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TogglePopulação local é chave para regenerar mangues
Ameaçados pelo desmatamento e mudanças climáticas, os manguezais possuem realidades distintas na Mata Atlântica e Amazônia brasileira. Projetos locais tentam impedir repetição de erros
por Fabrícia Sterce
Distribuídos de Norte a Sul, do Amapá até Santa Catarina, os manguezais são uma ponte natural entre ambientes terrestres e marinhos. Localizados no encontro das águas doces dos rios com a água salgada do mar, a vida flui no sobe e desce das marés. Ambientes importantes pro ciclo de vida de muitos animais, os mangues têm ganhado destaque no combate às mudanças climáticas.
Segundo o Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC), eventos extremos serão cada vez mais comuns e intensos nos próximos anos. E as ocorrências de grandes secas, chuvas torrenciais, ciclones e ondas vão ficar cada vez menos espaçadas – ou seja, o tempo entre um desastre e outro vai diminuir.
O clima está entrando em colapso por causa da concentração de carbono na atmosfera, condições em que os manguezais são importantes aliados, dada sua capacidade extraordinária de armazenamento de carbono – chamada de “carbono azul”. Suas raízes ainda reduzem as erosões no litoral, funcionando como barreiras contra fortes ondas e inundações.
Ainda que aguerridos na mitigação da crise climática, de acordo com a ONU, os manguezais foram reduzidos pela metade nos últimos 40 anos em todo o mundo – 12% do que restou está no Brasil. Só a Amazônia abriga 80% dos manguezais de todo país. Lá também está a maior faixa costeira de mangues do planeta – cruzando Amapá, Pará e Maranhão, que juntos estocam mais do que o dobro que a própria floresta amazônica.
Apesar de serem bem preservados, os mangues da Amazônia Azul – chamada assim por essa imensa faixa de carbono capturado e armazenado no solo aquático – têm sofrido por causa do crescimento das zonas urbanas, da contaminação por lixo doméstico e industrial e da extração da madeira para além da subsistência comunitária.
São ações que impactam vertiginosamente na redução de áreas de manguezais, afetando a disponibilidade de várias espécies que servem de sustento às comunidades tradicionais, principais afetadas nesse processo. Em meio a maior seca da história da Amazônia, é preciso notar como os manguezais estão se adaptando às mudanças climáticas, garantindo a preservação dessa vegetação que fortalece a adaptação das comunidades mais vulneráveis aos eventos climáticos extremos.
Os moradores são os principais atores das soluções baseadas no mangue para adaptação climática. São eles que mapeiam e fazem intervenções, engajados na regeneração da vegetação, a partir de saberes próprios às características dos ecossistemas regionais – nas suas dimensões ambientais e humanas.
A população local depende do ecossistema para o sustento, e por isso desenvolve exemplares tecnologias sociais para regenerar os mangues. O Mangues da Amazônia, realizado pelo Instituto Peabiru e pela Associação Sarambuí, é um projeto socioambiental que tem foco na recuperação de áreas degradadas e na conservação de manguezais em Reservas Extrativistas Marinhas (RESEX) na costa nordeste do Estado do Pará. Com mais de 14 hectares de áreas de manguezal recuperadas e mais de 200 mil mudas plantadas, quando atingirem a fase adulta, as árvores terão a capacidade de sequestrar 440 toneladas de carbono por ano.
Em parceria com o Laboratório de Ecologia de Manguezal (LAMA), da Universidade Federal do Pará (UFPA), o projeto analisa a biomassa da floresta de mangues e produz pesquisas técnico-científicas baseadas no conhecimento das populações que já fazem o uso tradicional do mangue. O envolvimento das comunidades fortalece as atividades científicas. John Gomes, que é gestor do projeto, afirma que vale a pena convencer as pessoas da importância dos mangues. “Sem o envolvimento da comunidade, não ocorreria a manutenção do projeto. Não seria possível fazer a identificação de áreas a serem replantadas, para além de conflitos internos dentro das mesmas, nem mesmo as violências que acabam afetando o meio”.
Os moradores são os protagonistas no monitoramento de 35 hectares de bordas de áreas, onde os jovens denunciam impactos na comunidade e as crianças começam fazendo pequenas intervenções nas escolas e em suas casas. Com as pessoas mais engajadas a favor da conservação desta vegetação, o projeto desenvolve ações preventivas a partir de metodologias contextualizadas às características ecológicas e à realidade social da região. Pensando também nas diferentes gerações, integrando a ciência e o conhecimento tradicional comunitário.
A educação ambiental e a democratização da ciência com o modelo participativo de trabalho possibilitou gerar novos dados científicos sobre a biodiversidade dos manguezais amazônicos. Dados fundamentais para regeneração. “Estamos solucionando ou propondo soluções a partir de demandas da comunidade, escutando os comunitários. Conhecendo nomes de igarapés e rios que eles nomeiam, apelidos de lideranças locais, nomes populares da fauna e flora.”
As técnicas realizadas pelo Mangues da Amazônia já são procuradas para serem replicadas em outros territórios da Amazônia Legal.
