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Raimunda de Souza tem 62 anos. Nasceu na Amazônia, num pedaço de floresta banhado por lagos e igarapés. “Um paraíso”, é como ela define o local onde seus pais, avós e bisavós também abriram os olhos pela primeira vez. A memória familiar de Raimunda não alcança limites geográficos para além de Oriximiná, no Pará. O município tem 107,6 km², uma área maior que a de Portugal.
Foi nessa imensidão de floresta que as filhas e os netos de Raimunda também aportaram os pés no mundo, mais especificamente na comunidade de São Tomé, uma das quatro situadas no Lago Maria Pixi, onde vivem outras 183 famílias.
Comunidades tradicionais inviabilizadas
A Comissão Pró-Índio de São Paulo (CPI-SP) publicou uma análise desse licenciamento ambiental, e apontou falhas graves no EIA, como a afirmação de que “na área do empreendimento não existem comunidades, sejam elas tradicionais ou não”, ou a de que os locais de lavra mineral são “desprovidos de qualquer ocupação humana”.
Prováveis destinatários do impacto da atividade, os ribeirinhos do Maria Pixi só descobriram que a mineradora começaria a escavar o subsolo nas proximidades de suas casas quando escutaram o barulho das máquinas derrubando a floresta. “Nós não fomos consultados”, afirma Jesi Ferreira de Castro, coordenador da comunidade de São Francisco, em referência ao direito assegurado pela Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) aos povos e comunidades tradicionais.
A licença de operação foi concedida pelo Ibama à mineradora no fim de 2018. Em 2019, os moradores das comunidades São Francisco, São Tomé, São Sebastião e Espírito Santo solicitaram que as obras no Aramã fossem paralisadas até que a empresa realizasse um estudo de impacto específico para as comunidades; uma consulta prévia, livre e informada às comunidades tradicionais ribeirinhas; e que fosse acordado um plano de mitigação e indenização. A reivindicação foi negada pela Mineração Rio do Norte.
As tratativas entre a MRN e as comunidades foram suspensas durante o período mais crítico da pandemia de covid-19. Já a mineração, considerada atividade essencial pelo governo de Jair Bolsonaro, seguiu em ritmo acelerado. Imagens de satélite divulgadas pelas CPI-SP mostram que, entre maio de 2020 e outubro de 2021, o platô de 345 hectares foi inteiramente desmatado. “A fartura e o sossego também se acabaram”, disse Raimunda.
Impactos da mineração no Aramã
Morador da comunidade São Francisco, Humberto de Castro conta que a chegada da mineração à Serra do Aramã e o desmatamento feito no local a partir de 2019 geraram sérios problemas de segurança alimentar para as comunidades do entorno: “agora nós estamos sofrendo necessidade porque, no tempo em que o peixe fica ruim, a gente caça, e quase não tem mais. A gente esperava debaixo do piquiá.”
O piquiazeiro é uma árvore estratégica para prática de caça de espera naquela região, pois a flor do piquiá é muito apreciada por mamíferos como a paca, o caititu e o veado. Na borda do Platô Aramã, havia um exemplar centenário dessa árvore e uma pequena estrutura de madeira – chamada de mutá – onde os ribeirinhos costumavam se abrigar para aguardar a chegada dos animais. Ao lado de castanheiras e outras tantas espécies manejadas pelos povos da floresta, o piquiazeiro tombou para dar lugar à extração mineral. Se já não há flores perfumadas para atrair as caças, sobram ruídos de máquinas trabalhando para afastá-las dali. “Hoje, se quiser pegar algo, você vai passar noite em claro na mata”, diz Iderval Cavalcante, coordenador da comunidade de São Tomé.
Os frutos coletados para consumo próprio ou para geração de renda – como a castanha, o uxi, o patauá e a bacaba – também escassearam. Raimunda de Souza conta que muitas árvores frutíferas foram derrubadas, e que os moradores do entorno ficaram proibidos de acessar o platô. “Pra nós é muito triste ver as nossas florestas, nossas matas se acabando desse jeito. E a água também. Antes a água não era dessa cor, se antes era uma água clara, hoje não é mais, já tá uma água vermelha”, lamenta.
