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O cerrado brasileiro não pode ser uma zona de sacrifício para a Amazônia

O cerrado brasileiro não pode ser uma zona de sacrifício para a Amazônia


Por Cássio Cardoso Pereira, Stephannie Fernandes, Walisson Kenedy Siqueira, Daniel Negreiros, Geraldo Wilson Fernandes e Philip Martin Fearnside

Publicamos uma comunicação na prestigiada revista científica BioScience sobre a situação grave do Cerrado brasileiro, disponível em Inglês aqui. Este texto traz essas reflexões em Português.

Em 1975, Robert Goodland e Howard Irwin sugeriram que “há uma pressão crescente para explorar a Amazônia; grande parte desta pressão poderia e deveria ser desviada para a região contígua do Cerrado” [1], p. 37; ver também [2]). A ideia era que o Cerrado seria o que é conhecido no como um “boi de piranha”, ou o mito de que se pode jogar um boi em um riacho para ser devorada por piranhas, a fim de permitir que seu rebanho de gado atravesse o riacho com segurança a alguma distância. A subsequente devastação desenfreada da biodiversa Cerrado levaria Goodland a lamentar esta sugestão.

O governo de Luiz Inácio Lula da Silva que começou em 2023 reduziu as taxas de desmatamento na Amazônia após as desastrosas políticas ambientais do antecessor de Lula, Jair Bolsonaro, mas o desmatamento aumentou no Cerrado vizinho. A Amazônia brasileira, com área duas vezes maior que o Cerrado, perdeu 9.064 quilômetros quadrados (km2) em 2023, representando uma queda de 23% em relação ao ano anterior, enquanto o Cerrado teve um aumento de 3%, com desmatamento anual atingindo incríveis 11.011 km2 em 2023 [3]. As projeções para 2024 apontam perdas ainda maiores: 12 mil km2. Esta destruição assustadora no Cerrado se deve a uma legislação ambiental historicamente frouxa, a políticas governamentais que estimulam o agronegócio e à falta de apoio internacional para controles ambientais no Cerrado. Apenas 8% da área original do Cerrado é protegida em unidades de conservação [4], e o Código Florestal brasileiro exige que uma porcentagem menor de terras privadas sejam protegidas no Cerrado (35% em áreas adjacentes à Amazônia e 20% no resto do Cerrado) do que na Floresta Amazônica, onde 80% devem ser protegidos [5]. A soja e outros produtos oriundos de áreas desmatadas no Cerrado não deveriam ser aceitos pelos países que importam essas commodities.

As áreas de Cerrado que já foram desmatadas também têm impactos tremendos quando as pastagens são convertidas para soja. Esta transformação, que avança rapidamente, ocorre quando os pecuaristas vendem as suas terras aos plantadores de soja, após o que os pecuaristas se mudam para a Amazônia e investem os lucros em terras florestais baratas, onde desmatam áreas muito maiores do que as terras que venderam [6]. Cada hectare de pastagem convertido em soja tem, portanto, um impacto maior do que desmatar diretamente um hectare de Floresta Amazônica para a soja, mas a soja produzida escapa de restrições de importação como as planejadas na Europa.

A pressão sobre o Cerrado reflete, em parte, a falta mundial de interesse cultural e político na conservação de ecossistemas não florestais, como campos naturais e savanas [7]. Este desinteresse ameaça o Cerrado e outros ecossistemas não florestais ecologicamente valiosos, como a savana tropical Carpentaria, os bosques miombo da Africa, o chaparral e bosques da Califórnia, o Karoo suculento da Africa, a Região Florística do Sudoeste Australiano e a Província Florística do Cabo na África do Sul [8]. Além da substituição de ecossistemas não florestais por terras agrícolas e pastagens plantadas, as árvores plantadas são uma grande ameaça na África, e no Brasil é emblemático a “restauração” com árvores plantadas em áreas naturais de Cerrado que têm até 400 espécies de plantas predominantemente herbáceas por hectare no Parque Nacional da Chapada dos Veadeiros [9].

