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Fumaça na Amazônia: os impactos na saúde revelados por pesquisadora

Fumaça na Amazônia: os impactos na saúde revelados por pesquisadora

A médica Sandra Hacon, da Fiocruz, explica os efeitos devastadores da fumaça das queimadas na Amazônia e alerta para a crise ambiental que atinge tanto humanos quanto animais. Na imagem acima, fumaça ao longo da BR-163,, no sudoeste do Pará (Foto: Alberto César Araújo/Amazônia Real).


Manaus (AM) – Para quem vive nas áreas mais isoladas da Amazônia, a fumaça não é apenas um problema de ar. Ela está presente nos rios e na pouca água da chuva que ainda cai durante a estiagem. Dissipada temporariamente nas capitais da Amazônia quando chove, logo retorna com o cheiro e a neblina. A Amazônia Legal, somente em 2024, já conta com 221 mil focos de incêndio até 10 de outubro, 78% a mais que em 2023. Sandra Hacon, médica pesquisadora da Fiocruz, descreve e explica o impacto dessa realidade em entrevista exclusiva.

A pesquisadora atua na área de saúde pública e epidemiologia na Escola Nacional de Saúde Pública (ENSP/Fiocruz). Conhecida por suas contribuições em estudos sobre doenças infecciosas, vigilância e políticas de saúde, ela se destaca em trabalhos relacionados à resposta a surtos e epidemias, como na pandemia de Covid-19.

Em 2021, Sandra coordenou um estudo que comprovou que temperaturas elevadas faz crescer o risco de doenças e de óbito por “estresse térmico”, principalmente em regiões do Norte e Nordeste do . Esse estudo considerou o aumento de temperatura global de 1,5 °C (2011-2040), 2 °C (2041-2070) e 4 °C (2071-2099), comparado aos níveis pré-industriais.

Quatro anos antes, Sandra, junto a outros pesquisadores, demonstrou pela primeira vez que as partículas de queimadas da Amazônia, além de causar inflamação e estresse oxidativo, podem danificar material genético e causar a morte de células pulmonares. Dependendo do nível do dano, uma célula pulmonar pode morrer ou se reproduzir de forma desordenada, o que leva ao câncer de pulmão.

Pesquisas conduzidas por Sandra, em 2009, já mostravam um efeito significativo da fumaça gerada pelas queimadas na Amazônia. Um estudo intitulado “Avaliação dos efeitos das queimadas para a saúde humana na área do arco do desmatamento: a construção de indicadores para a gestão integrada de saúde e ambiente”, com dados dos municípios de Alta Floresta e Tangará da Serra, em Mato Grosso, revelou uma redução da capacidade pulmonar de crianças e adolescentes em até 0,34 litros por minuto para cada aumento de 10PM 2,5 de material particulado fino. 

Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), o PM2,5 é capaz de penetrar profundamente nos pulmões e entrar na corrente sanguínea, causando impactos cardiovasculares, cerebrovasculares (AVC) e respiratórios. A pesquisa da Fiocruz mostrou também um aumento de 7% nas internações em unidades básicas de saúde para cada 10PM 2,5, além da presença de asma acima da média dos municípios brasileiros, com 21% e 26% nas respectivas cidades. 

Há pelo menos 30 anos, a fumaça não é uma novidade na Amazônia. Respirar a fumaça das queimadas tem sido como fumar de quatro a cinco cigarros por dia, até o dobro, dependendo do lugar onde o amazônida está. Sem escolha, alguns são obrigados a “fumar” 24 horas por dia em algumas capitais onde a fumaça não cessa desde julho. O cenário é de um “experimento natural” aplicado forçadamente às populações locais, conforme alertam os pesquisadores. 

O problema se mantém presente, e ainda com a máquina pública incapaz de enfrentar essa questão. “Nem todas as unidades de Saúde estão atentas, ainda que tenhamos uma situação ambiental crítica no País”, afirma Sandra. O problema é que algumas áreas estão em situação bem mais críticas do que outras. Segundo a pesquisadora, Mato Grosso, Amazonas e Rondônia estão entre as mais críticas da atualidade. Leia abaixo a entrevista de Sandra Hacon à Amazônia Real:

Dra. Sandra Hacon (Foto: Virgínia Damas/ ENSP-Fiocruz).

Amazônia Real – Quantos brasileiros estão internados por problemas relacionados às fumaças?