Na comunidade de São Sebastião, os moradores relatam que onças começaram a matar os porcos criados para subsistência. “Essas onças, não tinha aí. Elas vêm quando a fome aperta, porque correram com elas de lá porque parte da floresta foi derrubada”, diz o coordenador da comunidade, Diego Gato.
A Mongabay contactou a MRN inúmeras vezes entre 2021 e 2023 para discutir o empreendimento no Aramã. Por email, a assessoria de comunicação disse que a mineradora havia optado por não responder aos questionamentos.
“Nós nos tornamos pessoas estranhas”
Quando a Flona foi criada, em 1989, com 429 mil hectares, havia comunidades tradicionais centenárias dentro de seus limites. Havia também o maior projeto de exploração de bauxita em operação no Brasil desde a década de 1970. O decreto de criação da UC proibiu a ocupação humana na área, mas resguardou a continuidade da exploração de recursos naturais em escala industrial.
O assentamento, de 67.749 hectares, englobou as moradias e alguns roçados das comunidades. Entretanto, grande parte dos locais onde os ribeirinhos realizavam atividades essenciais, como caça, pesca e extrativismo (de frutos, madeira, palha, cipós, óleos, resinas, cascas de árvores etc.) ficou de fora – no interior da Flona.
“Esses locais, chamados ‘pontos de trabalho’ são parte fundamental do território ocupado pelos ribeirinhos, embora a porção delimitada inclua apenas os pontos de morada e sedes comunitárias”, explica o geógrafo Hugo Gravina, que pesquisa a dinâmica de ocupação ribeirinha na região.
Durante os mais 30 anos que se seguiram à criação da Flona, as comunidades ribeirinhas continuaram a utilizar esses “pontos de trabalho”. Mas, com o início das obras no Aramã, funcionários do Instituto Chico Mendes de Biodiversidade (ICMBio) começaram a monitorar as atividades das famílias ribeirinhas. Em março de 2021, uma operação do ICMBio batizada de Operação Caipora gerou intenso mal-estar entre os comunitários.
Multado em 40 mil reais por plantar em quatro hectares dentro dos limites da Flona, um morador da comunidade de São Sebastião relatou a truculência da abordagem à CPI-SP: “Eles [policiais e funcionários do ICMBio] chegaram em casa, cercando toda a área. Um por trás, outro pelo lado com a mão no gatilho do fuzil. Fiquei até sem reação”. O homem fazia farinha com a mulher e a filha quando foi surpreendido pelos agentes armados. Outro ribeirinho, morador da comunidade de São Sebastião, multado em 20 mil reais, disse que “nunca havia sido avisado, formal ou informalmente, da proibição de se trabalhar ali”.
Assustados com a postura repressiva do órgão gestor da Flona, os moradores estão temerosos em relação ao futuro: “parece até que somos gente estranha. Sem fazer roça, como a gente vai viver?”, pergunta Humberto de Castro.
De acordo com relatos dos comunitários ouvidos pela reportagem, todos os autuados na Operação Caipora são nascidos nas comunidades do Maria Pixi, embora um documento enviado pelo ICMBio ao Ibama afirme que eles só ocuparam a Flona recentemente, a partir de 2018. A pesquisa realizada por Gravina mostra que as áreas da Flona utilizadas pelos atuais moradores das comunidades ribeirinhas, em muitos casos, são as mesmas manejadas pelos seus bisavôs, avôs, remontando ao histórico de ocupação de quatro a seis gerações.
Esses grupos que já habitavam a Flona quando ela foi criada lutam para que seja reconhecido seu uso também nas áreas que conflitam com os interesses minerários ou madeireiros, mas esbarram na visão de sustentabilidade expressa pelo órgão ambiental. De acordo com o estudo publicado pela CPI-SP e conduzido pela pesquisadora Ítala Nepomuceno, o plano de manejo, documento que regulamenta a ocupação da Flona, “expressa profundo preconceito em relação às comunidades quilombolas e ribeirinhas”. Enquanto as práticas tradicionais são qualificadas como carentes de “critérios de racionalidade e sustentabilidade”, a MRN está associada à aplicação de conhecimento técnico-científico e ao uso de “tecnologias ambientais” para mitigação de impactos de suas atividades.
