Um estudo da Universidade de Scranton, Pensilvânia (EUA), acompanhou prospectivamente, por dois anos, tentativas de auto mudança de 200 pessoas que fizeram resoluções de Ano Novo. O objetivo foi compreender determinantes, meios de enfrentamento e a história de recaídas.
Setenta e sete por cento mantiveram suas promessas por uma semana, mas apenas 19% por dois anos. A escassez de força de vontade e de capacidade de controle sobre velhos estímulos foi relatada como os maiores dificultadores para a manutenção das resoluções. O abandono das metas atingiu quatro em cada cinco pessoas.
O estudo não revela quantos pediram por paz e motivaram seu comportamento nesta direção. Para a realização pessoal e evolução humanitária impõe-se um estado de paz. Sem ela não se constrói agenda comum, pois obstruções impedem o caminhar e os passos se perdem no divisionismo. Paz é relacionamento com conflitos equacionados, não significando a absoluta ausência do conflito, mas sim sua capacidade de superação.
A paz necessita de construção. Estudos e resoluções das Nações Unidas afirmam que esforços para manter a paz são necessários não apenas quando o conflito eclode, mas também reforçando estruturas, instituições e os mecanismos sociais que a sustentam, abordando causas profundas para evitar “a eclosão, escalada, continuação e recorrência do conflito”.
O termo “sustentar a paz” expande o conceito e reorienta o trabalho da ONU no domínio da paz e da segurança para incluir medidas proativas destinadas a reforçar esse bem-estar onde ela já existe. Sustentar a paz é um crescente e comum interesse para muitas nações, que têm demandado maior democratização do Conselho de Segurança da ONU, mecanismo supragovernamental vocacionado à manutenção da paz.
Diferentes laureados com o Prêmio Nobel da Paz, em conjunto com expoentes do humanismo e da religião, têm se manifestado sobre o extenso espectro dos determinantes da paz. Martti Ahtisaari, da Finlândia, Prêmio Nobel da Paz em 2008, disse: “Paz é uma questão de vontade”. De fato, para superar o conflito é preciso força de vontade para atenuar desejos, permitindo que estes se dissipem na disponibilidade da boa vontade para melhores meios e fins.
O ensinamento de Jesus Cristo sobre a “paz entre os homens de boa vontade” foi reiterado por Krishnamurti no século XX: “A guerra que agora parece iminente não pode ser evitada mediante convulsivos esforços diplomáticos e jogo das conferências. Nem pactos nem os tratados serão capazes de deter a guerra. O que pode pôr fim nessas guerras periódicas é a boa vontade. As ideologias são, por sua própria natureza, causadoras de conflito, antagonismo e confusão, e delas resulta a destruição da boa vontade”. (O Caminho da Vida, pág. 23)
A superação de efeitos negativos de diferentes posições e até ideologias não significa abrir mão de convicções pessoais, mas compreender que as defesas radicais surgem em contraposição a modelos insatisfatórios, gerando antagonismos que, retroalimentados, com o tempo acabam sendo mais importantes do que a própria motivação inicial que deu origem ao processo.
O pensamento divergente não é, de per si, causador da violência, mas sim as tentativas de sua repressão. Portanto, as democracias que permitem o livre pensamento, dentro dos parâmetros da justiça, humanitários, da não violência, livres do ódio e de posições discriminatórias, podem perfeitamente lidar com posições divergentes sem que estas resultem em violência. Os questionamentos próprios do livre pensar em busca de meios/métodos mais eficazes para atingir o bem comum são perspectivas saudáveis. Nesse sentido, os desafios nacionais e globais, de forma resolutiva, devem ser abordados com fortes alianças de consenso humanitário, como os tratados sobre Direitos Humanos.
O ponto de inflexão tem sido a perda de objetivo, que é bem comum. O que significa isso? A realização humana implica considerar fatores basilares, indispensáveis para o ser humano, já sacralizados como Direitos Humanos e pontuados em Índices de Desenvolvimento Humano (IDH). Esses valores e metas estão internalizados em constituições nacionais de democracias conscientes e ecológicas, como é o caso do Brasil.
Trata-se da sacralização do bem-estar comum, o direito à “saudável qualidade de vida” para o presente e o futuro. Muhammad Yanus, Nobel da Paz de 2006, de Bangaladesh, afirma: “A paz está ameaçada por injustiças econômicas, sociais e políticas, ausência de democracia, degradação ambiental e ausência dos direitos humanos”.
