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ToggleO presidente da República prometeu retomar o asfaltamento do lote C da rodovia, mas pediu que “todos os envolvidos” sejam ouvidos quando o assunto for a recuperação completa da estrada. Na foto acima, trabalhadores durante a manutenção da BR-319 no trecho entre Porto Velho e Humaitá (Foto: Alberto César Araújo / Amazônia Real / 03/06/2023).
Manaus (AM) – A Amazônia arde em chamas e as imagens de satélite não escondem que as maiores emissões ficam no entorno das rodovias BR-163, BR-364, BR-230 (Transamazônica) e BR-319. Em vez de por em prática medidas para conter a destruição, Luiz Inácio Lula da Silva (PT) anunciou a polêmica obra de recuperação do lote C da última estrada. Em visita a Manaus, na última terça-feira (10), o presidente conseguiu desagradar cientistas e lideranças indígenas que, por serem contrários à obra, têm sido ignorados pelos governantes.
“A nossa luta tem sido fazer com que o Estado cumpra com seu papel de garantir segurança e todos os meios necessários para que quem sempre viveu, protegeu e depende desse território continue vivendo nele”, afirmou a coordenadora executiva da Articulação das Organizações e Povos Indígenas do Amazonas (Apiam), Mariazinha Baré.
A líder indígena enfatiza que o problema central da reconstrução da BR-319 reside na incapacidade do Estado em cumprir as condicionantes estabelecidas pelos próprios órgãos competentes, que até o momento não foram atendidas. Elas, segundo Mariazinha Baré, são essenciais para garantir a proteção das comunidades que vivem ao longo do território afetado pela rodovia, além de mitigar os impactos sociais, culturais e ambientais da obra.
O biólogo e pesquisador Lucas Ferrante lembra que a BR-319 ficou intransitável de 1988 a 2015 porque a sua recuperação era inviável economicamente. Mas durante o governo da presidenta Dilma Rousseff (PT) foi iniciado um programa de manutenção que, desde então, resultou no aumento das taxas de desmatamento e ocupações irregulares na região. Esses dados, segundo Ferrante, foram evidenciados por um estudo publicado na revista científica Land Use Policy.
Para Ferrante, a decisão de Lula de assinar uma ordem de serviço para a pavimentação do lote C da BR-319 agrava o problema não só das queimadas, como também da seca que se pronuncia como catastrófica. “A rodovia não oferece acesso aos municípios afetados pela seca, logo a ação não tem base técnica. Além disso, o lote C ainda não conta com estudos de impacto ambiental e nem consultas aos povos indígenas, como destacamos no periódico Science”, disse o pesquisador.
Em agosto, o Amazonas registrou a maior incidência de queimadas e incêndios florestais em um só mês nos últimos 14 anos. Repetindo o que aconteceu no ano anterior, o Estado se aproxima de uma nova estiagem recorde, deixando povos isolados em diversas comunidades ribeirinhas e indígenas. É em meio a esse cenário caótico que Lula anuncia a retomada de um trecho da rodovia que liga Manaus a Porto Velho. A estrada foi inaugurada em 1976, durante o período da ditadura militar no Brasil, funcionou por 12 anos, até que o chamado “trecho do meio” ficou intrafegável por falta de manutenção.
Licença suspensa
Em julho deste ano, a 7ª Vara Federal Ambiental e Agrária do Amazonas suspendeu a Licença Prévia nº 672/2022, que autorizava a reconstrução e asfaltamento do “trecho do meio” da BR-319, entre os quilômetros 250,7 e 656,4. A decisão foi proferida pela juíza Mara Elisa Andrade, atendendo a uma ação civil pública do Observatório do Clima contra o Ibama e o Dnit. A licença havia sido emitida em julho de 2022, durante o governo de Jair Bolsonaro (PL).
O Observatório do Clima argumentou que o licenciamento ignorou os riscos de aumento do desmatamento e os impactos ambientais destacados pelo próprio Ibama. A organização apontou a falta de consulta aos povos indígenas afetados, como os Apurinã e os Mura, já que o Estudo de Componente Indígena (ECI) não foi realizado.
Na ação, o Observatório destacou que o simples anúncio da pavimentação já resultou em um aumento expressivo do desmatamento na área, reforçando a necessidade de suspensão imediata da licença para evitar danos irreversíveis.
A juíza considerou que a obra poderia intensificar a destruição da Amazônia, ressaltando a ausência de políticas públicas eficazes para controlar o desmatamento. Ela concluiu que, sem tais medidas, a BR-319 é inviável, independentemente de quem seja o responsável pelas políticas de controle e prevenção.
“O que podemos constatar é que a obra foi paralisada e segue em impasse porque os próprios órgãos de controle identificaram os problemas”, destacou Mariazinha Baré. Ela reconhece que a reconstrução da BR-319 traria facilidades, como a melhora na locomoção e no escoamento de produtos durante o período de seca. “Os problemas vão persistir e aumentar, e vamos continuar denunciando e cobrando o Estado para fazer valer os nossos direitos. Não dá para simplesmente fechar os olhos e dizer que está tudo bem”, concluiu a liderança.
Jogando dos dois lados
Em seu discurso, Lula anunciou que o governo já havia assinado contrato junto ao Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (Dnit) para a pavimentação de 52 novos quilômetros que, segundo o ele, já estavam autorizados. “Vamos começar a fazer 20 quilômetros e, daqui a 20 dias, estão liberados os outros 32 quilômetros”, prometeu Lula.