O ICMBio está revisando o plano de manejo da Flona e, apesar de reconhecer a ocupação humana na unidade de conservação, disse à Mongabay não saber se ali “existem atividades extrativistas e lícitas ou apenas atividades não extrativistas e ilícitas”.
Quem são os beneficiários do direito de consulta?
O parecer do Ibama justifica afirma que as comunidades ribeirinhas não se equiparam a povos tribais e que, portanto, não seria necessário realizar uma consulta nos moldes da Convenção 169 da OIT. Uma espiada rápida no portal da 6ª Câmara do Ministério Público Federal, responsável pelos temas relativos a povos indígenas e comunidades tradicionais, mostra uma interpretação oposta: o Enunciado 17 , editado em 2014, diz que “as comunidades tradicionais estão inseridas no conceito de povos tribais da Convenção nº 169 da Organização Internacional do Trabalho”.
Ao fazer prevalecer um entendimento diferente do explicado por Marés e adotado pelo MPF, o Ibama impede a caracterização das violações aos direitos dos ribeirinhos. Dessa forma, permite que outras instituições, como certificadoras e fabricantes de automóveis, tornem-se coniventes com os impactos socioambientais.
Risco de greenwashing?
A reportagem entrou em contato com Fiona Solomon, diretora executiva da ASI, e questionou se, durante o processo de certificação, os auditores ouviram os ribeirinhos do Maria Pixi sobre as controvérsias relativas à mineração no platô Aramã. De acordo com Solomon, o empreendimento não foi mencionado durante a auditoria.
Numa carta pública endereçada à ASI em fevereiro de 2022, a Human Rights Watch (HRW) recomendou, entre outros pontos, que a ASI desenvolva, “em seu padrão de direitos humanos, critérios focados na resultados sofridos pelas comunidades afetadas, em vez de se basear nos sistemas e processos de gestão que as empresas possuem.” O caso que chamou a atenção da HRW para a necessidade de aprimoramento nas normas adotadas pela ASI foi o de mineradoras certificadas na Guiné, no oeste da África, cujas atividades resultaram em graves violações de direitos humanos a comunidades locais.
De toda forma, aplica-se também à MRN o receio expresso na carta de que “auditorias que não acessam os impactos reais causados no chão contribuem para aumentar a preocupação com greenwashing por parte de múltiplos atores”. O greenwashing é um tipo de maquiagem verde, que cria um rótulo de sustentabilidade para práticas que envolvem algum tipo de prejuízo socioambiental.
Possibilidades de mudanças no horizonte
Entre as comunidades do PAE Sapucuá-Trombetas, a expectativa é que essa reavaliação sirva para o licenciamento do “Projeto Novas Minas”, que deverá desmatar e escavar 6.446 hectares de florestas nativas entre 2026 e 2042. O Platô Aramã já foi totalmente explorado está agora em fase de reflorestamento. Aos ribeirinhos do Maria Pixi, resta aguardar a implementação das medidas de compensação ambiental, que adquiriram um tom de favor da empresa às comunidades a partir do momento em que os impactos foram considerados indiretos.
De acordo com Lúcia Andrade, coordenadora executiva da CPI-SP, “é importante ressaltar que estudos capazes de avaliar os impactos cumulativos e sinérgicos ao longo de 40 anos de atividade minerária, em Oriximiná, são necessários e, até o presente, ausentes. Estudos dessa natureza contribuiriam para que pudéssemos compreender a real magnitude gerada pelos impactos da mineração sobre as comunidades locais e o meio ambiente.”
Enquanto essa avaliação não acontece, os ribeirinhos do Maria Pixi lutam como podem contra a invisibilidade: “a mineradora tem muito dinheiro e poder, e nós só temos a nossa palavra mesmo”, conclui Jesi Ferreira, responsável por grande parte da apuração desta reportagem.
*O conteúdo foi originalmente publicado pela Mongabay, escrito por Thaís Borges e Sue Branford
As informações apresentadas neste post foram reproduzidas do Portal Amazônia e são de total responsabilidade do autor.
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