Durante a participação no seminário internacional “Povos indígenas e comunidades tradicionais frente aos desafios das emergências climáticas”, em Manaus, lideranças disseram que até drones são usados para monitorá-los (Foto: Juliana Pesqueira/Amazônia Real).
Manaus (AM) – Indígenas do Amazonas que lutam contra mineração e exploração de combustíveis fósseis em seus territórios, localizados nas cidades de Autazes e Silves, no Amazonas, afirmaram em um evento realizado em Manaus na semana passada, que se sentem ameaçados e vigiados enquanto transitam em suas comunidades, em suas atividades de rotina, seja pescando ou fazendo trabalhos nos roçados. Eles afirmam que, nos últimos meses, têm sido avistados drones que sobrevoam as comunidades.
Os indígenas não sabem dizer a quem pertencem os equipamentos, mas suspeitam que o monitoramento tenha a ver com a oposição pública deles aos empreendimentos de mineração. Apoliana Cardoso, pertencente ao povo Mura, da aldeia São Francisco, no município de Silves (distante 181 quilômetros de Manaus), onde a empresa Eneva explora gás natural e tem projeto de ampliação do empreendimento, relata o avistamento dos equipamentos. Os municípios na rota da Eneva estão localizados na bacia do Médio Rio Amazonas.
“Já teve parentes que disseram que está tendo drone à noite nas nossas aldeias para nos vigiar, para saber nossos passos, o que a gente anda fazendo. O que a gente está pensando eles não têm como descobrir, mas o que a gente faz no dia a dia eles têm como saber porque eles estão monitorando a gente”, denuncia.
Relatos como esse aconteceram durante o seminário internacional “Povos indígenas e comunidades tradicionais frente aos desafios das emergências climáticas”, realizado no último dia 29 no Centro Cultural Palácio da Justiça, prédio histórico localizado em frente do Teatro Amazonas, no mesmo dia em que acontecia no Teatro Amazonas as audiências da Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) . Os indígenas Mura, Sateré-Mawé e Baré de aldeias de Silves e Autazes não foram convidados para as audiências, mas quiseram “aproveitar” a data para dar visibilidade à situação pela qual estão passando.
Não foi só na aldeia São Francisco, em Silves, que os indígenas relataram o sobrevoo de drones sobre suas comunidades. O mesmo vem acontecendo, segundo o indígena Vavá Mura, na aldeia Lago do Soares, no município de Autazes (a 111 quilômetros de Manaus), na área da foz do rio Madeira. Ele diz que recentemente muitos drones foram vistos sobrevoando a comunidade. “Muitas famílias se desesperam, outros não conseguiram dormir à noite, ficando preocupados com aquilo que não eram acostumados a ouvir no seu território”, revela Vavá, que também esteve presente na programação.
A aldeia Soares, onde Vavá mora, tornou-se o epicentro de uma disputa, que tem de um lado os povos que habitam há séculos aquela região, e a empresa Potássio do Brasil, interessada em minerar naquela área, e para isso conta com o apoio de uma verdadeira “tropa de choque política”, que vai do governador do Estado, Wilson Lima (UB), ao prefeito de Autazes, Andreson Cavalcante (União Brasil), e até o vice-presidente Geraldo Alckmin, que já se posicionou favorável à mineração em terra indígena, além do deputado estadual Sinésio Campos (PT), notório defensor de mineração em terra indígena.
Passando por cima
Um dos discursos mais inflamados do seminário foi feito pelo cacique Jonas Mura, de aldeia Gavião Real, em Silves. Ele destacou que as empresas que exploram os territórios de Silves e Autazes não estão tendo respeito com a população indígena e não estão tendo piedade de “assassinar” a história dos povos que ali vivem.
“(o local) onde nossos ancestrais foram enterrados, uma mata onde meu avô caçou, uma mata onde meu pai caça, uma mata onde eu vou caçar, uma mata onde meus netos irão caçar, está sendo destruída”, esbraveja Jonas, que alega que o barulho das máquinas ajuda a afugentar a caça e a pesca.
Jonas também reclama da falta de respeito dos empreendimentos com os povos tradicionais. “Quando eles entram, eles não consultam. Não perguntam se tem alguém naquele lugar. Eles vão passando por cima sem um pingo de respeito”, detona.
