Este é um momento crítico com relação à obra mais danosa da Amazônia. Na segunda-feira, 18 de dezembro, entrou na pauta do plenário da Câmara dos Deputados, em regime de urgência, o PL 4994/2023 [1, 2]. O PL declara a rodovia BR-319 (Manaus-Porto Velho) como “infraestrutura crítica, indispensável à segurança nacional” e exige que a obra seja licenciada e as verbas para construção sejam alocadas imediatamente.
Art. 6º do PL lê: “Fica a BR-319 enquadrada como obra de infraestrutura prioritária em quaisquer planos nacionais de desenvolvimento ou de aceleração econômica”.
Art. 7º do PL lê: “Fica autorizada a utilização de doações recebidas em espécie pela União destinadas a realização de ações não reembolsáveis de promoção da conservação e do uso sustentável da Amazônia Legal, apropriadas em conta específica sob custódia do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), na obra pública destinada à recuperação, pavimentação e aumento de capacidade da rodovia.”.
Em outras palavras, além dos enormes impactos dos atores e processos da região AMACRO (Acre, Amazonas e Rondônia) migraram para muito do que resta da floresta amazônica [3-6], o PL até implica usar o Fundo Amazônia para construir a estrada, o que destruiria completamente a credibilidade deste mecanismo para arrecadar verbas para conservação na região. O Ministro dos Transportes já havia anunciado a intenção de usar dinheiro do Fundo Amazônia para viabilizar a parte ambiental do projeto [7], e o atual PL vai além e quer este dinheiro também para pagar o próprio asfalto.
As duas casas do Congresso Nacional são efetivamente controladas pela bancada ruralista e aliados, apenas a Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA) propriamente dito tendo 72,9% dos votos na Câmara com 374 de 513 cadeiras e 61,7% no Senado com 50 de 81 cadeiras [8]. Este fato faz com que a entrada em plenário representa um perigo enorme desta obra se realizar no futuro próximo, com consequências irreversíveis e fora do controle do governo.
O provável impacto da BR-319 vai muito além da estreita faixa ao longo da rodovia que é o foco exclusivo do EIA-RIMA [9] e de praticamente toda a discussão sobre a obra. Levaria os atores e processos do ‘arco de desmatamento’ para todas as áreas já ligadas a Manaus por estrada, inclusive a Roraima [10], e também para a vasta área “Trans-Purus” na parte ocidental do Estado do Amazona [11]. As rodovias que ligariam à BR-319 para abrir esta região crítica, como a AM-366, e grandes projetos nessa área como o projeto massivo planejado de gás e petróleo “Área Sedimentar do Solimões’ [12-14], são, de fato, parte do projeto maior da BR-319. Não são assuntos separados. Inclusive, o grupo de lobby “Amigos da BR-319” está ativamente promovendo também a AM-366 [15]. O enorme dano deste fato é a grande “elefante na sala” em toda a discussão da BR-319.
A BR-319 é promovida por políticos como sendo um vetor de “sustentabilidade” [16], inclusive na justificativa no texto do PL. O atual ministro dos transportes até alega que a BR-319 seria a “rodovia mais sustentável e mais verde do planeta” [7]. O próprio Presidente Lula tem falado que a obra poderia ser viabilizada se os prefeitos na área da estrada fossem fazer um “compromisso com a preservação” [17, 18]. A desconexão total destes discursos com a real situação seria difícil exagerar. Hoje, a BR-319 é, basicamente, uma terra sem lei, onde a grilagem das terras [19], a exploração ilegal da madeira [20], a construção de ramais ilegais [11, 21, 22], e o desmatamento galopante [23] são as principais atividades.
É interessamte que o autor da PL 4994/2023 é um deputado federal representando Rondônia, estado que é a maior fonte de migração dos processos de destruição para a BR-319 e para outros focos de desmatamento no sul do Estado do Amazonas, como a BR-230. A invasão das áreas ao longo da BR-319 está ocorrendo do sul para o norte. Certamente, na hora de invadir a vasta região Trans-Purus a partir da BR-319, o fluxo também virá desta direção.
Infelizmente, uma vez aberta áreas por estradas, o grosso do que acontece está fora o controle do governo. Não segue os planos anunciados para governança e sustentabilidade, como aconteceu nos casos passados da BR-364 e BR-163. Mudar este quadro vai levar muito tempo — muito além do mandato e qualquer político. E no caso da BR-319 e estradas associadas como a AM-366 e a AM-343, seguir abrindo estradas com base de um discurso de governança vai frontalmente contra o interesse nacional do Brasil [24].