Sandra Hacon – Infelizmente, a gente não tem isso na ponta da língua. Dados de quem foi internado na semana passada, no mês passado, não estão no sistema. Precisaríamos ser mais ágeis para que a gente possa dar essa resposta. E por que não sabemos? Porque estes problemas que estão acontecendo, que chamamos de hotspot,  deveriam receber uma notificação compulsória. Como é que a gente sabe que foram 5 milhões de pessoas afetadas pela dengue na epidemia de abril a março? Porque é uma doença notificada. Todos os casos de indivíduos que vão ao hospital com sintomas, uma alergia muito forte, uma asma, bronquite, são notificados.  Não é uma situação trivial. A gente já trabalhou intensamente na Amazônia em situações de desmatamento e de fogo, e as respostas não são muito diferentes. 

Amazônia Real: É possível que a sociedade saiba o número de internações diárias por Síndrome Respiratória Aguda Grave (SRAG), como ocorria com o boletim de Covid-19?

Sandra: Sim, é possível. O Ministério da Saúde precisa dar essa ordem para as unidades de saúde. Acredito que se houver uma solicitação em massa da mídia por essa informação, o Ministério da Saúde irá fornecer.

Amazônia Real: O SUS está preparado e tem capacidade de lidar com o aumento de casos de doenças respiratórias durante os períodos de queimadas, tanto na parte de atendimento quanto na coleta de dados?

Sandra: O Ministério da Saúde não tem poder de mando sobre os municípios e Estados. Eles não podem simplesmente exigir algo de Manaus, por exemplo. Vale lembrar a atuação do governador Wilson Lima durante a pandemia de Covid-19, e ele foi reeleito.

Amazônia Real: A senhora acredita que pode haver omissão de dados por parte das Secretarias de Saúde? 

Sandra: É possível, em qualquer lugar do Brasil. Mas o impacto dos incêndios na saúde e na economia da Amazônia é tão visível que não vejo interesse em omitir os dados. O problema é que há poucos funcionários para analisar e publicar os dados. Precisamos de mais agilidade para ter acesso à informação. Vale ressaltar que alguns artigos internacionais têm usado inteligência artificial para estimar esses dados, já que não estão disponíveis oficialmente. Mesmo que o Estado tente omitir os dados, a inteligência artificial pode fornecer estimativas próximas da realidade.

Amazônia Real: Um estudo de 2009 em que é autora já apontava para um aumento de internações por conta da fumaça e de asma em crianças e adolescentes de 21% em Alta Floresta e 26% em Tangará da Serra (MT). A senhora esteve recentemente na região. O cenário atual é parecido com o visto há 15 anos?

Sandra: A fumaça já afetava a população e aumentava a mortalidade nos municípios, com níveis acima do recomendado pela OMS. Mas a intensidade não se compara com a de hoje. Realizamos diversos estudos em diferentes municípios, e eu, pessoalmente, nunca vivenciei uma situação tão crítica com a fumaça em Alta Floresta como a de agora. Em 2019, o número de internações de crianças menores de 5 anos em Mato Grosso dobrou. Infelizmente, não conseguimos analisar os dados em tempo real, somente após o período, constatando a duplicação das internações. E a situação atual? É preocupante, pois sabemos que nem todos os municípios conseguem uma fidelidade nesses números, então a gente não tem isso da noite para o dia.

Amazônia Real – Vocês também não conseguiram esses dados de internação até agora?

Sandra – A gente não tem isso ainda. Quem pode solicitar o aumento de internações semanalmente é o Ministério da Saúde, não nós [Fiocruz]. Não temos essa capacidade ou função de pedir para as Secretarias de Saúde para que mandem para nós. Eles não vão mandar. Eu comecei a fazer isso no Mato Grosso em janeiro, pedindo se poderiam mandar os boletins de internações dos anos anteriores. Ainda não conseguimos. As pessoas nos hospitais e nas unidades de saúde estão superocupadas com a demanda e os problemas aumentaram, enquanto o número de profissionais diminuiu.

Amazônia Real – Como analisa a ascensão do negacionismo na Amazônia e a relutância dos Estados em divulgar números? 

