Estudos da Rede de Observatórios da Segurança revelam o avanço da violência policial no Amazonas sobre a população de jovens periféricos, negros e indígenas. A realidade brutal expõe o impacto do racismo estrutural e a negligência do estado. Na foto acima, ato ‘Vidas Negras e Indígenas Importam’ na Bola do Jorge Teixeira, em Manaus (Foto: Juliana Pesqueira/07/06/2020).
Manaus (AM) – Aldemira Winholt não se esquecerá do dia em que perdeu o filho, Marco Aurélio Winholt Castro, de 20 anos. No dia 6 de outubro de 2023, Marco foi assassinado pela Polícia Militar do Amazonas na comunidade Raio de Sol, no bairro Cidade Nova, zona norte de Manaus. A morte de Marco, que cursava Relações Públicas na Universidade Federal do Amazonas (UFAM), é mais um caso emblemático que expõe a realidade da violência policial no Amazonas.
“Meu filho era um jovem trabalhador e universitário. Durante o dia estudava, no final de semana trabalhava, e uma vez ou outra ele precisava se divertir. Os jovens não têm mais direito de se divertir, só porque estão na periferia? Os jovens da periferia não são bem vistos. Primeiro eles atiram, e depois eles perguntam quem era você”, manifestou a mãe do jovem Marco Aurélio.
O universitário saiu com amigos para assistir a uma luta de UFC, mas não voltou para casa. Segundo a sua mãe, ele foi baleado nas costas por policiais militares. Na época do crime, a PM informou em nota que os agentes foram ao local depois de receberem uma denúncia de que “homens armados estavam entrando em residências e ameaçando moradores”. De acordo com a polícia, os suspeitos fugiram quando perceberam a presença dos policiais.
Inicialmente, a PM afirmou que Marco Aurélio já havia sido encontrado baleado no local e que foi socorrido e levado ao Hospital e Pronto-Socorro João Lúcio, na zona leste de Manaus.
A versão foi contestada pela família e por testemunhas da comunidade, que relataram que os disparos partiram diretamente dos policiais em serviço, durante uma perseguição no bairro. Ele foi levado ao Hospital e Pronto-Socorro Platão Araújo, onde faleceu. “Deram uma versão de que houve uma operação policial e não era nada disso. Eram dois policiais na viatura, eles estavam apenas fazendo a ronda comum”, explica Aldemira.
A mobilização do movimento estudantil e dos familiares pressionou a polícia a mudar de postura. Após protestos e repercussão nas redes sociais, a PM do Amazonas anunciou o afastamento dos policiais envolvidos na ação. Os agentes Miqueias Costa de Souza, 38 anos, e Augusto Albuquerque da Silva, 50 anos, foram denunciados pelo Ministério Público do Amazonas por envolvimento na morte de Marco Aurélio.
Mais de um ano depois, a violência da morte de Marco ainda revolta a família. Eles pedem por justiça e punição dos acusados. “Estamos aguardando a decisão do juiz. Os policiais estão afastados, mas não foram punidos de fato. Já era para ter sido exonerados pela corporação, isso ainda não aconteceu. Estamos aguardando que eles vão a júri popular e esperamos que essa justiça seja feita”.
A família do jovem também quer que o Estado seja punido pelo crime. “Nós vamos entrar com processo contra o Estado porque eram agentes públicos. Vão ter que arcar sim com as consequências deles”, enfatizou Aldemira.
Um padrão de violência institucional
O caso do universitário Marco Aurélio não é isolado. No Amazonas, jovens como ele são frequentemente alvos de operações policiais violentas. O perfil das vítimas da violência policial segue um padrão: homens jovens, negros ou indígenas, vivendo em bairros periféricos.
Segundo o estudo “Pele Alvo: Mortes Que Revelam Um Padrão”, da Rede de Observatórios da Segurança, 92,6% das pessoas mortas em decorrência de intervenção policial no Amazonas em 2023 eram negras e pardas. Foram, em média, 59 mortos. A juventude é a parcela mais afetada por essa violência, considerando que 69,5% das vítimas têm entre 12 e 29 anos.
Os dados do boletim, obtidos por meio da Lei de Acesso à Informação (LAI) junto às Secretarias de Segurança Pública e órgãos correlatos, revelaram que 4.025 pessoas foram mortas por policiais em todo o Brasil em 2023. As informações sobre raça e cor estavam disponíveis em apenas 3.169 desses casos, apontando que 2.782 vítimas eram negras, o equivalente a 87,8%.