O líder Mura ainda se queixa do governo, que deveria defender os direitos dos indígenas. “Quem deveria estar nos protegendo, está por trás disso. Por trás disso está o nosso governo, que deveria defender os povos tradicionais. Tem um órgão chamado Ipaam que deveria fazer uma consulta com gente, mas não dão a mínima. E a canetada libera a licença para matar os povos indígenas dentro dos seus territórios”, acusou. Para o líder indígena, se a situação continuar como está, em dez anos, Silves vai ficar apenas na “história”.
O cacique também engrossou o coro de acusações a respeito do monitoramento dos indígenas. “(os indígenas) são monitorados 24 horas. Nós não precisamos de monitoramento de nenhuma empresa! Nós já temos uma segurança, nós já somos filhos dali, nós temos o Tupã que é o nosso protetor. Nós não precisamos desses empreendimentos para a nossa sobrevivência. O que nós precisamos é de proteger a nossa floresta, para que daqui a 20 anos, 10 anos, os nossos filhos e os nossos netos possam usufruir dessa riqueza”, discursou.
Inversão de papeis
Outra fala emblemática no seminário internacional foi a do jovem Felipe Gabriel, o Gabriel Mura, que é o atual tuxaua da aldeia Soares, da comunidade indígena Lago do Soares, em Autazes, que falou sobre as violações de direitos e a cooptação de indígenas pela mineração.
“O papel se inverteu de uma forma tão atualizada e antiga ao mesmo tempo, onde estávamos aqui e temos que provar que somos indígenas. Estávamos aqui e temos que provar que realmente pertence a nós esse território. Só que é bem interessante porque o que mais prova ainda que somos indígenas, que [o território] pertence a nós é que a gente preserva, que a gente cuida”, explica.
O discurso, segundo Gabriel, é o mesmo de sempre, de que a mineração trará desenvolvimento, “revolucionando” a economia do País. “Mas em nenhum momento se pergunta daquele povo o que é desenvolvimento para vocês que moram aí? O que é desenvolvimento para nós que estamos aqui? O desenvolvimento talvez para o povo que está ali, para os povos que estão sendo violados, não é a mesma coisa que o governo está vendo também”, reclama.
Gabriel aponta que a cooptação dos indígenas é feita com propostas em dinheiro. “Oferecendo maravilhas, que acaba repartindo o povo. Fazendo com que o nosso povo, internamente, brigue entre si”, revela o líder indígena, que ressalta que os indígenas querem lutar pela preservação do território para as futuras gerações.
Desde o ano passado, indígenas Mura contrários ao projeto de mineração têm denunciado aliciamento e cooptação por parte da empresa para que lideranças aceitem a exploração de potássio. O Ministério Público Federal entrou com uma ação denunciando a prática. Em 2024, o Ipaam vem liberando de maneira fracionada os licenciamentos ambientais, apesar da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) ter iniciado, em maio, os trabalhos de delimitação na TI Lago do Soares visando a demarcação. A mina de potássio está dentro da terra indígena Lago do Soares.
No mês passado, o MPF entrou com uma nova ação pedindo intervenção judicial nas licenças expedidas pelo Ipaam. No mesmo dia do evento no Centro Cultural Palácio da Justiça, os indígenas Mura participaram de uma coletiva onde reforçaram as ameaças por que estão passando.
“Soares é a aldeia que está sofrendo. Não é que vai sofrer. É a aldeia que está sofrendo o impacto diretamente da empresa Potássio, do governo estadual e municipal. Estão passando por cima de todos os nossos direitos. Direitos garantidos na Constituição e no nosso protocolo de consulta. Tudo isso a gente traz, só que tampam os ouvidos. Ainda insistem em falar que não somos indígenas, que não existem indígenas do Soares. E a gente viu uma cronologia desde quando a gente está ali (na aldeia). Nem o marco temporal pode nos tirar dali. Estamos sendo violados e ameaçados por sermos indígenas”, disse o tuxaua do Lago do Soares, Felipe Gabriel Mura, durante a coletiva no MPF. “Estão passando por cima de nós”, disse o tuxaua.