Sandra – Olha,  esses números de SRAG devem ter aumentado porque a quantidade de área queimada hoje é bem superior ao que acontecia em 2009. Além disso, temos a questão da seca intensa, que aumenta a inflamabilidade da floresta. Sabemos que há um fogo orquestrado no Brasil. Não é possível que várias áreas queimem ao mesmo tempo sem uma coordenação. Hoje temos temperaturas bem mais altas e a duração dessa exposição aumentou muito. Isso, combinado com uma seca intensa que reduz a umidade do solo, torna o cenário muito mais grave. A crise climática mudou o cenário meteorológico dos biomas. Então tem uma seca intensa, umidade relativa do ar muito baixa, e a gente sente isso, a gente fica com falta de ar falando, a garganta ardendo e por aí vai. Essas questões hoje são bem diferentes.  

Amazônia Real  – Há algum exemplo de doença surgindo por conta da fumaça?

Sandra – Uma pediatra de Alta Floresta me contou sobre vários casos de miocardite em crianças, e muitos estavam indo a óbito no seio da mãe mamando. Acho que isso está ligado à condição atmosférica. Naquela época, a fumaça era muito intensa no município e na Amazônia como um todo. A miocardite é uma inflamação do músculo do coração, mas investigar isso era impossível para ela por falta de equipamentos. Então, possivelmente, tivemos casos de miocardite relacionados à fumaça. Aumentou a miocardite na Amazônia hoje? Não sei, precisaria ser investigado.

Amazônia Real  – Além dos amazônidas respirarem a fumaça, muitos estão ingerindo essa água e tomando banho que contêm materiais particulados. É um ceário possível, não?

Sandra – É muito pior do que isso, os indígenas não têm água para beber. Eles estão tentando beber essa água com gosto terrível. É uma queixa incessante dos indígenas com quem trabalho no Xingu. A fuligem se deposita nos rios, na vegetação. Quanto maior a partícula, mais próxima da fonte ela se deposita; quanto menor, mais distante ela vai e mais profundamente atinge o nosso organismo.

Amazônia Real  – Não existem estudos sobre a ingestão de uma água da chuva contaminada por fuligem?  

Sandra – Nessa água vai ter material particulado, agrotóxicos, metais, hidrocarbonetos. A população pode beber essa água? Não, não deveria. Com a seca intensa, os rios em áreas indígenas estão secando. Como eles vão conseguir água? Água de carro pipa? Acho que não. Mesmo pesquisadores renomados não haviam pensado na questão da água. Eu mostrei para eles que o material particulado nos rios traz um gosto que os indígenas não conseguem beber, além de causar coceira na pele e problemas dermatológicos, já que usam a mesma água para tomar banho e beber.

Amazônia Real  – E a concentração dessas substâncias e materiais fica muito maior com o rio seco, né? 

Sandra – Sim, e não é só o ser humano, os animais também sofrem, muitos já estão morrendo por falta d’água. O problema da água é mais sério do que o do ar, porque a água acumulada se torna contaminada. O lençol freático é alimentado pela água da chuva e, sem chuva, a situação fica muito grave. O Ministério da Saúde reconhece esse problema. Eles recebem mensagens dos indígenas dizendo que não têm água para beber. E não são só os indígenas, são os quilombolas, os ribeirinhos, a população do interior que dependia dessa água. O resto dos rios é uma água de lama, contaminada biológica e quimicamente.

Amazônia Real – Como as partículas de fuligem se distribuem no organismo?Sandra Hacon – As partículas grandes ficam no nariz, onde temos pelinhos que filtram essas partículas. É por isso que às vezes sai muita secreção do nariz. As partículas menores, com diâmetro menor que 2,5 mícrons, conseguem alcançar os alvéolos pulmonares e a corrente sanguínea. Na corrente sanguínea, as nanopartículas se distribuem de forma sistêmica. Se a pessoa já tem um problema respiratório ou alergia, fica mais propensa a sofrer com essas partículas. A respiração e a inalação fazem com que essas partículas cheguem à corrente sanguínea. Crianças que passam mais tempo ao ar livre respiram mais dessas micropartículas. É por isso que a recomendação é não ficar ao ar livre e não fazer exercício, pois isso aumenta a capacidade pulmonar e a inalação de micropartículas.

Manaus viveu ao longo dos últimos meses sem ver o azul do céu, no horizonte só se via a fumaça (Foto: Juliana Pesqueira/ Amazônia Real).

As informações apresentadas neste post foram reproduzidas do Site Amazônia Real e são de total responsabilidade do autor.
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