Certa vez Franklin Delano Roosevelt, então presidente dos EUA, resolveu conversar pessoalmente com um candidato à suprema corte. Entre baforadas de charuto, mostrava-se maravilhado. Até o candidato afirmar que, uma vez ministro, decidiria conforme sua consciência. O encantamento se transformou em desaprovação. Roosevelt, com razão, queria um ministro alinhado com seu projeto. Não podia correr o risco de nomear alguém comprometido apenas com si próprio.
Os governos petistas se tornaram especialistas em indicar pessoas desalinhadas com suas políticas e com as expectativas de sua base. Cristiano Zanin, o último, se juntou à turma de ministros conservadores como Peluso, Mendes, Menezes Direito, Fux, Barbosa e Barroso – este último um pavão daquilo que a filósofa Nancy Fraser chama de “neoliberalismo progressista”, representado pelo avanço em matéria de costumes e representatividade, mas pelo retrocesso em economia e política externa.
Lula indicou Flávio Dino para o Supremo Tribunal Federal. Como na maioria das indicações, não deve haver problemas em sua aprovação pelo Senado. Dino, que sai do Ministério da Justiça e Segurança Pública para ocupar a cadeira da ministra Rosa Weber, aposentada recentemente, conta com o apoio de Gilmar Mendes e Alexandre de Moraes, dois dos mais bem articulados ministros da corte.
Dentre as possibilidades de escolha, Dino está longe de ser das piores. Embora haja a inadiável necessidade histórica de indicação de uma mulher negra para o posto, a tradição conservadora e aristocrática do direito reserva os tribunais para pessoas diferentes de Dino. Também em seu favor conta o fato de termos sua biografia em mãos, diferente de Zanin, o que diminui as chances de surpresas desagradáveis (sempre possíveis, como cuidou de nos mostrar Toffoli).
Dino, mesmo moderado, está à esquerda da maioria dos itens do cardápio do Direito, que inclui seus dois apoiadores na corte – e não podemos esquecer, jamais, do pecado original do poder judiciário: um poder conservador, com forte tendência reacionária e blindado do controle popular. É verdade que o STF acabou se tornando uma trincheira importante contra o bolsonarismo, mas não em razão de princípios progressistas e compromissos inadiáveis com a democracia, mas em função de ter se tornado um alvo preferencial da fração hegemônica da direita brasileira.
Moraes e seus colegas pesaram a mão e criaram uma admirável coesão contra os arroubos do ex-presidente e sua base. E assim fizeram por questão de sobrevivência – o que, definitivamente, não significa que haja discordância quanto a aspectos programáticos do bolsonarismo, principalmente quando se trata do neoliberalismo cavalgante de Paulo Guedes.
Aqui é importante reiterar: o fato de Dino estar comprometido com o governo e à esquerda dos futuros colegas não significa que não existam mulheres negras à altura e com capacidade de representar o projeto do governo Lula naquele espaço. Há. E espera-se maior sensibilidade quanto a isso nas próximas oportunidades, conjugando este critério com o indesviável compromisso de defesa dos direitos da classe trabalhadora.
Se Dino não foi a pior escolha, porém, o mesmo não se pode concluir quanto a Paulo Gonet, indicado para a Procuradoria-Geral da República. Sobram exemplos de que Gonet é um profundo reacionário. Não será surpresa se, ao primeiro sinal de sangue, ele incitar os tubarões do Ministério Público Federal contra o governo Lula, conduzindo ele próprio as viúvas do lavajatismo, sempre à espreita e ainda bem representadas no parlamento.
Ocupar espaços nos Três Poderes é fundamental para o avanço de qualquer projeto. Voltando a Roosevelt, a execução do New Deal só saiu do papel quando a suprema corte mudou de composição e permitiu que isso acontecesse. A ressaca da crise de 1929 certamente duraria mais algumas décadas se não fossem as políticas anticíclicas aplicadas nos EUA na década de 30, legitimadas, em boa parte, por decisões judiciais do órgão de cúpula.
No Brasil, a articulação entre Ministério Público Federal e STF foram fundamentais para que ocorresse o golpe de 2016. Enquanto o MPF se consolidava como célula do antipetismo, o Supremo pavimentou os caminhos para que o parlamento pudesse afastar Dilma mesmo sem ter cometido crime de responsabilidade. Não haveria golpe sem a chancela de uma corte cuja composição pouco mudou nos últimos sete anos.
Gonet é a porta na frente da qual o antipetismo irá campar, o que nos lembra Millôr Fernandes quando disse que, se errar é humano, botar a culpa nos outros também.
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