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ToggleA “região das quatro partes”, Tawantinsuyu no original em quechua, era o nome do maior império das Américas, estendendo-se pelos territórios andinos desde o Chile, ao sul, até o Peru ao norte. Um império que abarcava montanhas, florestas tropicais, vales férteis e desertos nunca antes vistos pelos europeus, que só pisaram por lá no século XVI trazendo com eles armas, doenças e a cobiça pelos metais preciosos que terminaram por decretar a queda do povo que hoje chamamos de Incas.
Para unificar este vasto império, os Incas construíram, ao longo de vários séculos e parcialmente baseada na infraestrutura das populações que os antecederam, uma extensa rede de estradas para comunicação, comércio e defesa. Esses caminhos monumentais ligavam a costa do Pacífico às montanhas e à floresta além, atingindo sua expansão máxima no século XV, quando se espalhou por todo o comprimento e largura dos Andes.
Partes dos 30 mil quilômetros originais desse “Caminho Inca”, ou Qhapaq Ñan, foram reconhecidos em 2014 pela UNESCO como Patrimônio da Humanidade por serem um testemunho excepcional e único da civilização Inca e da riqueza cultural de uma região de natureza em muitos pontos imaculada no alto dos Andes.
Por conta das paisagens deslumbrantes, seu papel histórico e pelas centenas de sítios arqueológicos ao longo de seu trajeto, Qhapaq Ñan se tornou também um destino desejado pelos aficionados por trekking, em especial por aqueles que buscam trilhas de longo curso que levam dias para serem percorridas. Ela e o Caminho de Santiago de Compostela, com trechos na França e na Espanha, são as duas únicas trilhas de longo curso na lista da UNESCO, e, diferente de sua “irmã” europeia, sua gestão é compartilhada por todos os países que cruza.
“As dificuldades de gestão do patrimônio têm complexidades internas, locais. Agora imagine entre seis países! Foi muito importante no processo de construção da trilha, a contribuição do Ministério das Relações Exteriores do Peru e dos países da Argentina, Bolívia, Chile, Colômbia, Equador e Bolívia para trabalharem juntos”, explica o arqueólogo peruano Ricardo Chirinos, que colaborou com o projeto que apresentou a candidatura de Qhapaq Ñan para Patrimônio da Humanidade da Unesco e trabalha em escavações arqueológicas da trilha.
Segundo Chirinos, por se tratarem de países que tiveram guerras entre si ao longo da história, a união em prol de um passado comum e da preservação desse patrimônio é uma conquista política. “Concordar em trabalhar juntos foi um grande desafio. Mas foi conseguido e a cultura que une os países é importante”, diz.
Chirinos esteve no Rio de Janeiro na semana passada, à convite da Embaixada do Peru, para dar uma palestra sobre o trecho da trilha no Peru para estudantes de Arqueologia da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj). O objetivo, segundo o Cônsul Geral do Peru no Rio de Janeiro, Carlos Enrique Garcia Castillo, era apresentar para um público especializado, no caso, os estudantes de arqueologia, as descobertas arqueológicas no Peru ocorridas nos últimos 5 anos e que têm em comum a trilha que as ligam.
“Qhapaq Ñan é a expressão tangível do projeto político integrador dos Incas dos séculos XV e XVI. A construção dos caminhos dos Incas precisa ser vista dentro de uma percepção animista, uma percepção em que todo o ambiente natural tem vida. Então, ele tem um conhecimento muito especial, muito apurado dos povos andinos e também obviamente dos Incas, como uma síntese daquele processo de desenvolvimento andino que partiu de saber compartilhar, de saber negociar com entidades do meio ambiente não humano. As montanhas, os lagos, os mares, os rios. E é bem conhecido [as estradas], tanto nas fontes históricas, como nas fontes que a arqueologia nos dá. E a partir dessa percepção, as estradas foram construídas”, explica Chirinos.
Antigamente, Qhapaq Ñan era a estrada Inca que ligava Cuzco a Machu Picchu. Hoje, o nome se refere aos 30 mil km que ligam o Peru à Argentina, passando por Colômbia, Equador, Chile e Bolívia.
Além de localidades conhecidas, como Macchu Picchu, cartão-postal peruano e da América do Sul, a trilha de longo curso passa por Huamachuco, Chavin, Soledade de Tambo, Kotosh e Huanucopampa.
