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ToggleJornalistas da agência independente contam no maior congresso de jornalismo brasileiro como é cobrir a região a partir do seu próprio território e sempre priorizando as histórias dos povos tradicionais. Na imagem acima a cerimônia de homenageados (Foto: Alberto César Araújo/Amazônia Real).
Por Felipe Medeiros e Nicoly Ambrósio, da Amazônia Real
São Paulo (SP) – Na edição comemorativa do 20º Congresso Internacional da Abraji (Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo), encerrado no útimo domingo (13), a excelência do trabalho investigativo da Amazônia Real se fez presente. A começar pela homenagem que Kátia Brasil e Elaíze Farias receberam ao lado de outras referências do jornalismo brasileiro, como Dorrit Harazim, Míriam Leitão, Carlos Wagner, Fabiana Moraes, Rosental Calmon Alves e Angelina Nunes. E avançou com a participação de colaboradores, como as repórteres Nicoly Ambrosio e Hellen Lirtêz, e das próprias fundadoras da agência em concorridas discussões sobre o futuro da profissão e da cobertura jornalística na Amazônia.
Jornalistas reconhecidas pela trajetória exemplar e coragem em reportar as complexidades da região amazônica, Kátia e Elaíze não apenas inspiram, mas também se mostram figuras críticas e de referência nos debates que participaram. Na tarde da quinta-feira (10), durante a homenagem especial a 21 nomes históricos do jornalismo brasileiro, em cerimônia na Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM), em São Paulo, os convidados souberam que a Amazônia Real representou uma virada na forma de fazer jornalismo investigativo. “Quebramos paradigmas do jornalismo tradicional, colonial, que tem um legado eurocêntrico, ensinando e praticando novas formas de apuração. Defendemos ouvir principalmente as fontes locais”, disse Elaíze Farias.
Em sua fala durante a homenagem, Kátia Brasil destacou a importância de preservar o contato com os fatos e as pessoas nos territórios mais afastados. “Pode ser um desastre, um conflito, mas é você chegar primeiro naquele lugar – numa periferia, num bairro, na Amazônia, numa região em que você viaja três horas de avião teco-teco ou passa um dia inteiro de barco para chegar. Ou até cruza uma fronteira para ir a outro país, para pegar a notícia na origem, ouvindo aquelas pessoas pela primeira vez. Isso a gente não pode perder nunca”, recomendou.
A relevância de seu trabalho e de Elaíze Farias foi celebrada não apenas em discursos mas também no documentário Duas décadas de reconhecimento ao papel do jornalismo, lançado no congresso, que as perfilou ao lado de outros grandes nomes da profissão. Foram celebrados ainda o colaborador da agência Lúcio Flávio Pinto, Caco Barcellos, Elio Gaspari, Elvira Lobato, Jânio de Freitas, José Hamilton Ribeiro, Marcelo Beraba, Marcos Sá Corrêa e Zuenir Ventura e os homenageados in memoriam: Clóvis Rossi, Joel Silveira, Paulo Totti e Tim Lopes. O documentário foi dirigido e montado por Diego de Godoy, com roteiro de Jota Carmo, produção de Elvira Lobato e Maiá Menezes, e colaboração da jornalista Gabi Coelho.
“Sou uma repórter do invisível. O que me move é o inconformismo com a injustiça. Quero retratar aquilo que não está sendo falado. Na Amazônia, muitas histórias não são retratadas ou quando são retratadas, desaparecem assim que a repercussão passa”, lembrou Elaíze.
Ela também ressaltou os desafios enfrentados por mulheres jornalistas para ocupar espaços e fazer coberturas em áreas de risco. “Na redação, ninguém queria pagar uma viagem cara para cobrir o desmatamento. Eu fui questionar o editor por que só homens recebiam essas pautas. Perguntei: ‘É porque sou mulher?’ E disse: ‘Eu quero essa pauta, me mande para essa pauta’. Trago isso até hoje. Todo jornalista tem que ser um pouco briguento.”
Excelência em jornalismo investigativo
Além da atuação das fundadoras, a equipe da Amazônia Real também se destacou nos debates. Com a autoridade de quem cobre a região a partir do próprio território, a repórter Nicoly Ambrosio compartilhou no painel “Excelência em Jornalismo Investigativo”, na tarde do dia 11, os bastidores da reportagem “Carbono: vozes excluídas”. O material traz o resultado de uma investigação sobre os projetos de crédito de carbono na Reserva de Desenvolvimento Sustentável do Rio Negro, no Amazonas. O processo de pré-produção e apuração no local, além de medidas de segurança e a pós-produção do material foram apresentados no maior congresso de jornalistas do País.
