O plano de “reconstruir” a rodovia BR-319 e abrir a vasta região Trans-Purus ao desmatamento avança inexoravelmente. Os três poderes do governo brasileiro – Executivo, Legislativo e Judiciário – atuam como os proverbiais cavalos do apocalipse nesse processo, apesar de muitos dos indivíduos envolvidos serem bem-intencionados ou, pelo menos, moralmente neutros.
O poder executivo
A burocracia brasileira avança constantemente em direção ao desastre ambiental representado pelos planos para a rodovia BR-319 (Manaus-Porto Velho) e suas estradas secundárias associadas. O Ministério dos Transportes cumpre sua função de propor e construir estradas para conectar o local A ao local B, deixando as consequências ambientais e sociais para outros resolverem. O IBAMA (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis), no Ministério do Meio Ambiente e Mudanças do Clima (MMA), verifica se todas as etapas necessárias do processo de licenciamento foram concluídas, como a realização de audiências públicas e a apresentação de um estudo de impacto ambiental que contém uma lista específica de tópicos dentro de uma área restrita ao redor da infraestrutura federal em questão. Uma vez que todos os itens tenham sido verificados, o projeto é aprovado, independentemente de quaisquer outras consequências que possa ter.
As cinco rodovias estaduais do Amazonas planejadas para se conectar à BR-319, incluindo a rodovia AM-366 de 574 km que abriria a região da Trans-Purus, são simplesmente ignoradas no processo de licenciamento federal que se concentra apenas na faixa de terra ao longo da própria rodovia federal. Ninguém pode dizer que as consequências totais do projeto são grandes demais e que ele não deve prosseguir. O Presidente Lula pode até desempenhar esse papel, mas vive em um “espaço de desinformação”, onde se cercou de pessoas que, com exceção da Ministra Marina Silva, do MMA, o alimentam com informações falsas, reforçando seu desejo de acreditar que os enormes projetos de desenvolvimento que ele defende terão apenas impactos ambientais mínimos [1]. Ele ainda não despertou para a crise climática, apesar de sua retórica [2].
O poder legislativo
Como em muitos países, a principal preocupação da maioria dos legisladores brasileiros é maximizar suas chances de reeleição. Para deputados federais e senadores, isso significa apoiar o que os eleitores em seus estados desejam, e para políticos do Amazonas, isso significa apoiar o projeto de reconstrução da BR-319. Após mais de duas décadas de desinformação constante, quase toda a população de Manaus quer a rodovia e não tem praticamente nenhuma ideia da escala de seus impactos. Um ciclo de retroalimentação positiva cria um círculo vicioso, onde quanto mais os políticos e grandes veículos de comunicação elogiam o projeto, mais a população o deseja e mais exageradas se tornam as alegações de seus benefícios [3].
Uma ferramenta importante para maximizar as chances de reeleição é a capacidade de direcionar fluxos de dinheiro para iniciativas populistas e para projetos visíveis aos eleitores por meio do sistema brasileiro de “emendas parlamentares” (dotações orçamentárias destinadas aos legisladores, que podem distribuir os fundos essencialmente como bem entenderem) [4]. O Congresso Nacional é dominado pelo bloco de votação “Centrão”, composto de oito político partidos (PP, Republicanos, PL, MDB, União Brasil, Podemos, PSD e PRD – antigos PTB e Patriota) [5]. Esses partidos não se distinguem por seu lugar em um espectro da esquerda para a direita, mas sim por serem abertamente transacionais, essencialmente vendendo seus votos em troca de emendas parlamentares ou outros benefícios, um fenômeno conhecido no Brasil como “fisiologismo” [5]. O bloco de votação Centrão se sobrepõe ao dos “ruralistas” (representantes de grandes proprietários de terras), que é coordenado pela Frente Parlamentar da Agropecuária, ou “FPA”. Juntos, eles detêm 77% das cadeiras na Câmara dos Deputados e 85% no Senado (Tabela 1). Esses blocos de votação foram responsáveis por muitos atos legislativos prejudiciais ao meio ambiente, o mais recente sendo o “PL da devastação” que desmantelaria o sistema de licenciamento ambiental do Brasil, a menos que um veto presidencial pudesse impedi-lo, apesar desses blocos de votação deterem muito mais do que os 60% de cada casa necessários para anular um veto [6].
a.) FPA [7] [03 de julho de 2025]
b.) Congresso Nacional [8] [03 de julho de 2025]
c.) Descontada a sobreposição.
