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O que são (e não são) Créditos de Biodiversidade?

O que são (e não são) Créditos de Biodiversidade?

Vivemos as crises entrelaçadas das mudanças climáticas e da perda da , facetas da Sexta Grande Extinção em andamento por obra e graça dos seres humanos. 

Enfrentar a mudança climática passa pela criação de mercados de carbono como o da União Europeia, que tem um mercado regulado e um sistema de cap and trade que foi fundamental para a rápida redução das emissões pelo continente. O tenta criar mecanismo similar desde o início do século, mas se comporta como um hamster na rodinha.

Enquanto isso, o setor privado não espera e cria instrumentos como o mercado voluntário de carbono. Projetos para supri-lo se consolidam e negócios impensáveis até pouco tempo, como a restauração florestal em larga escala, atraem capital privado.

Quando se trata de emissões, além da atmosfera ser uma só, é possível converter os diversos gases de efeito estufa em uma unidade comum – a tonelada de dióxido de carbono equivalente (CO2e). Isto permite que as emissões de metano gerado pelas vacas brasileiras sejam comparadas, em termos de seu efeito sobre o clima do planeta, às emissões pela queima de carvão pela indústria na Polônia.

A conversão em uma unidade comum permite que emissões (realizadas ou evitadas) e remoções de gases de efeito estufa sejam quantificadas e contabilizadas. Aí são gestados os créditos de carbono,cada um correspondendo a 1 tonelada de CO2e. 

Estes créditos seguem o princípio da fungibilidade, ou seja, os parâmetros do que é 1 tonelada de CO2 são os mesmos entre diferentes mercados e sistemas de redução de emissões. Isso importa para que os mercados regulados e voluntários possam, eventualmente, convergir no futuro.

Os mercados que negociam créditos de carbono – onde quem emite paga para quem deixa de emitir ou retira gases de efeito estufa da atmosfera – inspiraram a possibilidade de criar mercados de créditos de biodiversidade. Por exemplo, a Kunming–Montreal Global Biodiversity Framework busca “encorajar o setor privado a investir na biodiversidade” utilizando entre outros instrumentos, “créditos de biodiversidade com salvaguardas sociais”.

A ideia está sendo popularizada por iniciativas (CRSD, TNFD e SBTN) que surgem no contexto de acordos e normativas da União Europeia – a criadora de tendências em regulação civilizatória – que direcionam empresas a mensurar seu impacto, e o de suas cadeias de fornecedores, sobre a biodiversidade. 

Como as empresas e seus fornecedores irão medir estes impactos e como irão reduzi-los, mitigá-los ou compensá-los, criando a demanda por créditos, é algo ainda em construção. 

Há uma biblioteca de metodologias de avaliação de impacto ambiental que podem ser adaptadas para isso, mas devem ser usadas variáveis que realmente tenham interface com a biodiversidade. Há impactos, como o tipo de lixo produzido ou de onde vem sua água, que podem ser importantes em algumas situações, mas irrelevantes em outras. 

Aqui no Brasil isso é algo distinto dos sistemas de licenciamento ambiental. No entanto, alguns países (ou jurisdições) há décadas têm sistemas de compensação ambiental que podem utilizar “créditos” comprados no mercado dentro do conceito de “compensar semelhante com semelhante” e estes têm sido discutidos no contexto de créditos de biodiversidade.

Em partes dos Estados Unidos ou do Reino Unido, quem destrói 1 hectare de brejo ou do habitat de uma espécie ameaçada deve compensar comprando créditos (“offsets”) gerados por alguém que criou/protege área igual ou maior na mesma região. 

Compensar hectare por hectare já dá uma pista sobre algo que um crédito de biodiversidade deve ter.

É relativamente simples medir o impacto sobre a biodiversidade de uma fazenda de gado que funciona em terras griladas de Rondônia (como as na Resex Jaci-Paraná), do frigorífico que compra seu produto, do supermercado que o vende e do banco que financia as operações de todos. 