Mata Atlântica em regeneração
A Mata Atlântica, que divide a costa do litoral brasileiro com a Amazônia, é o bioma mais devastado do país – com 88% de sua área original extinguida desde a colonização. A correlação entre as consequências climáticas e o desmatamento da Amazônia servem de alerta, para evitar um futuro de degradação parecido com o que foi feito na Mata Atlântica – que hoje se reinventa para sobreviver.
Pesquisadores brasileiros do Instituto Tecnológico Vale (ITV), da Universidade Federal do Pará (UFPA), da Universidade Federal da Bahia (UFBA) e da Universidade de São Paulo (USP) publicaram na editora Springer Nature dados que constataram que o nível de vulnerabilidade de manguezais à subida do mar é maior nos ecossistemas do Sudeste e do Sul. A pesquisa afirma que o crescimento urbano desordenado por rodovias, estradas e barragens construídas por ação humana são fatores capazes de ameaçar a sobrevivência dos mangues à medida que a temperatura regional aquece com o calor do concreto e o nível do mar sobe.
No último século, o Rio de Janeiro perdeu cerca de 40% das áreas de mangue, e se consolidou como um dos quatro estados que mais tiveram registros de perdas de vegetação de mangue ao longo dos últimos 20 anos – segundo dados da Fundação SOS Mata Atlântica e do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE).
O manguezal, um dos cartões-postais da Baía de Guanabara, em 1500 margeavam quilômetros do litoral carioca adentro. Hoje sua vegetação remanescente se concentra na APA (Área de Proteção Ambiental) de Guapimirim, localizada na Região Metropolitana do Rio de Janeiro.
Também conhecida como Pantanal Fluminense, a primeira unidade de conservação de manguezal do Brasil foi construída por ações de cidadania em uma luta demorada e árdua para proteger os mangues, uma luta que persiste até hoje, difundindo a importância da preservação da vegetação.
A expansão imobiliária e industrial assim como a extração de madeira são fatores que continuam trazendo impactos e destruindo manguezais. Para piorar o cenário, a Baía recebe diariamente cerca de 90 toneladas de detritos produzidos por sete municípios: Rio de Janeiro, Niterói, São Gonçalo, Duque de Caxias, Magé, Guapimirim e Itaboraí. São mais de 18 mil litros de esgoto doméstico por segundo, de acordo com estimativa da Associação Brasileira de Empresas de Limpeza Pública e Resíduos Especiais.
A participação das universidades, de organizações sociais e da comunidade é importante para pautar e dar força ao poder público. É a sociedade civil que atua como fiscalizadora no monitoramento do bem-estar dos mangues.
Mas, mesmo com profundos desafios, na última década a degradação desacelerou nos mangues do Rio de Janeiro. Um reflexo da atuação incisiva de grupos de proteção ambiental, inspirada por esse ecossistema resiliente.
A APA Guapimirim é a única área da Baía de Guanabara a apresentar aspectos próximos aos do período anterior à colonização do país, características ecológicas e biológicas preservadas que ajudam na manutenção da Baía. Lá, o emaranhado de troncos e raízes dos mangues operam como peneiras, que seguram contaminantes químicos, lixos e resíduos que iriam direto para o mar carregados pelos rios que cortam as cidades.
A Cooperativa Manguezal Fluminense – reunida pelo Conselho da APA no propósito de integrar as comunidades de pescadores artesanais e artesãs que moram em cidades ao redor da Baía – hoje trabalha com o reflorestamento dos mangues e o turismo de base comunitária. A iniciativa oferece passeios e visitas técnicas a pesquisadores, gerando economia a partir do olhar e dos saberes locais. O projeto faz periodicamente ações de reflorestamento, no combate ao desmatamento e a degradação ambiental de áreas de manguezal.
Desde o início do projeto, a restauração de áreas verdes e os corredores ecológicos permitiram que animais se sentissem seguros para voltar para casa. A Cooperativa, que até então contabilizava cerca de 160 espécies de pássaros, agora já soma mais de 242 espécies presentes na área.
Alaildo Malafaia, presidente da Cooperativa, é ex-pescador e atualmente empreendedor. Os longos anos de atuação como pescador o transformaram num profundo conhecedor dos rios e manguezais da Baía de Guanabara, que hoje se dedica à regeneração.
“Tem gestão de unidades de conservação que o gestor faz papel de opressor, a população do entorno, ou que já estava ali antes, se sente oprimida e isso dificulta a relação. Os próprios gestores perdem, porque os projetos ganham muito com o nosso conhecimento. Hoje a gente tem o poder de transformar as pessoas também, pelo que aprendemos com elas, para desenvolver o que a gente já sabia, mas não sabia que sabia”, diz.
Os cooperados já recuperaram 150 hectares de área de manguezal, e junto com a ONG Guardiões do Mar, já plantaram 57.500 mudas só esse ano. As organizações asseguram o mangue a partir da troca entre os saberes tradicionais dos pescadores da região e o conhecimento científico dos pesquisadores – movimento que também promove a valorização das comunidades locais produzindo conhecimento para o Brasil todo e até mesmo para fora do país.