Os indígenas de Autazes também relataram ameaças veladas recentes, como ligações anônimas. Sérgio Nascimento, que até meses atrás era o tuxaua e a principal liderança, pediu medida protetiva do MPF, afirmando que tem recebido telefonemas de números restritos.
“Na semana passada, recebi uma ligação restrita dizendo que meus passos estão sendo contatos. Peço investigação da PF , porque as coisas estão ficando mais tensas. A minha família se sente amedrontada. Da gente sair e alguma coisa acontecer com a gente”, contou Nascimento.
Liderança feminina
A presidente-coordenadora da Organização das Mulheres Indígenas Mura (OMI), Milena Mura, que é da terra indígena Guapenú, aldeia Moyray, no município de Autazes, ressaltou que os indígenas lutam pela demarcação do território há 30 anos e também protestou contra a Potássio do Brasil.
“A empresa vem falando de desenvolvimento. Que desenvolvimento, que benefícios uma empresa traz para um território? O benefício é para o bolso deles, o benefício é para os cofres públicos, do estado, do município, até mesmo o federal, é desenvolvimento para o agronegócio, mas para nós, enquanto povo, não. Nós queremos o nosso território em pé”, protesta.
A líder Mura questiona ainda quais foram os benefícios que a mineração trouxe aos povos indígenas? “Me falem qual foi o benefício de qualquer empresa mineradora ou algo ilegal dentro de territórios indígenas que deu certo? Que deu desenvolvimento? Dinheiro, gente, não compra vida. E eu falo isso para o meu povo”, disse a liderança, que criticou também a mídia local, cuja cobertura sobre o assunto é favorável ao empreendimento.
“Ver a mídia alegando que todo povo Mura do município de Autazes é favorável à empresa Potássio, à sua exploração de silvinita, eu digo com toda certeza: mentira!”, disse.
Após seu discurso no evento, Milena Mura conversou com a Amazônia Real, e falou sobre a importância do seminário internacional e de como os povos indígenas de Autazes gostariam de ter tido a oportunidade de falar no evento da Corte Interamericana de Direitos Humanos.
“Era uma expectativa nossa. Queríamos poder ter falado isso lá nas audiências (da CIDH) também, porque seria um ponto muito crucial para nós estarmos lá, falando diretamente para os juízes. Mas aqui também vai ter uma grande repercussão, e o esperado era justamente isso, né? Que eles pudessem ouvir o nosso lado também, e não só o outro lado da empresa, nem só o outro lado do povo cooptado, mas que ouvisse o nosso lado também, de resistência”, disse Milena.
Ancestralidade
Mariazinha Baré, que é coordenadora executiva da Articulação das Organizações e Povos Indígenas do Amazonas (Apiam), emocionou-se durante o evento falando sobre a luta dos povos indígena. “É a questão da própria identidade dos povos indígenas, da nossa identidade, dessa relação que nós temos com o nosso território, que é a questão da inversão dos direitos, a questão do pertencimento. Ou seja, a gente precisa sair dos nossos territórios para que outros venham e se apropiem deles de forma ilegal”, lamenta.
A liderança feminina também fez seus questionamentos. “E a pergunta que é muito importante, é muito interessante, em reflexão: ‘o que é esse desenvolvimento para nós, para quem está dentro do território e para quem está fora do território? O que é esse desenvolvimento?’ Principalmente no momento que a gente vive. Essa é uma pergunta que a gente precisa se fazer”, pontua.
Para Mariazinha, a questão da preservação, da conservação da biodiversidade, da cultura do povo, da terra e da ancestralidade em relação ao território são pontos fundamentais para a existência dos povos indígenas. “E a questão do próprio silenciamento dos que estão nesse enfrentamento ali dentro daquele território. É o exemplo de várias outras lideranças que são silenciadas de várias formas, ameaçadas e muitas delas, inclusive retirando a própria vida. Uns tiram a própria vida e outros são retirados da vida e a questão da diferença de sobreviver e de viver também dentro dos territórios”, finaliza.
Organização
O seminário internacional “Povos indígenas e comunidades tradicionais frente aos desafios das emergências climáticas”, foi organizado pelo Observatório de Direitos Socioambientais e Direitos Humanos na Amazônia em parceria com a Clínica de Direitos Humanos e Direito Ambiental da Universidade do Estado do Amazonas (UEA).