A coisa fica mais complicada conforme olhamos outros setores da economia com pegada geográfica mais difusa. Isso abre a possibilidade tanto para discussões esotéricas como para empresas terem muito mais liberdade sobre quais créditos comprar para se tornarem biodiversidade-positivas. 

Apesar do mercado de créditos de biodiversidade ser apenas uma possibilidade, já há umas 50 entidades gerando (ou tentando gerar) suas versões. Estes são baseados em metodologias que utilizam diferentes combinações de indicadores baseados em: 

  • 1 – espécies (como o número de indivíduos de uma espécie ameaçada, endemismos, etc), 
  • 2 – habitats e ecossistemas (riqueza/diversidade de espécies, integridade, biomassa, heterogeneidade, etc), e 
  • 3 – o que chamo “lado humano” (como pressões, valores culturais, benefícios comunitários,  etc).

O resultado são créditos de biodiversidade que representam coisas variadas como um metro quadrado ocupado por uma planta ameaçada de extinção, hectares utilizados por um predador de topo, um hectare de floresta com biomassa, riqueza de espécies e outros indicadores acima de determinados patamares, etc, etc.

Estas unidades de créditos biológicos são bem definidas e compreensíveis, com a tendência de convergência sobre aspectos como a integridade de habitats/ecossistemas. Mas também há quem queira vender “créditos” que não têm unidade definida e te deixam pensando o quanto têm a ver com a biodiversidade.

Isto mostra que “créditos de biodiversidade” têm fundamentos muito diferentes dos “créditos de carbono”. 

A Biodiversity Credit Alliance define crédito de biodiversidade como um certificado que representa “uma unidade mensurável e baseada em evidências de um resultado positivo para a biodiversidade que é durável e adicional em relação ao que ocorreria de outra maneira”.

Essa definição reconhece um problema insolúvel: a diversidade da vida no planeta é multidimensional e irredutível a algo equivalente ao CO2 equivalente que sempre será o mesmo, seja associado a uma termoelétrica polonesa ou a uma floresta em Tonga.

Biodiversidade inclui da diversidade de genes, moléculas e metabolismos à diversidade de interações entre diferentes populações de diferentes espécies de organismos que compõem ecossistemas. E entre ecossistemas. Sem mencionar as culturas exibidas por populações distintas de espécies que vão de corvos a elefantes.

A busca de uma unidade comum para a biodiversidade que quantifique quantos baobás equivalem a um muriqui ou quantos hectares de Mata Atlântica equivalem a quantos hectares de Caatinga faz tanto sentido quanto buscar uma unidade que quantifique a equivalência entre a Mona Lisa e o Abaporu, entre Paranoid do Black Sabbath e a Capela Sistina ou entre a 9ª Sinfonia de Beethoven e o Cristo Redentor.

É impossível que créditos de biodiversidade tenham uma unidade comum (como acontece com o de carbono) e seus mercados sejam fungíveis. Sejamos felizes com isso.

Biodiversidade é um fenômeno mapeável. Ecossistemas, áreas de endemismo, distribuições de populações, distribuições de espécies, a diversidade funcionais de grupos de espécies, áreas para populações mínimas viáveis, etc, etc, etc, ocupam espaços geográficos definidos.

Isso importa porque há quem fale de um mercado onde créditos de biodiversidade gerados aqui são vendidos para compensar impactos alhures. 

Ora, compensar a conversão de uma floresta em pasto no centro de Rondônia financiando uma estação ecológica na margem esquerda do rio Madeira é como compensar um hospital destruído pelos russos na Ucrânia construindo dois iguais nas Filipinas. Ou compensar a drenagem de um brejo na Andaluzia patrocinando a conservação de um bosque de araucárias no Paraná.

Pode ser bom para as áreas conservadas, mas não se compensa um Picasso queimado comprando quatro Di Cavalcantis.

A definição da BCA foge deste problema e reconhece que eventuais compradores podem demandar diferentes tipos de produtos de acordo com suas necessidades, que podem ir além da compensação zero a zero. Tipos diferentes de créditos podem estar associados a sistemas regulados x voluntários, de perdas evitadas x restauração, compensação net-zero x net-positivo, etc.