Manter a floresta justamente na área a ser aberta para destruição é essencial até para manter o abastecimento d’água para a maior cidade do País, pois o São Paulo depende da água que é reciclada pelas árvores na região Trans-Purus e transportada ao sudeste brasileiro pelos ventos conhecidos como “rios voadores” [25-30]. O desmatamento dessa área também liberaria o enorme estoque de carbono na floresta e no solo da área, o que seria um empurro fatal para o aquecimento global descontrolado. O Brasil seria uma das maiores vitimas se isto acontecer [31].
Este desastre não é inevitável ainda, pois o Brasil pode decidir não seguir com esses obras. A inviabilidade econômica da BR-319 [32, 33] facilitaria uma decisão de não fazer, mas exigiria coragem política que hoje está faltando [34]. Atualmente apenas o Ministério do Meio Ambiente está agindo para controlar o desmatamento, enquanto o resto do governo promove projetos como a BR-319 que implicam em vastas áreas de desmatamento ao longo das próximas décadas. Com relação às ações que o Presidente Lula pode tomar, o primeiro é de vetar este PL, presumindo que for aprovado pelo Congresso, mesmo que será provável os ruralistas e aliados terem os 60% dos votos para derrubar o veto. Também é urgente o Lula controlar seus ministros anti-ambientais, e alguns, como o ministro dos transportes, precisam ser substituídos logo.
A imagem que abre este artigo é de autoria de Alberto César Araújo e mostra a BR-319 no trecho entre Humaitá e Realidade no sul do Amazonas.
Notas
[1] Câmara dos Deputados. 2023. Projeto de Lei Nº , de 2023 (Do Sr. Maurício Carvalho). Câmara dos Deputados, Brasília, DF.
[2] Rádio Mix Manaus. 2023. Projeto que torna BR-319 “indispensável à segurança nacional” ganha urgência na Câmara dos Deputados. 18Horas, Rádio Mix Manaus, Rede de Rádio Difusão Novidade Técnica Ltda, 18 de dezembro de 2023.
[3] Fearnside, P.M. 2022. Por que a rodovia BR-319 é tão prejudicial. Amazônia Real.
[4] Fearnside, P.M., 2020. BR-319 – O começo do fim para a floresta amazônica brasileira. Amazônia Real, 06 de outubro de 2020.
[5] Santos, J.L., A.M. Yanai, P.M.L.A. Graça, F.W.S. Correia & P.M. Fearnside. 2023. Amazon deforestation: Simulated impact of Brazil’s proposed BR-319 highway project. Environmental Monitoring and Assessment 195: art. 1217.
[6] Ferrante, L. & P.M. Fearnside. 2023. Picos de fumaça em Manaus não podem ser atribuídos às queimadas do Pará, como afirma o governo do Amazonas. Amazônia Real, 14 de novembro de 2023.
[7] ClimaInfo. 2023. Recursos do Fundo Amazônia podem parar na BR-319, que corta a floresta. ClimaInfo, 18 de agosto de 2023.
[8] FPA (Frente Parlamentar da Agropecuária). 2023. Todos os membros. [Atualizado em 25/07/2023].
[9] DNIT (Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes). 2020. BR–319/AM: EIA – Estudo de Impacto Ambiental Segmento do km 250,00 ao km 655,70. DNIT, Brasília, DF. 2.795 p.
[10] Barni, P.E., P.M. Fearnside & P.M.L.A. Graça. 2018. Simulando desmatamento e perda de carbono na Amazônia: Impactos no Estado de Roraima devido à reconstrução da BR-319 (Manaus-Porto Velho).In: Oliveira, S.K.S. & Falcão, M.T. (Eds.). Roraima: Biodiversidade e Diversidades. Editora da Universidade Estadual de Roraima (UERR), Boa Vista, Roraima. p. 154-173.
[11] Fearnside, P.M., L. Ferrante, A.M. Yanai & M.A. Isaac Júnior. 2020.Região Trans-Purus, a última floresta intacta. Amazônia Real.
[12] Fearnside, P.M. 2020. Os riscos do projeto de gás e petróleo “Área Sedimentar do Solimões”. Amazônia Real, 12 de março de 2020.
[13] Fearnside, P.M. 2022. O interesse financeiro de Putin nas rodovias da Amazônia brasileira. Amazônia Real, 03 de maio de 2022.
[14] Fearnside, P.M. 2023. O leilão do “Fim do Mundo” para exploração de gás e petróleo. Amazônia Real, 14 de dezembro de 2023.