Segundo Tayná Boaes, cientista social e pesquisadora do Observatório da Segurança Amazonas, jovens negros e indígenas são os principais alvos de abordagens policiais truculentas, com tendência em desconsiderar, deslegitimar e desumanizar essa população.
“Ser jovem de periferia é, recorrentemente, negado pelas forças de segurança como critério de seleção, mas devemos pensar também nos fatores mais subjetivos e simbólicos. Pensar que a maioria das vítimas são jovens não brancos e de periferia não é uma coincidência, nem a propagação desse comportamento ao longo do tempo, partindo de uma abordagem justificada pela guerra às drogas e pela diminuição da violência. Isso existe porque o racismo é um dispositivo muito eficiente; quanto mais o tempo passa, mais ele adquire novas formas para se perpetuar”, explicou.
O contexto amazônico para além das áreas periféricas, abrangendo também as comunidades ribeirinhas, influencia o padrão de violência policial. De acordo com o pesquisador Fábio Candotti, que colaborou com o estudo do Observatório, as polícias no Amazonas raramente atuam em operações contra jovens portando armas de guerra, em meio a tiroteios.
Um dado que chamou a atenção dos pesquisadores foi a quantidade de mortes decorrentes de intervenção policial em Rio Preto da Eva, município que fica a 138 quilômetros de Manaus.
O município tem cerca de 25 mil habitantes, menos de 1% da população do estado, mas concentra 15% das mortes cometidas por policiais no Amazonas. Contrariando a narrativa dominante dos territórios amazônicos cortados pelas fronteiras do tráfico, Rio Preto da Eva não está localizado na calha dos grandes rios e, portanto, fica fora da rota do tráfico de drogas.
Por ser uma cidade particularmente próxima de Manaus, Rio Preto da Eva é influenciada pelo crime e pelo tráfico presente em contexto urbano. A cidade fica a apenas uma hora de viagem da capital, com acesso pela estrada AM-10.
O mesmo acontece em municípios como Iranduba.
“Nas periferias, dependendo como as polícias chegam, os jovens, com ou sem envolvimento com o crime, costumam se esconder, porque sabem que podem ser alvos de abordagens violentas. Não é por acaso que, segundo dados da própria Secretaria de Segurança Pública, apenas 1 policial em serviço morreu em situação de ‘confronto’ em 2023”, pontuou Candotti.
Apagamento indígena
A violência policial também atinge pessoas indígenas no Amazonas, mas a designação racial “parda” nos censos e nas bases de dados mascara essa realidade, além de ser insuficiente para entender a realidade étnico-racial do estado. Grande parte da população do Amazonas, mesmo sem se identificar como indígena, optando por se descrever como parda, tem sua etnicidade originária deste grupo, o que nem sempre é distinguido nos levantamentos do IBGE.
Em 2023, quase metade das mortes causadas por agentes de segurança no Amazonas aconteceu em Manaus (45,8%). Dessas vítimas, 74% eram negras. Mas em um contexto onde 12,45% da população geral do Amazonas se autodeclara indígena, de acordo com o Censo 2022, o dado racial esconde que muitas pessoas indígenas têm suas identidades apagadas nos registros oficiais, o que limita a formulação de políticas de segurança pública específicas para essa população.
O jornalista Pedro Tukano, coordenador do coletivo de indígenas LGBTQIAPN+ Miriã Mahsã e liderança do movimento de juventude indígena do Amazonas, analisa que o apagamento étnico e a violência perpassam a pessoa indígena em contexto urbano e dentro dos territórios.
Pedro explica o contraste. Enquanto a juventude indígena de contexto urbano sofre violência policial, é encarcerada e não possui assistência jurídica, dentro dos territórios indígenas, os jovens encontram um espaço de vulnerabilidade socioambiental, principalmente vivendo em comunidades que estão em regiões de fronteira ou que são regiões de tráfico e transporte de drogas.
“A questão da violência policial sobre os corpos indígenas, principalmente da juventude, passa muito despercebida pelo fato de não haver informações e dados em relação a essa realidade. A gente acaba não sendo favorecido por várias políticas públicas, é bem difícil enquanto movimento conseguir dados para realizar ações em busca de políticas públicas que amparem essas pessoas”, disse.
Outro aspecto que corrobora com o apagamento de identidades indígenas é que essas mortes decorrentes de violência policial não são noticiadas em massa, como a chacina policial em Tabatinga, que em 2021 vitimou 7 pessoas. As vítimas eram jovens homens negros e indígenas.
Em agosto de 2020, uma operação policial deflagrada pela Secretaria de Segurança Pública do Amazonas, na região do rio Abacaxis, em Nova Olinda do Norte, resultou na morte de dois indígenas Munduruku e quatro ribeirinhos, além de diversos relatos de torturas e violações de direitos humanos na região. O caso é conhecido como “Massacre do rio Abacaxis” e entidades sociais o classificam como uma operação de extermínio.
