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Antes mesmo de começar, a Expedição DEGy Rio Negro tinha um gosto de saudosismo. Pelo menos para quatro integrantes do grupo que percorreu, por duas semanas, o rio Negro e afluentes, de Manaus a Santa Isabel do Rio Negro (no Amazonas). A viagem foi acompanhada pela Agência FAPESP para a nova edição da série Diário de Campo.
Era um reencontro, após quase 31 anos da primeira expedição do projeto Calhamazon. Em 1993, 1994 e 1996, os pesquisadores percorreram todo o rio Amazonas, coletando na calha principal e na foz de todos os afluentes. A primeira viagem durou 40 dias. As duas últimas, 30. Foram 20 mil exemplares coletados, de 510 espécies, o que gerou uma série de descobertas científicas.
Em 2024, repetiram a parceria iniciada naquelas viagens o pescador e ex-funcionário do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa) Roberval Pinto Ribeiro e o técnico de apoio à pesquisa do Museu de Zoologia da Universidade de São Paulo (MZ-USP) Osvaldo Oyakawa, que estiveram nas três expedições. A pesquisadora do Inpa Lúcia Rapp Py-Daniel e a professora da Universidade Federal da Bahia (UFBA) Angela Zanata estiveram nas duas últimas excursões.
“Foi minha primeira experiência na Amazônia e uma das mais marcantes da minha vida, principalmente pela diversidade de peixes. Fazemos muitas coletas no Sudeste, como no Vale do Paraíba e no Vale do Ribeira, e se em duas semanas voltamos com 30 espécies, podemos ficar satisfeitos. Na Amazônia, você vai num igarapé pequeno e coleta 40, 50 espécies. Então é muito surpreendente”,
conta Oyakawa, que ingressou como técnico no MZ-USP em 1989 e em 1993 fazia seu doutorado na instituição.
O projeto, cujo título completo em inglês pode ser traduzido como “Diversidade de Peixes dos Principais Canais do Rio Amazonas”, foi coordenado por John Lundberg, então professor da Universidade Duke, transferido ainda em 1993 para a Universidade do Arizona. Atualmente, Lundberg é aposentado pela Academia de Ciências da Universidade Drexel, antiga Academia de Ciências Naturais da Filadélfia, ambas nos Estados Unidos.
No Brasil, o Calhamazon contava com a colaboração de Naércio Menezes, professor do MZ-USP, para onde foi a maior parte do material coletado. O financiamento foi da National Science Foundation.
“Foram anos de trabalho, muitas publicações descrevendo novas espécies e outros estudos sobre taxonomia e biodiversidade, incluindo genética molecular. Muitos pós-graduandos do Brasil, Estados Unidos e outros países estudaram o material e obtiveram seus títulos”, conta Lundberg à Agência FAPESP.
“O principal legado do Calhamazon foi proporcionar a obtenção, pela primeira vez, de um grande número de espécies de Gymnotiformes, os peixes-elétricos, inclusive poraquês, por meio de um método de coletas nunca usado antes, em uma grande extensão da bacia amazônica. Esse fato possibilitou o incremento do estudo desses peixes em nosso país”, conta Menezes, que coordena o projeto “Diversidade e Evolução de Gymnotiformes” (DEGy), apoiado pela FAPESP.
Inovação
O objetivo do Calhamazon era coletar o maior número possível de peixes da calha do rio, por isso o nome. Essa parte mais profunda é difícil de ser alcançada por outras artes de pesca, por isso, até então, os organismos desse hábitat eram pouco conhecidos.
A inovação do projeto foi utilizar, no rio, o aparato adotado para a pesca de camarões no mar. Na pesca de arrasto, como é conhecida, o leito é varrido por uma rede em formato de funil, com duas grandes portas pesadas que mantêm a estrutura sempre aberta e no fundo.
“Lundberg havia realizado um estudo preliminar no Orinoco, na Venezuela, testando a rede de arrasto de fundo na calha do rio. Aquilo funcionou muito bem, então ele e o professor Ning Labbish Chao, da Universidade Federal do Amazonas [Ufam], planejaram repetir em grande escala na Amazônia brasileira”,
explica Py-Daniel, então já pesquisadora do Inpa e que viria a fazer seu doutorado com Lundberg nos Estados Unidos a partir de 1993.
Antes de o projeto começar de fato no Brasil, os pesquisadores realizaram outro piloto, em 1991, dessa vez no rio Negro. A ideia era testar a viabilidade desse tipo de coleta no país. Py-Daniel lembra de se surpreender com a diversidade encontrada ainda naquelas coletas de curta duração e próximas a Manaus.
“Ali já fiquei encantada com o tipo de fauna a que tivemos acesso, grupos de peixes que eu nunca nem tinha visto. Então começou a proposta do projeto. Foram dois anos para conseguir financiamento”, lembra.