[15] Amazonas em Tempo. 2022. Amigos da BR-319 propõem volta do DER-AM, ponte sobre o Solimões e Rodovia “Transpurus”. Amazonas em Tempo, 20 de setembro de 2022.
[16] Amazonas em Tempo. 2020. BR-319 será exemplo sustentável para o mundo, dizem deputados. Amazonas em Tempo, 22 de setembro de 2020.
[18] Fearnside, P.M. 2023.Lula e a rodovia BR-319. Amazônia Real, 24 de janeiro de 2023.
[17] Rádio Difusora Manaus. 2022. Lula fala para o Amazonas na Rádio Difusora. Youtube, 23 de junho de 2022.
[19] Ferrante, L., M.B.T. Andrade &, P.M. Fearnside. 2021. Grilagem na rodovia BR-319. Amazônia Real.
[20] Andrade, M.B.T., L. Ferrante & P.M. Fearnside. 2021. A rodovia BR-319, do Brasil, demonstra uma falta crucial de governança ambiental na Amazônia . Amazônia Real, 02 de março de 2021.
[21] Fearnside, P.M., L. Ferrante & M.B.T. de Andrade. 2020. Ramal ilegal a partir da rodovia BR-319 invade Reserva Extrativista e ameaça Terra Indígena. Amazônia Real, 09 de março de 2020.
[22] Observatorio BR-319. 2023. Nota Técnica nº 04 | Julho 2023 Abertura e expansão de ramais em quatro municípios sob influência da rodovia BR-319 . Foto: Carolle Alarcon Parte 02. Observatório BR-319, Manaus, AM. 27 pp.
[23] Chaves, L. 2022. Amazonas consolida vice-liderança em desmatamento com avanço na BR-319 e fronteira com estados mais devastados. InfoAmazonia, 05 de dezembro de 2022.
[24] Fearnside, P.M. 2021. Audiências públicas BR-319: Um atentado aos interesses nacionais do Brasil e ao futuro da Amazônia. Amazônia Real, 28 de setembro de 2021.
[25] Fearnside, P.M. 2015. Rios voadores e a água de São Paulo. Amazônia Real. https://bit.ly/3qykIsY
[26] Keys, P.W., R.J. van der Ent, L.J. Gordon, H. Hoff, R. Nikoli & H.H.G. Savenije. 2012. Analyzing precipitationsheds to understand the vulnerability of rainfall dependent regions. Biogeosciences 9: 733–746.
[27] van der Ent, R.J., H.H.G. Savenije, B. Schaefli & S.C. Steele-Dunne. 2010. Origin and fate of atmospheric moisture over continents. Water Resources Research 46: art. W09525.
[28] Arraut, J.M., C.A. Nobre, H.M. Barbosa, G. Obregon & J.A. Marengo. 2012. Aerial rivers and lakes: Looking at large-scale moisture transport and its relation to Amazonia and to subtropical rainfall in South America. Journal of Climate 25(2): 543-556.
[29] Fearnside, P.M. 2004. A água de São Paulo e a floresta amazônica. Ciência Hoje 34(203): 63-65.
[30] Ferrante, L., M.B.T. de Andrade, L. Leite, C.A. Silva Junior, M. Lima, M.G. Coelho Junior, E.C. da Silva Neto, D. Campolina, K. Carolino, L.M. Diele-Viegas, E.J.A.L. Pereira & P.M. Fearnside. 2021. BR-319: O caminho para o colapso da Amazônia e a violação dos direitos indígenas. Amazônia Real, 23 de fevereiro de 2021.
[31] Fearnside, P.M. & R.A. Silva. 2023. A seca na Amazônia em 2023 indica um futuro desastroso para a floresta tropical e seu povo. The Conversation, 06 de novembro de 2023.
[32] Fleck, L. 2009. Eficiência Econômica, Riscos e Custos Ambientais da Reconstrução da BR 319. Série Técnica, no. 17. Conservation Strategy Fund (CSF), Lagoa Santa, MG, 53 p.
[33] Teixeira, K.M. 2007. Investigação de Opções de Transporte de Carga Geral em Conteineres nas Conexões com a Região Amazônica. Tese de doutorado em engenharia de transportes. Universidade de São Paulo, Escola de Engenharia de São Carlos, São Carlos, SP. 235 p.
[34] Fearnside, P.M. 2023. O que o Brasil deveria ter dito na COP28, mas não disse. Amazônia Real, 05 de dezembro de 2023.
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