O poder judiciário
Na esfera judicial, o Ministério Público, que foi criado pela Constituição Brasileira de 1988 para defender os direitos do povo, incluindo o direito a um “meio ambiente ecologicamente equilibrado”, e juízes nos vários níveis de tribunais podem emitir recomendações e decisões, como declarar embargos a projetos de infraestrutura até que critérios específicos sejam atendidos, apenas para tê-los anulados com base em uma “suspensão de segurança”. As suspensões de segurança foram criadas pela ditadura militar brasileira de 1964-1985 (Lei 4.348/1964), permitindo que qualquer decisão seja anulada se um único desembargador considerar que causaria “grave lesão à ordem, à saúde, à segurança e à economia públicas” [9]. Depois da Constituição Brasileira de 1988, essa competência foi ampliada para incluir o Ministério Público (Lei 8.437/1992) [10] e para impedir que qualquer recurso interrompa um projeto de desenvolvimento (Lei 12.016/2009) [11]. Não importa quantas leis, garantias constitucionais ou convenções internacionais tenham sido violadas, grandes projetos como a BR-319 podem simplesmente prosseguir se um desembargador amigável pode ser encontrado para emitir uma suspensão de segurança.
Os membros do Ministério Público e os juízes dos tribunais fazem seu trabalho apontando violações de leis e garantias constitucionais, mas estas são facilmente anuladas por desembargadores seletivos queinvocam as leis de segurança e suspensão. Talvez o exemplo mais dramático seja o caso da Usina Hidrelétrica de Belo Monte, onde mais de 20 processos foram movidos contra o projeto em nome dos povos Indígenas cujo direito à consulta sob a Convenção 169 da OIT [12] e a legislação brasileira (Lei 10.088/2019, anteriormente Lei 5.051/2004) [13, 14] foi flagrantemente violado. A maioria dos casos foi anulada por suspensões de segurança, mas um caso foi julgado a favor dos povos Indígenas por um tribunal federal (ver [15]), porém a decisão foi apelada ao Supremo Tribunal Federal pelo governo Dilma Rousseff, onde uma decisão “monocrática” do então presidente do tribunal permitiu que a construção da barragem prosseguisse enquanto se aguardava uma decisão sobre o mérito do caso [16-18]. Em 2022, uma decisão monocrática do atual presidente do tribunal abordou o mérito do caso, determinando que os povos Indígenas de fato tinham o direito à consulta sobre Belo Monte [19], mas a decisão deve ser ratificada pelo tribunal pleno [20]. Como a construção da barragem foi concluída em 2015, a decisão não tem efeito prático, e a barragem permanece hoje como um monumento ao fracasso das proteções legais do Brasil.
Uma suspensão de segurança já foi usada para anular decisões que atrasariam a aprovação da BR-319. As audiências públicas são uma parte necessária do processo de licenciamento e, no caso da BR-319, o Ministério Público Federal no Amazonas emitiu em 2021 uma “recomendação” formal ao IBAMA para adiar a realização das audiências públicas [21]. O presidente do IBAMA, naquela época durante o governo de Jair Bolsonaro, sentiu-se livre para simplesmente ignorar essa recomendação e agendou a audiência de qualquer maneira. Pouco antes da audiência, um tribunal em Manaus ordenou que ela fosse suspensa [22-24], mas poucas horas depois um desembargador em Brasília emitiu uma suspensão de segurança anulando a suspensão [25]. Ironicamente, a justificativa dada foi a necessidade da rodovia para transportar oxigênio até Manaus, um argumento que tem sido demonstrado ser falso [26].
A crise de oxigênio em Manaus foi usada tanto por políticos locais quanto pelo Ministério dos Transportes para pressionar pela aprovação da rodovia [27], e o Ministro da Infraestrutura (Tarcísio de Freitas, hoje governador de São Paulo) promoveu a rodovia despachando um comboio de caminhões para trazer oxigênio pela BR-319 no auge da estação chuvosa, resultando em um atraso previsível que custou muitas vidas em Manaus, visto que o transporte fluvial teria sido mais rápido [26]. Talvez tenha sido esse evento midiático que levou ao uso do oxigênio como desculpa para uma suspensão de segurança em vez do uso usual de supostos danos à economia, embora a BR-319 seja incomum por não ter uma justificativa econômica e por ser o único grande projeto de infraestrutura no Brasil sem o obrigatório estudo de viabilidade econômica (EVTEA) [28].
Em resumo, indivíduos em todos os poderes do governo são quase sempre bem-intencionados enquanto eles exercem suas funções em seus respectivos compartimentos. No caso da BR-319, o resultado dessa compartimentação de responsabilidades é um avanço constante em direção a um desastre ambiental devido à falha do sistema burocrático, denominada por Hannah Arendt [29] como a “banalidade do mal”.
A foto que abre este artigo mostra o início da BR-319 logo após a ponte sob o rio Madeira em Porto Velho(RO) (Foto: Alberto César Araújo/Amazônia Real/Arquivo).
Notas
[1] Fearnside, P.M. 2025. Clima e a destruição da Amazônia: O “espaço de desinformação” do presidente Lula será penetrado? Amazônia Real, 13 de maio de 2025.
[2] Fearnside, P.M. 2025. O Lula acordará para a crise climática? Amazônia Real.
[3] Fearnside, P.M. 2025. Rodovia BR-319: O novo “acordo” de licenciamento como porta de entrada para a destruição. Amazônia Real, 21 de julho de 2025.