Os serviços ecossistêmicos do Cerrado têm imensa importância econômica, incluindo sua função como uma gigantesca torre de água para a América do Sul, armazenando e regulando a água doce para a bacia amazônica e além [4] As suas vastas reservas subterrâneas de carbono ajudam a mitigar as mudanças climáticas [7, 10]. A vegetação do Cerrado desempenha um papel vital na regulação do clima local, na prevenção da erosão do solo e sustentando paisagens pitorescas enquanto que atrai o turismo. É fundamental seu papel em sustentar as plantas através da polinização e fertilização. O valor econômico anual destes serviços é estimado em bilhões de dólares.

Argumentamos que a falta de assistência financeira internacional para o Cerrado é inaceitável e que a criação de um fundo para preservar este ecossistema é urgente. O Brasil também deve agir, pois o país está dando um tiro no pé ao negligenciar esse ecossistema. A perda do Cerrado terá repercussões na estabilidade da Amazônia, nos países vizinhos e no agronegócio, que depende da água do Cerrado. A falta de ação agora também desestabilizará outros ecossistemas através da manutenção dos recursos hídricos, energéticos e alimentares para a população e perturbará os padrões climáticos globais, bem como prejudicará as economias regionais. Ao reformular as leis para garantir uma protecção ambiental mais rigorosa e garantir contribuições financeiras, será possível alcançar a conservação da , a mitigação das mudanças climáticas e a manutenção dos recursos hídricos; veja a Figura 1. [11]

Figura 1. Leis mais rigorosas e incentivos financeiros são necessários para manter o Cerrado em pé (Fotografia: Cássio Cardoso Pereira).

A imagem que abre este artigo mostra um incêndio em área de cerrado próxima ao aeroporto de Brasília, 24/08/2024 (Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil).


Notas

[1] Goodland, R.J.A. & H.S. Irwin. 1975. Amazon Jungle: Green Hell to Red Desert? Elsevier, Amsterdam, Paises Baixos. 154 p.

[2] Goodland, R.J.A. & H.S. Irwin. 1977. Amazon forest and Cerrado: Development and conservation. pp. 21.4-233 In: G.T. Prance & T.S. Elias (eds.) Extinction is Forever. New York Botanical Garden, Bronx, NY, EUA. 437 p.

[3] INPE (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais). 2024. Dados PRODES 2022/2023, Deter até abril 2024 e Ações Estratégicas nos Biomas Amazônia, Pantanal e Cerrado. Ministério do e Mudança do Clima, 08 de maio de 2024.

[4] Pereira, C.C. & G.W. Fernandes. 2022. Cerrado conservation is key to the water crisis. Science 377: 270–270.

[5] Metzger, J.P., M.M.C. Bustamante, J. Ferreira, G.W. Fernandes, F. Librán-Embid, V.D. Pillar, P.R. Prist, R.R Rodrigues, I.C.G. Vieira & G.E. Overbeck. 2019. Why Brazil needs its Legal Reserves. Perspectives in Ecology and Conservation 17: 91–103.

[6] Fearnside, P.M. 2020. O Desmatamento da Amazônia Brasileira. Amazônia Real.

[7] Veldman, J.W., G.E. Overbeck, D. Negreiros, G. Mahy, S. Le Stradic, G.W. Fernandes, G. Durigan, E. Buisson, F.E. Putz & W.J. Bond. 2015. Where tree planting and forest expansion are bad for biodiversity and ecosystem services. BioScience 65: 1011–1018.

[8] Myers, N., R.A. Mittermeier, C.G. Mittermeier, G.A.B. da Fonseca & J. Kent. 2000. Biodiversity hotspots for conservation priorities. Nature 403: 853–858.

[9] Parr, C.L., M. te Beest & N. Sevens. 2024. Conflation of reforestation with restoration is widespread. Science 383: 698-701.

[10] Pereira, C.C., W. Kenedy-Siqueira, D. Negreiros, S. Fernandes, M. Barbosa, F.F. Goulart, S. Athayde, C. Wolf, I.J. Harrison, M.G. Betts, J.S. Powers, R. Dirzo, W.J. Ripple, P.M. Fearnside & G.W. Fernandes. 2024. Seis pontos-chave onde a biodiversidade pode melhorar a mitigação das mudanças climáticas. Amazônia Real, 27 de agosto de 2024.