Professora da faculdade de Direito, da Universidade Federal do Amazonas (Ufam), Caroline Nogueira, e uma das organizadoras do evento, disse que a ideia do evento para dar visibilidade tanto para o caso do povo Mura de Autazes e Careiro da Várzea, quanto para o caso de Silves, que abarca indígenas Mura, Sateré e povos tradicionais.
“Nós conseguimos com os parceiros, que é o CIMI, a 350 Org, que apoiam eles, para conseguir trazê-los da base. E o CIMI (Conselho Indígena Missionário) junto com a CPT (Comissão Pastoral da Terra) também conseguiu contato com o povo Maraguá e nós os inserimos”, conta.
Caroline revela que a ideia principal do evento é que ele fosse um espaço para os indígenas que não puderam participar da audiência da sessão da Corte Interamericana de Direitos Humanos.
“Esses projetos passam por cima das comunidades tradicionais e dos povos indígenas e mais tarde vão acarretar mais desafios relacionados aos danos socioambientais que eles deixam para as comunidades”, ressalta Caroline, que se queixa que poucas mídias têm dado atenção ao problema.
“A gente queria também que eles tivessem um espaço de discussão mais amplo e que eles pudessem falar, vir aqui, ser vistos e serem ouvidos, porque isso é completamente diferente do que só ler uma notícia”, finaliza.
Respostas
Sobre as denúncias feitas pelos indígenas, a Potássio do Brasil informou que a empresa não realizou e nem autorizou qualquer tipo de vigilância ou monitoramento em áreas externas às propriedades da Potássio do Brasil, seja por pessoas ou por drones. “A segurança de nossas operações é conduzida de maneira ética e em conformidade com todas as normas legais, garantindo o respeito às comunidades locais”, disse a nota enviada à reportagem.
A empresa disse ainda que as suas atividades são conduzidas com rigorosos critérios de avaliação de impacto ambiental e social. “Em relação às obras mencionadas, destacamos que todas estão sendo realizadas exclusivamente em áreas de propriedade da Empresa e de acordo com as Licenças de Instalação emitidas pelo Instituto Proteção Ambiental do Amazonas – IPAAM”.
Ainda segundo a nota, a empresa diz ter sido foi convidada, recentemente, a participar da II Assembleia do Povo Mura de Autazes, momento o qual apresentou as oportunidades de trabalho na fase de implantação do projeto e recebeu das lideranças indígenas Mura de Autazes o Planos Bem Viver Mura de 23 aldeias. “Esse diálogo é fundamental para o alinhamento das expectativas e para garantir que nossos projetos respeitem e agreguem melhorias às comunidades locais”, disse a nota.
A Eneva se pronunciou dizendo que repudia toda e qualquer prática de violência. “A empresa tem um processo periódico de comunicação com os representantes locais, que é pautado por uma abordagem próxima, pacífica e que visa o diálogo com as comunidades no entorno dos empreendimentos da companhia”, diz a nota.
A companhia, segue a nota enviada à reportagem, reitera nunca ter identificado incidente de qualquer natureza nesses contatos. “A Eneva tem os mais altos níveis de governança e valoriza as regiões em que atua e mantém um diálogo transparente e pacífico com as comunidades locais”.
A empresa diz ainda que as licenças ambientais no complexo do Azulão, no Amazonas, seguem vigentes, conforme decisão das instituições responsáveis. “A companhia reitera que os procedimentos de licenciamento seguiram todas as etapas necessárias, incluindo a realização de audiências públicas e a expedição de licenças de instalação e operação conforme as exigências legais”.
Por fim, a Eneva destacou que “não foram identificadas comunidades tradicionais indígenas e/ou quilombolas nas áreas de influência das operações no Campo de Azulão, conforme as bases oficiais da FUNAI e INCRA, que regulamentam a definição no Brasil”. Essa informação, contudo, foi contestada pela própria Funai, em documentos enviados à empresa, ao Ipaam e ao MPF e que foram obtidos pela Amazônia Real.
A reportagem de Amazônia Real entrou em contato com o Instituto de Proteção Ambiental do Amazonas (IPAAM), mas até a publicação da reportagem, o órgão não respondeu.
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