Por meio desse intercâmbio entre a ciência e as comunidades tradicionais, são resgatadas, por exemplo, técnicas de manejo sustentável, como o Transplantio – quando a muda sai de um berço para ser plantada em outro lugar. “Eles não sabiam plantar mangue, e aprenderam com a gente. O que eles aprendem na sala de aula querem aplicar aqui e no manguezal não se aplica assim. Aqui já tinha bastante pescador que entendia e desenvolvia a tecnologia social, um conhecimento notório e empírico nosso. Até chamar a gente de ‘burro’ já chamaram”, desabafa Malafaia.
A participação das universidades, de organizações sociais e da comunidade é importante para pautar e dar força ao poder público. É a sociedade civil que atua como fiscalizadora no monitoramento do bem-estar dos mangues. A Cooperativa Manguezal Fluminense conheceu o projeto Mangues da Amazônia através do primeiro Congresso Nacional de Manguezais, que ocorreu em julho deste ano, no Rio de Janeiro. O intercâmbio de saberes em prol dos manguezais estimula o avanço de ações em rede.
Malafaia, que já viajou o Brasil todo pelo Plano de Ação (PAN) do Manguezal, conta que os encontros revelam a variedade de culturas e os diferentes nomes para uma mesma coisa. Fortalecendo estratégias nos desafios semelhantes que diferentes iniciativas pelo país enfrentam na proteção ao mangue.
E o PAN?
O PAN Manguezal foi um dos 48 Planos de Ação Nacionais para Conservação das Espécies Ameaçadas de Extinção (PANs) coordenados pelo ICMBio. Os PANs são instrumentos de gestão, construídos de forma participativa, para priorização de ações para a conservação da biodiversidade e seus ambientes naturais.
O PAN Manguezal, lançado em 2015, foi pioneiro e inovador entre os PANs ao se ancorar não só no saber técnico e acadêmico, mas também no saber tradicional de pescadores e pescadoras, artesanais e extrativistas. Ao focar não só na conservação das espécies ameaçadas de extinção, mas também das espécies de importância socioeconômica e do ecossistema como um todo.
Sem expectativa para um próximo ciclo, a segurança dos manguezais segue ameaçada e as legislações que o resguardam também.
O programa – que foi paralizado em 2021 durante o governo Bolsonaro – realizava a tarefa essencial de promover o encontro de pescadores, técnicos e universidades. Mas deixou a desejar na prática, já que as ideias não saíram do papel, não se efetivaram no cotidiano desses territórios, não viraram políticas públicas.
Erika Ikemoto, analista ambiental do CNPT/ICMBio, contextualiza o que aconteceu com o programa após o encerramento do primeiro ciclo: “Temos trabalhado na elaboração de produtos técnico-científicos e de comunicação. [Como os vídeos Memória Viva do PAN Manguezal, disponíveis no canal do Youtube do CNPT] com o objetivo de sistematizar os principais avanços e aprendizados, e assim subsidiar a elaboração da estratégia de continuidade das ações em prol dos manguezais. Nossa ideia é aproveitar toda a articulação construída no primeiro ciclo, envolvendo diversos setores da sociedade – partindo dessa articulação para avançar ainda mais”.
Sem expectativa para um próximo ciclo, a segurança dos manguezais segue ameaçada e as legislações que o resguardam também. Apesar de ser protegido por Lei no Brasil, tendo qualquer área de vegetação considerada de preservação permanente, o mangue continua sendo alvo de crimes ambientais. Até então nossos aliados, os mangues quando desmatados desempenham um efeito contrário catastrófico, liberando de uma só vez todo o CO2 sequestrado.
Diante desse risco, a educação ambiental e as tecnologias sociais são a principal aposta. Porque são elas que podem contribuir de forma participativa no mapeamento das vulnerabilidade dos manguezais e dos impactos decorrentes da crise climática. São elas importantes instrumentos de suporte às políticas públicas.
“Um dos diferenciais do PAN Manguezal foi trazer para o GAT, além do saber técnico-científico da Academia, Poder Público e ONGs, o saber tradicional dos povos e comunidades tradicionais que têm seus modos de vida intimamente associados aos manguezais (…), abrindo, assim, espaço para o diálogo entre esses diversos saberes e promovendo o protagonismo desses povos e comunidades na tomada de decisões sobre a definição de ações prioritárias para a conservação e uso sustentável dos manguezais, bem como sobre a implementação, monitoramento e avaliação dessas ações”, finaliza Erika Ikemoto, analista ambiental do CNPT/ICMBio.
Essa publicação é resultado da bolsa-reportagem oferecida no âmbito do projeto Intercâmbio de Biomas: trocas de saberes entre jovens comunicadores da Amazônia e da Mata Atlântica, oferecida por ((o))eco em parceria com a USAID e WCS, a Internews e Fundação Amazônia Sustentável, através do projeto Conservando Juntos.
O conteúdo é de responsabilidade de ((o))eco e Internews, e não reflete necessariamente os pontos de vista da WCS, USAID ou do Governo dos Estados Unidos.
As informações apresentadas neste post foram reproduzidas do Site O Eco e são de total responsabilidade do autor.
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