Tanto no Calhamazon como em projetos posteriores, como o que proporcionou a Expedição DEGy Rio Negro, uma figura fundamental foi Roberval Pinto Ribeiro. Pescador desde que se entende por gente, Ribeiro havia ingressado como técnico de nível médio no Inpa pouco antes da primeira expedição do projeto norte-americano. Já conhecido pelos cientistas, foi o homem certo na hora certa para conduzir as coletas.
“Sempre pesquei e, quando fui contratado pelo Inpa, trabalhava em barco de pesca. Eu já tinha dado uma volta no mar em Belém, fui num daqueles barcos pesqueiros de camarão. Então já sabia mais ou menos como funcionava o arrasto de fundo. Mas comecei a fabricar essas redes durante o Calhamazon, porque muitas eram destruídas no decorrer do trabalho. Ainda no barco, fiz cinco delas”, lembra Ribeiro.
Um dos problemas do arrasto de fundo nos rios é justamente a perda de redes. Emaranhadas em troncos ou mesmo em algum desnível do leito fluvial, podem rasgar e se perder, ou mesmo causar acidentes sérios. Nada disso ocorreu durante a DEGy Rio Negro.
Lundberg, porém, lembra que pouco depois de encerrado o Calhamazon, um grupo de pesquisadores dos Estados Unidos, Venezuela e Peru sofreu um grave acidente no rio Orinoco, depois que a rede se prendeu em algum ponto do trajeto e o barco virou. Uma pesquisadora peruana morreu.
Desde então, os cuidados são redobrados. O arrasto deve ser feito em baixa velocidade e sempre a favor da correnteza, para evitar algo parecido com o ocorrido no Orinoco. Com o barco em movimento, normalmente uma lancha de alumínio com motor de baixa potência, uma pessoa lança os cabos que seguram a rede no rio e outra, logo em seguida, as portas. Enquanto o barco segue em linha reta por cerca de 15 minutos puxando a rede, um dos pesquisadores monitora o relevo do leito do rio por meio de um sonar.
Legado
Passada a experiência no Calhamazon, Ribeiro foi convidado a fazer parte de muitas outras expedições utilizando essa arte de pesca. Aos 70 anos e aposentado do Inpa, segue sendo o guia de pesquisadores nessa e em outras artes de pesca. Vivendo agora em Porto Velho, Rondônia, participa ainda de monitoramentos de fauna de peixes realizados por empresas e universidades.
“Ainda me ligam bastante, encomendando redes, chamando para algum novo projeto ou para construir gaiolas para piscicultura”, diz o pescador.
“Foi uma experiência que me abriu muitas portas. Ainda no doutorado [com bolsa da FAPESP], fui convidada para passar um tempo na Universidade do Arizona, organizando o material coletado. Foi minha primeira vez nos Estados Unidos. Anos depois, recebi uma recomendação do Lundberg para um pós-doutorado na Smithsonian Institution, sob supervisão do professor Richard Vari. Esse período me rendeu uma experiência de vida marcante, com aprendizado enorme e uma publicação superimportante, que me ajudou a conseguir meu emprego”,
diz Zanata, há 20 anos na UFBA, onde recentemente se tornou professora titular.
Py-Daniel já era pesquisadora do Inpa quando entrou para o projeto, mas graças a ele ingressou no doutorado na Universidade Duke, e o finalizou na Universidade do Arizona, ambas nos Estados Unidos, sob orientação de Lundberg. Desde então, a pesca de arrasto de fundo foi utilizada pelo Inpa e outras instituições em muitas outras áreas da Amazônia.
“É um tipo de fauna de peixe que só encontramos com esse aparelho. Para minha carreira foi fantástico, pois trabalho com bagres que ficam justamente nessa parte do rio e consegui coletar peixes para a minha tese que quase não existiam em coleções até então”, lembra.
Com idade para se aposentar pelo MZ-USP, Oyakawa até admite deixar o trabalho de bancada, mas as expedições devem continuar fazendo parte dos seus dias.
“Depois de trabalhar 40 anos, é natural que eu pense em me aposentar, mas para me ver livre de algumas obrigações. Conheço gente em vários lugares do Brasil e se me chamarem para uma expedição vou com todo o prazer. Eu gosto de estar no campo, é algo que não tem preço para um biólogo, e fico muito contente de ter trazido para essa expedição jovens que ainda não conheciam a Amazônia”, encerra.
Para acompanhar os outros episódios do Diário de Campo, acesse: agencia.fapesp.br/diario-de-campo.
*O conteúdo foi originalmente publicado pela Agência FAPESP, escrito por André Julião e Phelipe Janning
As informações apresentadas neste post foram reproduzidas do Portal Amazônia e são de total responsabilidade do autor.
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