“As estradas são orientadas. Estamos falando, na verdade, de um sistema rodoviário. Estima-se que existam mais de 40.000 quilômetros de estradas e mais de 10.000 sítios incas associados para contabilizar esse sistema rodoviário”, explica o arqueólogo.
Tanto os sítios arqueológicos, quanto as estradas que formam a trilha, estão articuladas com duas cartografias: uma cartografia terrestre e móvel, a paisagem, as montanhas, os rios e as lagoas; e outra celeste.
“A estrada passa por lugares que são sagrados dentro da visão Inca do mundo, da percepção do lugar. E eu fiz pesquisas nesse sentido para demonstrar que eles não usaram, por exemplo, caminhos mais curtos para poder chegar mais rápido em outro lugar. Não foram construídos para aquele objetivo. Passaram as vezes por lugares, do ponto de vista logístico, de mais difícil acesso, mas por um motivo especial, por ser uma zona sagrada, desde tempos muito antigos. Imbricavam estradas para articular com precisão todos aqueles lugares que são lugares de peregrinação, por exemplo, naquele percurso, naquela viagem”, explica.
“Então os edifícios, as estradas e os sítios têm essa dupla articulação com essa cartografia da paisagem. Por exemplo, construir a estrutura principal totalmente alinhada com as montanhas principais, mas também esses alinhamentos, alguns deles são orientações astronômicas, que marcam momentos importantes na regulação do calendário solar anual, que tem a ver com o momento do seu plantio, quando é cultivado, quando é colhido. Tudo isso tem esse tipo de articulação, os caminhos e os lugares”.
Proteção da paisagem
Manter o caminho dos Incas preservado também envolve a proteção da paisagem e, consequentemente, a conservação de ambientes naturais como as montanhas e vales que emolduram a trilha.
O grande protagonista da Trilha dos Incas hoje são as comunidades rurais, que fazem uso e mantêm preservadas essas estradas. “O caminho não está num museu, numa vitrine. Existem lugares onde o único meio de ligação continua sendo a trilha Inca. Assim, graças à manutenção, que é feita de forma tradicional, uma forma ainda anterior aos Incas. (…) Isso é feito desde os Incas, antes dos Incas, eles têm registros nas fontes históricas, e graças a essa manutenção o caminho continua até hoje e podemos vê-lo e percorrê-lo. Então, precisamente, nos envolvemos na dinâmica territorial dessas comunidades para contribuir ou apoiar aqueles tipos de atividades que fazem parte do sustento dessas famílias”.
A manutenção e preservação das estradas faz parte da trajetória das comunidades rurais. Mas nas cidades, a história é diferente. A história, natureza e os caminhos disputam espaço com os interesses da mineração e de obras urbanas, que destroem as antigas estradas e o que estiver ao seu redor.
“O maior impacto na Trilha Inca são as obras públicas, empreendimentos públicos que têm que construir, por exemplo, estradas. E precisamente as estradas Incas escolheram lugares melhores e tornaram mais fácil para os engenheiros modernos construir estradas nelas. E isso acontece em muitos lugares do Peru”, explica Chirinos, que afirma que muitas estradas foram perdidas nas últimas décadas por causa de obras públicas. “Muita coisa foi perdida. O Peru registrou 15 mil quilômetros de trilha Inca. Registrado. Deve haver muito mais. Até o momento são 15 mil quilômetros. E são 8 mil sítios associados a estradas em território peruano. Então você vai, você pode andar 20 quilômetros, 30 quilômetros e de repente 5 quilômetros desaparecem. Muitas vezes por fenômenos naturais, mas muitas vezes por questões de destruição de obras públicas ou privadas que se realizam”.
Educação patrimonial
Ricardo Chirinos considera que a educação patrimonial seja uma aliada poderosa na preservação dos caminhos Incas e seus sítios arqueológicos associados. Mais importante que a punição dada pela Justiça. “As próprias pessoas do meio ambiente precisam conhecer, ser empoderadas por esses lugares e cuidar deles. Porque o Estado na América Latina, no Peru, em Washington também, talvez no Brasil, não tem capacidade de estar em todos os lugares e sempre cuidando dos lugares, certo? [o cuidado] Tem que partir das pessoas”, diz.
As informações apresentadas neste post foram reproduzidas do Site O Eco e são de total responsabilidade do autor.
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