservação da diversidade biológica.
Marcos Penhacek, possui graduação em Ciências Biológica pela Universidade do Estado de Mato Grosso-UNEMAT e em Química pela Universidade Federal de Mato Grosso-UFMT. Tem Mestrado e doutorado em Ecologia e Conservação da Biodiversidade pela UFMT Atualmente é Pós-doutorando no Instituto Nacional de Pesquisa da Amazônia INPA vinculado ao INCT da Biodiversidade Amazônica. É Pesquisador Associado do Instituto de Ciências Humanas e Social INCHS da UFMT. Trabalha atualmente com anfíbios da Amazônia.
Flávia Barbosa Rodrigues possui Graduação em Ciências Biológicas pela Universidade Estadual de Feira de Santana-UEFS, mestrado em Biologia de Fungos pela Universidade Federal de Pernambuco, e doutorado em Botânica pela Universidade Estadual de Feira de Santana. Atualmente é Professora associada I da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT-Sinop). Tem experiência na área de Micologia, com ênfase em Taxonomia de ascomicetos assexuais terrestres e aquáticos.
Neucir Szinwelski possui Graduação em Ciências Biológicas pela Faculdade União das Américas, mestrado em Biologia Animal e doutorado em Entomologia pela Universidade Federal de Viçosa É professor associado B na Universidade Estadual do Oeste do Paraná (Unioeste) em Cascavel, Paraná. Trabalha com taxonomia e ecologia de Orthoptera, modelagem ecológica, conservação da biodiversidade, impactos de atividades ilegais e atropelamentos sobre a fauna.
Afonso Kempner possui Licenciatura em Ciências Biológicas e Mestrado em Ecologia e Conservação da Biodiversidade pela Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT), Cuiabá. Atualmente é doutorando na mesma universidade.
Willian Schornobay Bochenski possui Graduação em Ciências Biológicas pela Universidade do Estado de Mato Grosso (UNEMAT) e mestrado em Ecologia e Conservação da Biodiversidade pela Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT). Atualmente é bolsista desenvolvendo pesquisas sobre diversidade e ecologia de formigas e dípteros no estado de Mato Grosso.
Milton Omar Cordova Neyra possui graduação em Ciências Biológicas pela Universidad Nacional Pedro Ruiz Gallo, Peru, mestrado em Biologia Vegetal pela Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS), e doutorado em Botânica pela Universidade de Brasília (UnB). Atualmente é pós-doutorado na UFMT Sinop e Pesquisador associado ao Herbário CNMT e NEBAM, UFMT Sinop. Tem experiência na área de Ecologia Aplicada, Ecologia de Interações, Ecologia Química e Ecologia Vegetal.
Helena Streit possui graduação em Ciências Biológicas e mestrado e doutorado em Ecologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Atualmente é pós-doutoranda no Centro de Investigaciones sobre Desertificación (CIDE), em Valência, Espanha. Desenvolva pesquisa sobre os fatores determinantes da organização das comunidades de plantas campestres na região Sudeste da América do Sul, em uma abordagem filogenética.
Gerhard Ernst Overbeck é Engenheiro em Arquitetura e Planejamento da Paisageme Doutor em Ciências Naturais pela Technische Universität München, Alemanha. Atualmente é Professor no Departamento de Botânica da UFRGS, atuando na área de Ecologia Vegetal Terrestre. Possui experiência profissional nas áreas de planejamento ambiental e de conservação da natureza.
Fabio de Oliveira Roque possui Graduação em Ciências Biológicas e Mestrado e Doutorado em Ecologia e Recursos Naturais pela Universidade Federal de São Carlos-UFSCAR. Atualmente é Professor Associado da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul e membro do Center for Tropical Environmental and Sustainability Science (TESS), James Cook University, Cairns, Austrália. É co-coordenador do Freshwater BON-Latin America e membro da coordenação do Programa Brasileiro de Pesquisa em Biodiversidade (PPBio).
Geraldo Wilson Fernandes é professor na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) em Belo Horizonte, MG e integrante do Centro de Conhecimento sobre Biodiversidade-Brasil. Ele possui graduação em ciências biológicas pela UFMG e mestrado e doutorado em ecologia pela Northern Arizona University, E.U.A. Foi professor visitante na Stanford University, a University of Alberta e a Universidad de Sevilla. É pesquisador 1A do CNPq e membro da Academia Brasileira de Ciências. Investiga o desaparecimento de abelhas e seu reflexo na polinização, produção de mel e própolis, e ele trabalha sobre vários temas na área de ecologia e meio ambiente.
Cássio Cardoso Pereira é doutorando em ecologia, conservação e manejo da vida silvestre na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). É mestre em ecologia pela Universidade Federal de São João del-Rei e graduado em Ciências Biológicas (Ênfase em Conservação da Biodiversidade) pela Universidade Federal de Viçosa. Atualmente é editor de área das revistas científicas Biotropica, Nature Conservation, e Neotropical Biology and Conservation. Para mais informações, acesse.
Philip Martin Fearnside é doutor pelo Departamento de Ecologia e Biologia Evolucionária da Universidade de Michigan (EUA) e pesquisador titular do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa), em Manaus (AM), onde vive desde 1978. É membro da Academia Brasileira de Ciências e pesquisador 1A de CNPq. Recebeu o Prêmio Nobel da Paz pelo Painel Intergovernamental para Mudanças Climáticas (IPCC), em 2007. Tem mais de 800 publicações científicas e mais de 750 textos de divulgação de sua autoria que estão disponíveis aqui.
As informações apresentadas neste post foram reproduzidas do Site Amazônia Real e são de total responsabilidade do autor.
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