[11] Esta é uma tradução de Pereira, C.C., W. Kenedy-Siqueira, D. Negreiros, S. Fernandes, G.W. Fernandes & P.M. Fearnside. 2024. Cerrado cannot be a sacrifice zone for the Amazon: Financial assistance and stricter laws are needed. BioScience 74(8): art. biae063. CCP agradece ao Conselho Nacional do Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) pela bolsa (bolsa nº 173800/2023–8). WKS agradece ao Projeto Peld-CRSC pelo apoio financeiro (bolsa nº CNPq-MCTI). O DN agradece ao CNPq pela bolsa (bolsa nº 151341/2023–0). A PMF agradece à Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (bolsa nº 2020/08916–8), à Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Amazonas (bolsa nº 0102016301000289/2021–33), à FINEP/Rede CLIMA ( bolsa nº 01.13.0353–00) e CNPq (312450/2021–4, 406941/2022–0). O GWF agradece ao Centro de Conhecimento em Biodiversidade do CNPq (bolsa nº 406757/2022–4), ao MCTI e à FAPEMIG pelo apoio financeiro.


Sobre os autores

Cássio Cardoso Pereira é doutorando em ecologia, conservação e manejo da vida silvestre na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). É mestre em ecologia pela Universidade Federal de São João del-Rei e graduado em Ciências Biológicas (Ênfase em Conservação da Biodiversidade) pela Universidade Federal de Viçosa. Atualmente é editor de área das revistas científicas Biotropica, Nature Conservation, e Neotropical Biology and Conservation. Para mais informações, acesse: https://cassiocardosopereira.com

Stephannie Fernandes é aluna de doutorado na Florida International University, Miami, FL, E.U.A. As suas pesquisas estão na área de ecologia política, visando descobrir como os arranjos institucionais e as diferentes partes interessadas se relacionam com o desenvolvimento e a conservação dos recursos hídricos.

Walisson Kenedy Siqueira possui graduação e mestrado ciências biológicas pela Universidade Estadual de Montes Claros em doutor em ecologia, manejo e conservação da vida silvestre pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). É integrante do Laboratório de Ecologia, Evolução e Biodiversidade da UFMG. Tem experiência na área ecologia de comunidades, interação inseto-planta e ecologia de sementes.

Daniel Negreiros possui graduação em ciências biológicas e mestrado e doutorado em ecologia conservação e manejo da vida silvestre pela Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, MG. Atualmente é pesquisador associado com bolsa de pós-doutorado na mesma universidade no Departamento de Genética, Ecologia e Evolução, Ecologia Evolutiva & Biodiversidade. Trabalha principalmente nas vegetações de campo rupestre, cerrado e mata atlântica.

Geraldo Wilson Fernandes é professor na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) em Belo Horizonte, MG e integrante do Centro de Conhecimento sobre Biodiversidade-Brasil. Ele possui graduação em ciências biológicas pela UFMG e mestrado e doutorado em ecologia pela Northern Arizona University, E.U.A. Foi professor visitante na Stanford University, a University of Alberta e a Universidad de Sevilla. É pesquisador 1A do CNPq e membro da Academia Brasileira de Ciências. Investiga o desaparecimento de abelhas e seu reflexo na polinização, produção de mel e própolis, e ele trabalha sobre vários temas na área de ecologia e meio ambiente.

Philip Martin Fearnside é doutor pelo Departamento de Ecologia e Biologia Evolucionária da Universidade de Michigan (EUA) e pesquisador titular do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa), em Manaus (AM), onde vive desde 1978. É pesquisador 1A de CNPq e membro da Academia Brasileira de Ciências. Recebeu o Prêmio Nobel da Paz pelo Painel Intergovernamental para Mudanças Climáticas (IPCC), em 2007. Tem mais de 800 publicações científicas e mais de 750 textos de divulgação de sua autoria que estão disponíveis aqui.

As informações apresentadas neste post foram reproduzidas do Site Amazônia Real e são de total responsabilidade do autor.
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