“Imaginem se toda semana sair na imprensa que um policial matou um jovem, negro, indígena e que a história da situação seja contada em detalhes? Foram 59 mortos. Na média, é mais de um caso por semana”, alertou o pesquisador Fábio Candotti.
Genocídio nas periferias
Francy Junior, historiadora e ativista ecofeminista do Movimento das Mulheres Negras da Floresta – Dandara, observa que as altas taxas de vitimização de pessoas negras, especialmente os jovens, é um reflexo direto de práticas de segurança pública que operam com base em estereótipos raciais enraizados na sociedade. A vulnerabilidade social é confundida com periculosidade nas periferias amazonenses.
Em outubro de 2019, 17 pessoas foram assassinadas pela polícia no bairro Crespo, periferia da zona sul de Manaus. As vítimas tinham entre 14 e 28 anos. Embora o inquérito da Polícia Civil tenha negado a possibilidade de uma chacina, o Ministério Público do Estado do Amazonas relatou que as vítimas não apresentavam sinais de pólvora nas mãos, os tiros foram descritos como “precisos, certeiros e fatais”, disparados à noite em um local sem iluminação elétrica. Além disso, nenhuma pessoa foi presa, nenhum policial ficou ferido, e os corpos foram removidos antes da realização da perícia.
O racismo estrutural molda o comportamento das forças de segurança no estado, por meio da associação histórica de juventudes periféricas com criminalidade, usada como justificativa para abordagens violentas. “A presença de jovens negros no espaço público é frequentemente interpretada como uma ‘ameaça’. Ameaça para quem?”, questiona Francy Junior.
Para a ativista, a formação dos agentes de segurança não prepara para atuar de maneira imparcial e as abordagens policiais acabam reforçando preconceitos, especialmente em áreas periféricas onde há predominância de população negra e parda.
“A juventude negra no Amazonas, especialmente nas periferias, enfrenta altas taxas de pobreza, desemprego, falta de direitos básicos, cultura e exclusão social, o que intensifica sua exposição à violência policial. A criminalização da pobreza faz com que os jovens negros sejam observados e monitorados como ‘alvos preferenciais’ nas políticas de segurança pública, com consequências fatais”, diz.
Segundo a pesquisadora Tayná Boaes, as justificativas mais comumente usadas pelas forças policiais para legitimar essas ações violentas, são atribuídas às disputas entre facções criminosas, ao tráfico de drogas e aos conflitos socioambientais.
“A região é, por vezes, associada ao tráfico de entorpecentes devido à sua característica transfronteiriça e à proximidade com rotas fluviais de escoamento de drogas. No entanto, essas explicações nem sempre ajudam a compreender adequadamente a realidade local. Isso sugere que as análises sobre o interior muitas vezes caem em generalizações que não refletem as dinâmicas específicas de cada território”, disse.
Marcas profundas
O impacto psicológico e social da violência policial sobre as famílias e comunidades de áreas de periferia é devastador. A relação das comunidades com as forças de segurança é marcada pela desconfiança e pelo medo, criando uma barreira entre o estado e a população, que se sente marginalizada e desprotegida.
Os movimentos de familiares de vítimas de violência policial chamam isso de “terrorismo de Estado”. Não por acaso, o principal movimento social do Brasil nesse campo é a Rede Nacional de Mães e Familiares de Vítimas do Terrorismo de Estado. Os pesquisadores do Observatório da Segurança Amazonas apontam que a atuação policial nas periferias segue uma política de terror, de imposição de medos profundos que provocam traumas, sobretudo em crianças, jovens e mulheres.
“A violência policial cria um trauma coletivo entre os membros das comunidades, que passam a viver em um estado de alerta constante, temendo represálias ou novas ações policiais violentas. Esse trauma pode se manifestar em forma de ansiedade, depressão, síndrome do pânico e transtorno de estresse pós-traumático”, complementa Francy Junior.
Para Aldemira Winholt, mãe de Marco Aurélio, a violência contra seu filho ainda é uma ferida aberta no cotidiano. “Meu mundo acabou. Eu não consegui mais trabalhar, não tive mais condições psicológicas para trabalhar faz um ano, desde o acontecido. A vida da nossa família acabou, os nossos sonhos e os sonhos dele [Marco Aurélio] acabaram. Eles [policiais] não sabem o mal que podem ocasionar na vida da família de um inocente”, lamenta.