Em essência, as condições basilares que sustentam as relações entre paz e direitos humanos está bastante clarificada. Não exige maiores aportes da filosofia, a não ser para estabelecer conexão com novos cenários complexos. Considera-se que os esforços de Sócrates, Platão, Aristóteles, da Pólis à República e todos os determinantes da democracia foram também reforçados posteriormente na busca de Liberdade, Igualdade e Fraternidade, que revolucionaram o mundo ao final do século XVIII.
Mas apesar dos avanços conceituais e conquistas sociais, ao longo dos séculos houve continuidade de violência, seja por força de convulsões sociais decorrentes de busca por justiça, poder e até mesmo por questões banais, como por exemplo a fuga de um cão grego de casa que levou à guerra Grécia e Bulgária em 1925. O dono do animal atravessou a fronteira para buscá-lo e foi baleado, o que deu origem a uma batalha que vitimou uma centena de soldados – não se teve mais notícia sobre o paradeiro do cão.
Há situações em que os conflitos são ancestrais e ninguém mais sabe ao certo como começou. Krishnamurti disse, sobre o conflito Paquistão-Índia, quando se afirmava que a não tomada de posição, a inação, seria crime: Senhor, por que chamamos crime à inação? Segundo vós, só há duas maneiras de atender a esse problema, a saber: ou tornar-se pacifista ou empunhar um fuzil. Em outras palavras, desejais que a vossa ação seja aprovada, dizeis: “sou pacifista” ou “tenho um fuzil”, e essa etiqueta (…) vos satisfaz e pensais ter resolvido o problema. (…) (Que Estamos Buscando? pág. 219-220).
Quem assiste a troca de guarda diária na fronteira Paquistão-Índia nas cidades de Attari e Wagah pode ver a dimensão do conflito, retratada em folclórica coreografia militar que celebra, com torcidas, sua histórica inimizade.
O conflito se explicita no pensamento dual que muitas vezes resulta em agressão. Aquele que agride interrompe, de imediato, qualquer capacidade de diálogo para a resolução do conflito. Assim, não resta dúvida sobre a necessidade do fortalecimento da justiça também em nível supranacional, do imediato posicionamento global em busca de soluções justas e contra a agressão, para que esta não se transforme na perigosa perenidade circular agressão-resposta que devastou a civilização nos conflitos mundiais do século XX.
Hoje, no apogeu deste contexto de violência, se insere o terrorismo, que faz vítimas a esmo acendendo estopins de crises que posteriormente resultam em tragédias como a que assola o território de Gaza.
Mesmo pactos civilizatórios importantes como as convenções de Genebra e legislações internacionais que sustentam a Corte de Haia pouco podem fazer para refrear as barbáries provocadas pelas guerras, uma vez que ainda sobrevivem duras linhas de pensamento estratégico-militar que defendem que o fato de empreender cuidados para se evitar derramamento de sangue em guerra pode implicar em enfraquecimento e desvantagem para a atuação militar. Portanto, a falta de compaixão acaba imposta por uma “fantasia lógica” de puro conceito de violência, segundo argumenta o estrategista prussiano Carl von Clausewitz, cuja teorização exposta em sua obra “Da Guerra” angariou admiração nos meios militares.
Compaixão é requisito essencial para a humanidade na perspectiva preventiva de conflitos violentos. É o reconhecimento de seus iguais, da capacidade de empatia. Kailash Satyarthi, da índia, Nobel da Paz de 2014, afirmou: “Estamos conectados através da internet de alta velocidade. Trocamos nossos bens e serviços em um único mundo-mercado, milhares de luzes nos conectam de canto a outro canto do globo. Mas há um sério desconectar, e isso é uma falta de compaixão.”
O macro e o micro se confundem no reino da violência. Compreender a violência em processos sociais amplos não pode deixar de considerar o cotidiano. Está longe de minhas intenções adentrar o terreno da violência sob o foco da antropologia, o que pode levar a uma naturalização para longe da inteligência emocional que o tema exige. Nem é meu objetivo tratar aqui de criminalidade, objeto de estudos aprofundados por áreas como a Psicologia Forense. Assim, encaminho o tema na perspectiva de Veena Daz, antropóloga indiana que enfoca violência considerando sua dimensão ativa: “o que produz, que relações transforma e como se dão essas transformações”.
Aqui vale abrir parênteses para considerar o quão importante é a comunicação não violenta nas relações sociais, desde a instância interpessoal diária até seus aspectos institucionais. A crítica gratuita, os julgamentos frívolos e rotulagens, visando desqualificação, acabam por criar abismos dentro de famílias, no trabalho, entre instituições, quando não efeitos bem piores. Esses processos de violência de linguagem são absolutamente dispensáveis e poderiam ser evitados, se os autores reconhecessem os malefícios e perenidade de seus efeitos. As redes sociais têm amplificado a falta de habilidade nas relações humanas, o que é ainda pior quando se considera a criminosa produção das fake news, fabricadas para destruir aquilo que contraria interesses.