[4] Vilani, R.M., P.M. Fearnside, C.J.S. Machado. 2025. O desafio da Autoridade Climática do Presidente Lula. Amazônia Real.
[5] Testa, G., L. Mesquita & B. Bolognesi. 2024. Do fisiologismo ao centro do poder: As reformas eleitorais e o centrão 2.0. Cadernos CRH 37: art. e024003.
[6] Fearnside, P.M. 2025. “PL da devastação” simboliza perigosa contradição entre discurso e prática na política ambiental brasileira. The Conversation – Brasil, 13 de junho de 2025.
[7] FPA (Frente Parlamentar da Agropecuária). 2025. Todos os membros – FPA.
[8] Congresso Nacional. 2025. Parlamentares em exercício.
[9] Brasil, PR (Presidência da República). 1964. Lei nº4.348, de 26 de junho de 1964. Estabelece normas processuais relativas a mandado de segurança. PR, Brasília, DF.
[10] Brasil, PR (Presidência da República). 1992. Lei nº8.437, de 30 de junho de 1992. Dispõe sobre a concessão de medidas cautelares contra atos do poder público e dá outras providências. PR, Brasília, DF.
[11] Brasil, PR (Presidência da República). 2009. Lei nº12.016, de 07 de agosto de 2009. Disciplina o mandado de segurança individual e coletivo e dá outras providências. PR, Brasília, DF.
[12] ILO (International Labour Organization).1989. C169 – Indigenous and Tribal Peoples Convention, 1989 (No. 169). ILO, Genebra, Suiça.
[13] Brasil, PR (Presidência da República). 2004. Decreto No 5.051, de 19 de abril de 2004, PR, Brasília, DF.
[14] Brasil, PR (Presidência da República). 2019. Decreto Nº 10.088, de 5 de novembro de 2019. PR, Brasília, DF.
[15] Silva, E.F. & A.M. Santos. 2017. O caso Belo Monte: Desenvolvimento humano de povos indígenas e tecnopolítica de geração de energia. Espaço Jurídico Journal of Law 18(1): 243-276.
[16] Britto, A. 2012. Medida Cautelar na Reclamação 14.404 Distrito Federal.
[17] Amazon Watch. 2012. Supreme Court judge overturns suspension of Belo Monte Dam. Amazon Watch, 29 de agosto de 2012.
[18] Bragança, D. 2012. Belo Monte: Supremo acata argumento econômico e libera obras. OEco, 28 August 2012.
[19] de Moraes, A. 2022. Recurso extraordinário 1.379.751 Pará. Supremo Tribunal Federal, Brasília, DF.
[20] MPF-PA (Ministério Público Federal no Pará). 2022. STF reconhece que o direito de consulta prévia dos povos indígenas afetados por Belo Monte foi violado.
[21] MPF-AM (Ministério Público Federal no Amazonas). 2021.PR-AM-00040501/2021. Inquérito Civil n° 1.13.000.001678/2009-42. Recomendação Legal N°11/2021, 5° Ofício/PR/AM/MPF. Procuradoria da República no Estado do Amazonas 5° 0ficio, Manaus. 03 de setembro de 2021.56 p.
[22] SJAM (Seção Judiciária do Amazonas). 2021. Autos: 1022245-88.2021.4.01.3200. Decisão. Poder Judiciário Federal, 7ª Vara Federal Ambiental e Agrária da SJAM, Manaus, AM. 27 de setembro de 2021.
[23] Fearnside, P.M. 2021. Audiências públicas BR-319: Um atentado aos interesses nacionais do Brasil e ao futuro da Amazônia. Amazônia Real, 28 de setembro de 2021.
[24] Fearnside, P.M. 2024. A BR-319 e o fantasma da ditadura-2: Suspensões de segurança. Amazônia Real, 17 de abril de 2024.
[25] TRF-1 (Tribunal Regional Federal da 1ª Região). 2021. Processo: 1035291-44.2021.4.01.0000 Processo Referência: 1022245-88.2021.4.01.3200. Classe: Suspensão de Segurança Cível (11556). Tribunal Regional Federal da 1ª Região, Brasília, DF.
[26] Ferrante, L. & P.M. Fearnside. 2023. Vidas sacrificadas na crise de oxigênio de Manaus para promover a BR-319. Amazônia Real.
[27] Fearnside, P.M., M.B.T. de Andrade & L. Ferrante. 2021. BR-319: Prefeito de Manaus aproveita crise de oxigênio para promover agenda anti-ambiental. Amazônia Real, 18 de janeiro de 2021.
[28] Fearnside, P.M. 2024. Impactos da rodovia BR-319 – 1: Inviabilidade econômica. Amazônia Real, 23 de abril de 2024.
[29] Arendt, H. 2013. Eichmann em Jerusalém: Um Relato sobre a Banalidade do Mal. Companhia das Letras, São Paulo, SP. 336 p.
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