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A Amazônia como cenário e não como sujeito

A Amazônia como cenário e não como sujeito


Belém (PA) – Produções recentes como Pssica, que estreou por esses dias na Netflix e Rio do Desejo (Sérgio Machado) reforçam uma tendência antiga do audiovisual brasileiro: a de olhar para a Amazônia como um espaço exótico, que serve de pano de fundo para narrativas deslocadas de sua realidade social e cultural. A floresta, os rios e as cidades são filmados, mas não narrados — tornam-se elementos de atmosfera, quase adereços. O resultado é uma ficção que parece grandiosa no cenário, mas rasa no conteúdo.

Pssica (baseada no excelente livro de Edyr Augusto) é a bola da vez nas discussões, muito por conta de tudo que a antecedeu e por uma entrevista de Fernando Meirelles, um dos produtores da série (a maior parte da direção cabe a seu filho, Quico Meirelles, no caso clássico de sobrenome que pesa na pulada de etapas). Na entrevista, o diretor de Cidade de Deus afirmava ‘que a Amazônia era a moda’ no audiovisual e que a produção comandada por ele deixara um legado no Pará. A última frase provocou uma reação de uma conselheira de cultura do estado, que enviou e-mail à produtora e à Netflix, cobrando um relatório sobre esse suposto legado.

Nas redes sociais, como é de se esperar, o alvoroço foi intenso. Muito por conta de vários relatos sobre graves problemas ocorridos entre a equipe que veio de São Paulo e a equipe local contratada. Mas, para além dos exageros de praxe que as redes digitais costumam causar em comentários e polêmicas, o tema é importante. Diria até que é vital para a cultura regional. E antes que nos esqueçamos: A palavra ‘psica’, com um ‘s’ apenas, é uma gíria amazônica que significa “fazer algo para dar azar”.  É usada para desejar má sorte a um oponente em jogos, como em um jogo de peteca. 

Voltemos.

O problema não é simplesmente o “olhar de fora”. É possível — e desejável — que olhares externos se aproximem da região. A questão está no modo como esse olhar se dá: geralmente orientado por códigos narrativos que não dialogam com a Amazônia, mas com uma tradição do cinema e da televisão centrada no eixo Rio-São Paulo. A dramaturgia, o ritmo, a caracterização de personagens, tudo parece transplantado, como se a Amazônia fosse apenas um estúdio a céu aberto. Em Pssica, parece que o roteiro simplesmente ‘copiou’ um estilo narrativo típico de Cidade de Deus e o jogasse nos rios que circundam Belém. Sai a favela. Entra a palafita ribeirinha. E pouco mais que isso.

Essa escolha estética e narrativa revela um deslocamento profundo: em vez de escutar o território, suas múltiplas vozes e contradições, a produção prefere impor sobre ele uma lente já pronta. Isso explica por que tantas vezes vemos a Amazônia reduzida a três clichês — a violência difusa e inexplicável, o erotismo do proibido e a natureza como força ameaçadora ou exótica, simplesmente. São imagens que seduzem pelo impacto, mas que pouco têm a ver com o cotidiano das populações que vivem entre rios, cidades e comunidades. Causou riso uma cena em que a personagem de Pssica sai de sua casa ribeirinha, para ir morar com uma tia e esta lhe avisa que ali, na cidade, não havia espaço para rede e que ela deveria dormir no sofá. Ou a personagem que diligentemente aparece em uma praça tomando açaí e conversando com a nova amiga. Preguiça de pesquisar ou um deixa pra lá que o exótico é isso mesmo?

O mais grave é que, ao optar por esse atalho, essas obras reforçam uma desigualdade histórica. A Amazônia continua a ser tratada como objeto, e não como sujeito. Ela aparece na tela, mas não fala. Suas populações são figurantes, raramente protagonistas. Quando falam, geralmente é em nome de uma narrativa externa, que já sabe de antemão o que quer dizer.

O cinema e a televisão brasileiros ainda não aprenderam a lidar com a Amazônia como um espaço de produção de pensamento, linguagem e estética. Há uma oralidade própria, uma relação específica com o tempo, com o deslocamento, com o imaginário e até com a noção de fronteira entre real e fantástico. Tudo isso poderia render novas formas narrativas, mas continua sendo deixado de lado em favor de uma dramaturgia que poderia se passar em qualquer outra região, bastando mudar o figurino e o cenário. Produções como Pureza (2022, dirigido por Renato Barbieri) e Manas (2024, dirigido por Marianna Brennand Fortes), até conseguem, nesse cenário, contrabalançar o olhar externo com um cuidado maior no respeito ao local, ao que é da região. Por isso, talvez, alcancem um olhar mais generoso do espectador local. Ainda assim, o desejável é que essas histórias sejam contadas a partir de um protagonismo de produtoras locais. Essa é a busca de nossos dias.

O que está em jogo é mais do que representação. É sobre quem tem (também) o direito de narrar. É sabido o quanto as empresas produtoras locais sofrem para levar adiante suas produções. Mas é notório também que grandes produtoras de fora costumam ter as portas abertas com muito mais facilidades junto aos entes governamentais, políticos e empresariais locais. É uma competição desigual. E isso sem esquecer que no eixo Rio-São Paulo as grandes produtoras de há muito lutam para acabar ou diminuir as cotas regionais para o audiovisual. Não se pode esquecer uma carta de uma entidade patronal de produtoras afirmando que ‘não se podia dar um avião para quem não sabe pilotar’ (leia-se os nortistas).

Enquanto a Amazônia for vista apenas como paisagem para consumo simbólico do Brasil urbano do Sul e do Sudeste, continuará a ser distorcida, enquadrada em um imaginário externo que pouco a compreende. O desafio está em romper esse ciclo e construir um audiovisual em que a região não seja apenas filmada, mas narrada a partir de dentro, como sujeito pleno de suas próprias histórias. Aos poucos isso começa a ser feito, mas o caminho ainda é longo e cheio de pedras pontiagudas.


A imagem que abre este artigo é de autoria de  @alinearruda, fotógrafa still da série Pssica (O2 Filmes e Netflix) .




As informações apresentadas neste post foram reproduzidas do Site Amazônia Real e são de total responsabilidade do autor.
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