Outro ponto fundamental a considerar é a atual dimensão ampliada do risco trazido pela violência entre diferentes grupamentos humanos. Henry Barraud, musicólogo e humanista, definiu o século XX como “o ano da barbárie armada da tecnologia”. Que possamos escapar do belicismo nacionalista tecnológico do século XXI, inclusive nuclear, pois a barbárie das agressões persistem, como estopins de guerras que contam com potencial armamentista global anual e lobístico estimado em aproximadamente 3 trilhões de dólares.
Também foi dito por diversas vezes, na tribuna do Prêmio Nobel, que as únicas pessoas que realmente podem fazer a paz são as partes do conflito. Antonio Guterrez declarou, quase às vésperas do último Natal, sobre a decisão limitadíssima de Conselho de Segurança da ONU para o estabelecimento da paz em Gaza: “Um cessar-fogo humanitário é a única maneira de começar a responder às necessidades desesperadas do povo de Gaza e acabar com seu pesadelo”. Atacando diretamente Israel, ele disse que o “problema real” com a entrega de ajuda a Gaza é a “ofensiva” israelense. Sem dúvida, a reação exacerbada tirou de Israel a capacidade de exercer direito de justiça frente aos crimes cometidos pelo Hamas. Este, por sua vez, com mãos manchadas de sangue, acusa a “máquina de guerra sionista”.
“Perdemos o sentimento de humanidade; reconhecemo-nos responsáveis somente perante a classe ou grupo a que pertencemos” afirmou Krishnamurti. (O Egoísmo e o Problema da Paz, pág. 84). Os problemas históricos entre nações e diferentes grupos referentes à paz, ou o perdão, nos remetem ao axioma basilar do inconsciente de Freud, bem retratado nas palavras de Gabriel Garcia Márquez, prêmio Nobel da Paz em 1982: “O que importa na vida não é o que acontece, mas aquilo do que você se lembra e como você se lembra”. Freud, aplicando a teoria do inconsciente, provavelmente acrescentaria” aquilo que te motiva, sem que você se lembre”.
Cristo foi revisitado por Freud quanto ao perdão, no “perdoai para que sejam perdoados”, ou, em outras palavras e em sentido terapêutico, livrem-se dos males pela raiz. Essa capacidade restaurativa no mundo tem sido para poucos, considerando os velhos conflitos históricos. “A paz não é unidade na semelhança, mas unidade na diversidade, na comparação e conciliação de diferenças”, disse Mikhail Gorbachov, que defendia a ausência da violência como valor ético.
Al Gore, agraciado com o Nobel da Paz de 2007, abordou o desafio de aliança global diante da escala de risco climático em que se encontra a Terra: “Nós, a espécie humana, estamos confrontando uma ameaça planetária – o desafio de sobrevivência de nossa civilização, que está crescendo mesmo enquanto estamos aqui conversando”.
O contexto global atual necessita de encaminhamentos prioritários para resolução de seus desafios. A humanidade enfrenta diversas ameaças à sua sobrevivência, trazidas por sua ação de extrapolamento aos limites do planeta na atual época do Antropoceno, em função da ampliação das atividades geradas por modelo econômico predador, que estão provocando o rompimento de fronteiras planetárias, fatos estabelecidos e cientificamente fundamentados pelo Centro de Resiliência de Estocolmo.
Não resta dúvida de que a humanidade, fragilizada com a instabilidade geopolítica de mais de uma centena de conflitos armados, necessita de conciliação global que permita espaço e foco para enfrentamento da questão climática, essencial para sua sobrevivência.
A semeadura da paz é vital. De um estado de paz dependerá o sucesso global para enfrentamento das mudanças climáticas. Shimon Perez, Nobel da Paz em 1994, afirmou: “Houve um tempo em que a guerra era travada por falta de escolha. Hoje a paz é a opção “sem escolha”. Sobre as dicotomias nas relações internacionais, que se distanciam da colaboração multilateral, afirmou: “Os países costumavam dividir o mundo em seus amigos e inimigos. Não mais. Os inimigos agora são universais – pobreza, fome, radicalização religiosa, desertificação, drogas, proliferação de armas nucleares, devastação ecológica”.
Esperemos que o ano de 2024 seja um ano de crescimento para a consciência global e mais um degrau rumo à paz e à sustentabilidade planetária — e que a sociedade humana tenha determinação e boa vontade para manter essa decisão.
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