A questão da governança é central nas polêmicas em torno da BR-319. Com a provável excepção de alguns elementos criminosos, praticamente todos querem a governança. Ao mesmo tempo, “cenários de governaça” irrealistas proporcionam uma desculpa para aprovar projetos que conduzem a impactos desastrosos. O desejo quase universal pela governança pode ser facilmente aproveitado para promover projetos como a BR-319.
O discurso político atingiu níveis surpreendentes neste esforço, como a afirmação dos políticos de Manaus de que a BR-319 será um “exemplo sustentável para o mundo” (Figura 21), ou a afirmação do atual ministro dos transportes de que a BR-319 será “a rodovia mais sustentável e mais verde do planeta” [1]. O primeiro EIA apresentou o Parque Nacional de Yellowstone como exemplo de como seria a BR-319 com “governança forte”, e incluiu um mapa desse parque com as estradas pelas quais milhões de turistas circulam sem cortar uma única árvore ([2], vol. 1, p. 185; Ver [3]).
A noção de que governança pode tornar a BR-319 “ambientalmente viável” é perigosa, pois decisões precisam ser tomadas com base nas experiências com o que acontece na realidade com a abertura de rodovias amazônicas. Até precisa fazer isto com uma aplicação do princípio da precaução, devido à gravidade dos impactos caso o cenário previsto não se realiza, mesmo sem exagero do poder de governança (ver [5, 6]).
O melhor exemplo é a BR-163, onde houve um grande esforço para governança através do Plano BR-163 sustentável, mas a rodovia se tornou um dos principais focos de desmatamento ilegal, grilagem, garimpagem e outros crimes ambientais (veja referências em [7]). Infelizmente, confiança injustificável no poder de governança é marcante em discussões da BR-319 (e.g., [8]), e é o raciocínio da recente grupo de trabalho sobre a BR-310 organizado pelo DNIT [9, 10]. [11]
A foto que abre este artigo mostra a manutenção da BR 319 no trecho entre Porto Velho e Humaitá, onde uma tubulação rompeu abriu um grande buraco na pista (foto: Alberto César Araújo/Amazônia Real/22/03/2023).
Notas
[1] ClimaInfo. 2023. Recursos do Fundo Amazônia podem parar na BR-319, que corta a floresta. ClimaInfo, 18 de agosto de 2023.
[2] DNIT (Departamento Nacional de Infra-Estrutura de Transportes). 2009. Estudo de impacto ambiental da reconstrução da BR-319.
[3] Fearnside, P.M. & P.M.L.A. Graça. 2009. BR-319: A rodovia Manaus-Porto Velho e o impacto potencial de conectar o arco de desmatamento à Amazônia central. Novos Cadernos NAEA 12(1): 19-50.
[4] Amazonas em Tempo. 2020. BR-319 será exemplo sustentável para o mundo, dizem deputados. Amazonas em Tempo, 22 de setembro de 2020.
[5] Fearnside, P.M. 1997. Limiting factors for development of agriculture and ranching in Brazilian Amazonia. Revista Brasileira de Biologia 57(4): 531-549.
[6] Fearnside, P.M. 2022d. Fatores limitantes para o desenvolvimento da agropecuária na Amazônia brasileira. p. 135-156. In: Fearnside, P.M. (ed.) Destruição e Conservação da Floresta Amazônica. Editora do INPA, Manaus. 356 p
[7] Fearnside, P.M. 2024. A BR-319 e o fantasma da ditadura -1: “Segurança nacional”. Amazônia Real, 09 de abril de 2024.
[8] FGVces (Fundação Getúleo Vargas). 2021. Agenda de desenvolvimento territorial para a região da BR-319: Fortalecendo territórios de bem viver. Centro de Estudos em Sustentabilidade da Fundação Getulio Vargas, São Paulo, SP. 439 pp.
[9] Fearnside, P.M. 2024. BR-319: O perigo chega a um momento crítico. Amazônia Real, 15 de fevereiro de 2024.
[10] Pajolla, M. 2024. Reconstrução da BR-319 é ‘prioridade’ do governo federal, diz relatório do Ministério dos Transportes. Brasil de Fato, 22 de março de 2024.
[11] Os textos desta série fazem parte de uma revisão de literatura solicitada pelo Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima.
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