Inédito, o painel busca reconhecer trabalhos jornalísticos que se destacam pela excelência, uma iniciativa da Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji) com a organização não governamental Transparência Internacional – Brasil. A seleção avaliou 135 reportagens e selecionou as 9 melhores. Nicoly explicou que a sua pauta surgiu após o governo do Amazonas lançar, em 2023, um edital que concedia a empresas privadas o direito de operar projetos de crédito de carbono em unidades de conservação, sem consultar, como se deve, às comunidades locais. “As lideranças não sabiam de nada. Os acordos já estavam assinados, mas ninguém foi ouvido”, contou.
Ao visitar o território, uma área de vasta biodiversidade entre os rios Negro e Solimões, marcada por conflitos fundiários, desmatamento, grilagem e pressão do turismo de luxo, Nicoly priorizou a escuta das vozes ribeirinhas. “Antes de escrever, é preciso aprender a ouvir”, disse, ressaltando ter feito o trabalho de campo acompanhada do editor de fotografia Alberto César Araújo. Ela destacou a força das mulheres do território, como Marlene Costa, liderança da comunidade Nossa Senhora do Perpétuo Socorro, que denunciou a exclusão das populações locais dos processos de decisão.
A cobertura da RDS do Rio Negro demandou uma operação cuidadosa de segurança e logística. “A gente tinha um protocolo rígido de segurança da Amazônia Real, com uso de Spot [rastreador via satélite], que mandava sinal a cada duas horas para alguém da redação”, explicou. Ela fez questão de destacar que o barqueiro contratado era um morador experiente da região, e que a equipe evita colocar em risco lideranças ameaçadas – um cuidado ético e de segurança necessário no jornalismo investigativo em territórios vulneráveis.
Outro ponto sensível que surgiu ao longo da apuração, segundo ela, foi a profunda desinformação sobre o que, de fato, é um projeto de crédito de carbono. Nicoly lembrou que uma liderança local acreditava se tratar de “uma empresa de gás carbônico que ia gerar empregos”. Segundo ela, essa confusão revela o quanto a comunicação entre governo, empresas e comunidades tem sido falha, além de reforçar o abismo entre decisões técnicas e a realidade de quem vive da floresta. “Essas pessoas vivem do rio, da mata, dos próprios modos de manejo. Não saber o que está sendo negociado sobre o território delas é extremamente grave”, alertou.
A repórter, que atua na agência desde que participou do Treinamento no Jornalismo Independente e Investigativo, em 2020, enfatizou que pautas como a da RDS do Rio Negro toca em temas estruturais de desigualdade, invisibilidade e violação de direitos. “A floresta é viva, mas também é habitada. E o jornalismo precisa lembrar disso”, concluiu. A reportagem “Carbono: Vozes Excluídas” venceu o Prêmio Megafone de Ativismo 2025 na categoria Reportagem de Mídia Independente.
Kátia Brembatti, presidente da Abraji, explicou que o projeto Mesas de Excelência em Jornalismo Investigativo surgiu como resposta a uma demanda antiga: “identificar reportagens que merecem ser apresentadas no congresso, mas que poderiam escapar pelos canais tradicionais de curadoria”. Segundo ela, essa primeira edição teve uma recepção excelente. “Eu vi cada um deles [trabalhos] e não tenho a menor dúvida de que pelo menos 70 poderiam estar no congresso”.
Crimes ambientais e emergência climática

A mesa em que Nicoly participou teve como tema “crimes ambientais e emergência climática” e reuniu também as séries de reportagens “Até a última gota: os impactos da exploração de petróleo na Amazônia”, da InfoAmazonia, e “Mudanças climáticas na Amazônia”, da Folha de S. Paulo. As três produções, feitas em diferentes regiões do bioma, evidenciaram como a Amazônia tem sido o epicentro de políticas predatórias, negligência ambiental e injustiça climática.
Com 17 anos de carreira, 15 deles dedicados à televisão, a repórter Ianara Garcia, da TV Centro-América, afiliada da Globo em Mato Grosso, ressaltou como os casos apresentados na mesa refletem realidades muito semelhantes às que cobre no pantanal e na Amazônia mato-grossense. “Até parece que estou vendo um filme passar na minha cabeça quando vejo as histórias dos colegas”, relatou. Para ela, o evento permite que o Brasil conheça territórios distantes dos grandes centros, mas vitais para o meio ambiente. Para Austin Christopher, relações públicas e mobilizador social, a mesa foi “muito inspiradora” e elogiou a atuação dos jornalistas que expõem o que está acontecendo com a Amazônia. “Sem essas pessoas, a gente não teria noção do que ainda precisa ser feito para lidar com a crise climática”, disse, acrescentando que esse tipo de informação ajuda a “despertar a consciência e impulsionar mudanças reais”.