“Enquanto isso, vamos estabelecer uma discussão com o estado e a União, com os ministros envolvidos, vamos convocar qualquer especialista que estiver em qualquer lugar do mundo para discutir conosco como é que podemos fazer essa estrada sem causar danos à floresta que está muito preservada naquela região”, discursou o presidente.
Lula disse ter certeza de que é possível encontrar uma solução definitiva para fazer da BR-319 a estrada “mais bem construída e manter a floresta mais bem conservada do mundo”.
O presidente também defendeu a ministra do Meio Ambiente e Mudança do Clima, Marina Silva (Rede), que é constantemente apontada por políticos do Amazonas como sendo a responsável pelo “entrave” para a pavimentação da estrada. “É preciso parar com essa história de achar que é a companheira Marina que não quer construir a BR-319. Essa BR-319 foi construída nos anos 1970, foi abandonada por desleixo não sei de quem, ficou sem funcionar, e hoje ela tem uma parte ‘para cá’ que funciona, outra parte que funciona e o meio são 400 quilômetros que ficaram inutilizáveis”, afirmou Lula.
Marina pede que ouçam a ciência
No dia 4, a ministra Marina Silva compareceu à audiência na Comissão de Meio Ambiente do Senado Federal sobre os incêndios florestais, quando afirmou que o presidente Lula orientou que obras como a Ferrogrão, BR-319, Angra 3, e exploração de petróleo na margem equatorial sejam encaminhadas para estudos. “Porque não é no olhômetro que a gente vai dizer isso aqui impacta, isso aqui não impacta, isso aqui é compatível, não é compatível. É olhando para o que está dizendo a ciência”, pontuou a ministra.
Em sua fala, Marina ainda cutucou a gestão do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL). “Tem alguns empreendimentos que mesmo aqueles que queriam que as coisas funcionassem de porteira aberta, não fizeram. É o caso da 319. Foram 15 anos. 15 anos em que eu não tinha nem uma função pública. Eu era a professora Marina. 15 anos. Por que não fizeram a estrada? Por que não fizeram?”, questionou.
Marina também lembrou a forma como a gestão Bolsonaro conseguiu obter a chamada licença prévia para a pavimentação da rodovia. “A licença da BR 319 havia sido dada no governo anterior. Sabe como deu a licença? Desrespeitando parecer técnico dos servidores do Ibama. Sabe o que acontece quando se tenta fazer atalho em lugar de ir no caminho? Uma ação na Justiça liminarmente cassou a licença”, disparou.
“São quase 500 quilômetros no meio do coração da floresta, que se tiver o impacto que os estudos estão mostrando que tem, é altamente deletério para tudo isso que nós estamos discutindo aqui. E que se for fazer (a estrada), tem que escutar o que a ciência está dizendo, mas encontrar o caminho fácil de dizer que a responsabilidade é da ministra Marina Silva, não tem problema. Eu tenho um bordão que me conforta imensamente. Eu prefiro sofrer a injustiça do que praticar a injustiça”, finalizou a ministra.
Mais urgente
O secretário-executivo do Observatório da BR-319, Marcelo Rodrigues, comentou o anúncio da pavimentação do lote C e fez uma ponderação no que diz respeito aos recursos que poderiam ser direcionados para resolver uma questão ainda mais crítica envolvendo a BR-319.
“Nós do Observatório acreditamos que já que tem dinheiro para esse investimento, acreditamos que tem coisas mais emergenciais na própria estrada. A começar pelas duas pontes que caíram. Isso é um ponto central: a vida da população no local”, analisa.
Marcelo se refere à ponte no Rio Curuçá, que desabou em 28 de setembro de 2022; acidente que deixou quatro mortos e 14 feridos; e uma segunda ponte, sobre o rio Autaz Mirim, que desabou em 8 de outubro. Neste acidente, não houve feridos porque a construção havia sido interditada horas antes pela Polícia Federal Rodoviária.
Cenário crítico
Para Lucas Ferrante, ao autorizar a reconstrução do Lote C da BR-319, Lula violou a Convenção 169 da OIT, à qual o Brasil é signatário. “A fala de Lula é preocupante, pois demonstra que o governo não busca um diálogo técnico genuíno”, sentenciou.
Segundo Ferrante, um estudo realizado em parceria com o Censipam mostrou que, se a BR-319 for pavimentada, não haverá contingente suficiente para fiscalizar a região. “Em um estudo publicado este mês no The Lancet, foi apontado que a pavimentação da rodovia pode gerar uma sequência de novas pandemias devido a saltos zoonóticos. O cenário é crítico”, alertou.
Para o vencedor do Prêmio Nobel da Paz pelo Painel Intergovernamental para Mudanças Climáticas (IPCC), Philip Fearnside, o “Lote C” não possui o estudo de impacto ambiental necessário para seu projeto de reconstrução. “O EIA do projeto de reconstrução da BR-319 [1] cobre apenas o ‘trecho do meio’ da rodovia”, diz Philip.À reportagem da Amazônia Real, o Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (Dnit), disse que as obras remanescentes de pavimentação do Lote C da BR-319/AM são autorizadas pelo Termo de Acordo e Compromisso firmado entre o DNIT e o IBAMA em 2007, motivo pelo qual não há exigência de estudo ambiental para o referido segmento, sendo que o contrato prevê a reconstrução do segmento que já era pavimentado.
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