Nas movimentações do coletivo “Enegrecendo a Ufam” pelas escolas públicas das regiões norte e leste de Manaus, os pesquisadores observam que o racismo aliado à violência policial é uma arma de interromper sonhos e trajetórias de jovens negros, perpetuando um ciclo de injustiça e marginalização.
O projeto de extensão da Universidade Federal do Amazonas se debruça em conhecer a luta negra no Brasil e na Amazônia, estudar sobre racismo estrutural e institucional, ancestralidade, necropolítica, genocídio, branquitude, colorismo e diáspora africana.
A ausência de fiscalização efetiva e justiça por parte do Estado agrava o cenário de negligência dos direitos de jovens negros. Para Vitória Maria Miranda, coordenadora e pesquisadora do projeto, isso alimenta um sistema que empurra muitos jovens negros para contextos de vulnerabilidade social, incluindo a criminalidade. Não por escolha, mas pela falta de oportunidades.
“O impacto psicológico e social da violência policial é severo. A violência policial, junto a violência da sociedade, não atinge só uma pessoa. Não tem como matar uma pessoa e não matar toda essa comunidade junto”, diz Miranda.
Políticas públicas ineficazes
Francy Junior destaca a falta de políticas públicas antirracistas voltadas para a segurança. Para reduzir a letalidade policial contra pessoas negras e jovens no Amazonas, é fundamental que se implemente treinamentos específicos que sensibilizem e humanizem as práticas policiais, como um Treinamento Contínuo em Direitos Humanos.
“É essencial que os policiais recebam treinamento regular sobre direitos humanos, com foco no respeito à vida e à dignidade das pessoas. As forças de segurança devem passar por formações antirracistas que descontruam preconceitos raciais e estereótipos enraizados. Isso inclui aulas e oficinas que abordem o impacto do racismo estrutural e enfatizem a importância de não associar criminalidade a cor, etnia ou origem socioeconômica”, diz.
Outra demanda é pelo uso das câmeras corporais em policiais, ferramentas eficazes para monitorar a conduta policial e garantir responsabilidade. Em São Paulo, dados divulgados pela Fundação Getúlio Vargas (FGV) destacaram a eficácia das câmeras corporais na redução de mortes decorrentes de intervenção policial.
No Amazonas, porém, ainda existe resistência à adoção de equipamentos de controle da letalidade policial. Para a Secretaria de Segurança Pública do estado, as câmeras policiais não são consideradas uma prioridade.
A pesquisadora Tayná Boaes reforça o uso das câmeras corporais como um meio de redução da letalidade da violência policial. “São necessários incentivos que façam com que essas melhorias sejam adotadas e perpetuadas ao longo do tempo, sem oscilar com a mudança de governo”, afirma.
Resistência da juventude
Atividade realizada pelo Movimento Nepal Vive no bairro Cidade Nova, em Manaus (foto: Samuel / Redes Sociais)
Apesar do cenário violento para os jovens negros e indígenas no Amazonas, movimentos sociais de juventude periférica têm se mobilizado para dar visibilidade a essas pessoas e pressionar por mudanças sociais. O coletivo de pesquisa “Enegrecendo a Ufam”, que contribui para o fortalecimento das políticas de ações afirmativas e proteção dos direitos das pessoas negras a acessarem as cotas raciais, se dedica em não apenas discutir este tema, mas também despertar inspiração e perspectiva.
“A maioria dos membros do projeto cresceram e vieram de bairros periféricos. A gente mostra para os jovens nas escolas públicas que estar na faculdade não é uma coisa distante, que a gente só vê na televisão. Esse protagonismo para essas crianças é muito necessário”, disse Vitória Maria Miranda.
Outros coletivos do movimento negro e periférico que atuam em diversas frentes, são os projetos Crianças do Guetto e Movimento Nepal Vive, situados em periferias da zona sul e norte de Manaus. Todos com o objetivo comum de resgatar o ócio criativo e o protagonismo da juventude negra. O “ócio” é o tempo de qualidade: lazer, relaxamento, expressão artística e momentos que permitem desenvolvimento pessoal e comunitário.
Para Vitória Miranda, esses coletivos são ferramentas para que jovens negros possam se enxergar em lugares de poder e realização. Na área da literatura, ela cita Aritana Tibira com seu livro de contos marginais “Dejetos I”, onde a escritora manauara fala de violência policial.
“Ver uma pessoa negra escrevendo um conto sobre a sua realidade periférica inspira qualquer um. Quem diria que minha realidade poderia ser algo tão bonito, como a literatura? Eu acredito que o movimento negro atua pelo protagonismo da juventude negra”, manifesta.
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