Variáveis como a cobertura por coral vivo e a densidade de espécies eliminadas pela pesca, como tubarões e badejos, por unidade de área podem compor créditos de biodiversidade lastreados em áreas de ambientes recifais. Foto: Fabio Olmos

Todos os profissionais de ESG deveriam estudar o material da BCA, assim como o de iniciativas correlatas como o International Advisory Board on Biodiversity Credits. Isso ajudaria a integridade de um mercado que ainda não existe, mas já tem oportunistas.

Para começar, e seguindo a BCA, as metodologias adotadas para gerar créditos de biodiversidade sempre incluirão uma unidade de medida geográfica. 

Um “crédito de biodiversidade” sem metro quadrado, hectare ou quilômetro quadrado na sua unidade, não é crédito de biodiversidade. Se você comprou algo que não tenha unidade de área atrelada, troque de ESG.

Créditos devem incluir métricas de diferentes aspectos da biodiversidade, como a qualidade e estrutura dos habitats, e diferentes dimensões da diversidade de grupos taxonômicos. E estas devem ser mensuradas de forma cientificamente válida e auditável.

Não adianta o dono de uma floresta de 2.000 hectares fazer entrevistas com os moradores, psicografar ou olhar os mapas de ocorrência de espécies ameaçadas da IUCN, ver que sua área está na distribuição potencial de 10 espécies ameaçadas e querer vender 2000 créditos correspondentes a “hectares com 10 espécies ameaçadas”.  

Ele tem que provar que estas espécies estão lá, fornecer indicadores populacionais e quanto da sua propriedade elas ocupam. 

Este quantitativo é o lastro dos créditos e deve ser encarado como a carteira de um fundo de investimentos. Você colocaria seu dinheiro em algo onde a informação fosse apenas “há ações e títulos bons no nosso fundo, confie em mim”?

Créditos são resultados de conservação que devem ser auditáveis. As metodologias para avaliar os resultados devem gerar dados que verificáveis de forma independente, como o retorno de uma carteira de ações. Isso é possível com metodologias como armadilhas fotográficas, DNA ambiental, gravadores autônomos, LiDAR, drones com câmeras térmicas e outras que permitem saber se um projeto realmente entrega o que diz ou está enrolando. 

Como dizia o dr. House, “as pessoas mentem”. Se seus diagnósticos forem baseados em dados sem verificação em campo e você ganhar um carimbo de greenwashing, ele certamente diria “eu não ligo muito para desculpas”

A BCA abre a possibilidade de métricas avaliadas através de “conhecimento ecológico tradicional”, o que pode engajar populações indígenas e comunidades locais. Isso permite comparar os resultados do conhecimento tradicional com metodologias científicas, gerar sínteses, avaliar custo-benefício e aferir se chegam no mesmo lugar.

O alicerce de qualquer sistema de créditos é a adicionalidade. Se o crédito de biodiversidade que eu produzo tem como unidade “hectare de floresta com biomassa acima de 300 toneladas e 5 a 8 mognos com diâmetro acima de 50 cm” eu devo provar que isso resulta de atividades feitas na área (como proteção efetiva) e não porque ela teria estes atributos de qualquer maneira. 

Provar a adicionalidade demanda avaliar atividades que um eventual vendedor de créditos de biodiversidade possa ter realizado, ou continua realizando, e têm impacto negativo.

O Brasil é adepto de gambiarras como “resolver” um problema via prestidigitação regulatória. Como legalizar desmatamentos mudando as regras para poder dizer que “zeramos o desmatamento (ilegal)” quando não faz diferença para a biodiversidade e o sistema climático se o estrago é legal ou ilegal. 

Uma hidrelétrica logo após seu fechamento. Os impactos negativos causados pelo afogamento de habitats terrestres e a transformação do ecossistema aquático (sem falar nas emissões de metano e cia) são permanentes e, quando muito, apenas parcialmente mitigáveis. Foto: Fabio Olmos

Por essas e outras a União Europeia criou restrições a produtos associados ao desmatamento, seja legal ou ilegal.