Destaques no Congresso da Abraji

Na manhã de quinta-feira (10), a jornalista Hellen Lirtêz, colaboradora da Amazônia Real, mediou a mesa “Como cobrir feminicídios sem clichês e sensacionalismo?”. Com participação de Mariama Correia, editora da Agência Pública, e Raíssa França, fundadora da plataforma Eufêmea, o debate abordou a necessidade de uma cobertura mais sensível, ética e comprometida com as vítimas. As convidadas destacaram a importância de romper com narrativas que reforçam estigmas ou romantizam a violência, e defenderam um jornalismo investigativo que valorize o contexto, a escuta das mulheres e os direitos humanos como eixo central da apuração.
Para Hellen, que foi ao congresso como bolsista do projeto Defensores Ambientais da Abraji, é preciso desenhar práticas concretas que evitem a revitimização e ajudem a construir uma narrativa mais justa. A jornalista também anunciou o lançamento, no segundo semestre de 2025, de um livro escrito em parceria com o jornalista acreano Gabriel Verçosa e o Ministério Público do Acre. A obra, fruto de sua monografia, traz um panorama histórico e propõe diretrizes para melhorar a abordagem jornalística sobre feminicídios. “O jornalismo acaba justificando as atitudes do homem, enquanto a mulher vira um estereótipo. Isso precisa ser questionado”, concluiu.
No Brasil, quatro mulheres são vítimas de feminicídio diariamente, de acordo com o Mapa da Segurança Pública de 2025. Para a editora da Agência Pública, Mariama Correia, “esse é um tema urgente e ter a oportunidade de discutir melhores práticas jornalísticas em um congresso como o da Abraji é muito importante para que a gente possa produzir uma cobertura cada vez mais qualificada. Foi muito interessante ver o interesse das pessoas nesse tipo de debate, porque tivemos vagas esgotadas e a sala estava lotada”.
Na mesa “Como não cair em armadilhas de greenwashing?”, realizada na manhã de sexta-feira (11), Elaíze Farias participou de um debate ao lado de Cristiane Prizibisczki, repórter especial do site ((o))eco, Fred Santana, criador do site Vocativo e mediação de Elâine Jardim, jornalista e editora-chefe do Jornal Opção Tocantins. A discussão identificou como empresas e governos têm ampliado suas estratégias de “maquiagem verde”, um tipo de marketing que atua sob a fachada da responsabilidade ambiental, mas que na prática não adota políticas responsáveis com a natureza.
Elaíze alertou para os impactos do greenwashing, que afetam principalmente as populações tradicionais como indígenas e ribeirinhos, e são financiados por grandes corporações como Eneva, Vale e Potássio Brasil. Segundo ela, as empresas têm financiado projetos de jornalistas, de museus e até universidades para melhorar a imagem de projetos que causam degradação ambiental. “Estamos cercados de greenwashing e muitas vezes os jornalistas, seja estudante ou já formado, nem percebem. A estratégia se ampliou muito, se sofisticou, e não é praticada só pelas grandes corporações, mas também pelo governo, pelas estruturas de autoridade pública”, alertou.
Algumas horas mais tarde, a palestra “COP30: como transversalizar a cobertura climática nas redações?” mirou o grande evento mundial que ocorrerá entre 10 e 21 de novembro, em Belém. Kátia Brasil defendeu a necessidade de pautas plurais para dialogar com os temas da 30ª Conferência das Nações Unidas sobre as Mudanças Climáticas.
“Os assuntos até ganham visibilidade na grande mídia, mas de forma muito sazonal, apenas quando ocorrem eventos extremos, como enchentes ou queimadas. Mas e o dia a dia? Quem cobre isso?”, questionou ela. “Foi por isso que fundamos a Amazônia Real em 2013, para fazer uma cobertura diária, contínua, com repórteres locais ou com conexões profundas com os territórios, que possam chegar aos lugares onde essas situações acontecem de fato.”
Na mesa, mediada por Daniela Chiaretti, repórter especial do Valor Econômico, Kátia compartilhou as palavras-chave que norteiam sua atuação na cobertura jornalística: interdisciplinaridade, reintegração, reconexão, clima, socioambientalismo e novos futuros. “Que futuro a gente quer construir?”, provocou, não deixando a resposta no ar. “Porque a situação das florestas, das margens – de quem vive à margem – é cada vez mais crítica. E muitas vezes a gente se sente como esses ‘cachorros mortos’, lutando para furar bolhas e ser ouvido. É um esforço imenso”, concluiu ao lado de Maristela Crispim, editora-chefe da Eco Nordeste, e de Giovana Girardi, da Agência Pública.
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