Não adianta inventar um marco temporal a partir do qual os pecados são perdoados se os impactos negativos de um negócio sobre a biodiversidade são contínuos e podem ser quantificados. 

Por exemplo, hidrelétricas extinguem espécies por destruírem habitats, bloquear rotas de peixes migratórios, favorecer espécies exóticas e invasoras e transformar rios em água parada. 

Por mais que se criem reservas naturais, sejam soltos peixes nativos e se plantem árvores na margem do reservatório (e o licenciamento ambiental DEVE exigir isso para uma mitigação – que não é compensação – mínima dos impactos ambientais) sempre há danos continuados e perdas mensuráveis, líquidas e permanentes da biodiversidade, como as quase 80 espécies de aves regionalmente extintas pela hidrelétrica de Porto Primavera. Uma metodologia que gera créditos numa situação dessas é questionável.

Por fim, resultados de conservação devem ser duráveis. Não adianta comprar ou restaurar uma área, vender créditos de biodiversidade lastreados nela e dois anos depois passar o correntão para plantar algodão porque o mercado está em alta. A permanência de um crédito de biodiversidade (20, 40, 100, 400 anos?) é algo ainda a ser discutido.

Estes detalhes devem ser considerados para quem deseja gerar ou adquirir créditos de biodiversidade com lastro real e evitar o greenwashing que se tornou pandêmico e francamente sem pudor. Já lidei com gente que participa de COPs de biodiversidade vendendo metodologias, mas no privado declarava com orgulho não entender nada do assunto. 

Joio do trigo

Compradores de créditos podem evitar armadilhas já de saída olhando o óbvio, como as credenciais de quem tenta vender metodologias de “créditos de biodiversidade”. 

Se seu cardiologista mostrar um diagrama de um rim para explicar seu problema nas suas coronárias, você deveria procurar outro profissional. Se alguém fizer a apresentação de um “projeto maravilhoso” na Amazônia mostrando imagens do Pantanal ou usa fotos de bichos de outros países no material promocional “porquê são bonitos”, você está sendo enrolado. 

Formação na área ajuda e é surpreendente (e divertido) o que pode acontecer quando as perguntas certas são feitas. A pessoa vendendo a maravilhosa metodologia sabe a diferença entre um jabuti e um tracajá? Qual a área de endemismo de aves em que seu projeto está? Por que uma biomassa de 600 toneladas por hectare em Ariquemes (RO) parece ok ou não? Qual o lastro dos créditos? Qual a unidade? São realmente adicionais? Pode descrever como os resultados são mensurados? Dá voltas dizendo que uma planilha mágica calcula? 

Sua equipe de ESG deve ser capaz de captar estes detalhes da mesma forma que seu RH deve ser capaz de avaliar se o plano de saúde que serve sua empresa entrega o que promete.

E não se deixe levar por argumentos de autoridade do tipo “nossa metodologia foi desenvolvida pelo Darwin”. Estude (ou faça seu ESG estudar) se a tal metodologia foi realmente desenvolvida para créditos de biodiversidade ou é adaptação de outra coisa, se passou por revisão por pares de verdade (ou melhor, se foi publicada em um periódico de respeito) e se está de acordo com os princípios da Biodiversity Credit Alliance e similares.

O setor privado deve ser engajado na conservação da biodiversidade da melhor maneira possível. Mas isso só irá funcionar se houver boa Ciência mostrando resultados reais e mensuráveis desse engajamento. Não se produz unidade mensurável de biodiversidade no Cerrado medindo rolos de papel higiênico usados no escritório da empresa em Itajaí.

No fim do dia o mercado decide o que deseja comprar e, da mesma forma que o mercado de arte, irá separar o que tem valor daquilo que não tem. Valorizar a integridade, já de saída, tornará o processo mais fácil.

As opiniões e informações publicadas nas seções de colunas e análises são de responsabilidade de seus autores e não necessariamente representam a opinião do site ((o))eco. Buscamos nestes espaços garantir um debate diverso e frutífero sobre conservação ambiental.

As informações apresentadas neste post foram reproduzidas do Site O Eco e são de total responsabilidade do autor.
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